2 de fevereiro de 2012

Silenciar as torcidas, não! (Hélio Ricardo Rainho)

E agora mais esta: proibiram as torcidas de escolas de samba de exibirem suas faixas nas arquibancadas, no dia do desfile, sob a alegação que essas faixas "poluem a transmissão de televisão"!

Mais uma vez - e cada vez mais - as escolas de samba ficam distanciadas de seus princípios e de sua realidade sócio-comunitária graças às imposições comerciais de quem gerencia de forma fria e calculista o espetáculo. A escola de samba, esse fenômeno cultural cujo nascedouro - queiram ou não os sofisticados e elitistas - é o velho e bom subúrbio carioca, vai se tornando um prato apetitoso para a burguesia que se planta diante das televisões.

Os apelos contratuais empacotam uma manifestação cultural viva e dinâmica, produzida pelo povo, para vendê-la como mercadoria espetacular à elite do primeiro mundo. Ao consumir vorazmente uma valiosa arte popular de negros, favelados, suburbanos e pobres, a elite começa a querer redesenhar a festa. É preciso que a elite se identifique um pouco mais com o espetáculo caro que compra. Ao que parece, fica feio, na telinha burguesa, aparecer um pedaço de pano com nomes que remetam a Madureira, Padre Miguel, Oswaldo Cruz, Caxias, Nilópolis, Vaz Lobo... e não a Ipanema, Leblon e Copacabana, que são os "cartões postais oficiais" da Cidade Maravilhosa. É preciso que os acadêmicos titulados da Sourbonne e os intelectuais de Cambridge passem míseros meses dentro de um barracão para publicarem seus livros de muita antropologia e nenhuma propriedade em samba para que o assunto possa ser "entendido" pelas elites que consomem escola de samba. Para eles, é preciso que as escolas de samba virem "escolas de bossa nova", reeditando a primeira manifestação musical do país que tentou embranquelar e sofisticar o samba negro e favelado para vendê-lo no exterior como uma espécie de jazz tupiniquim.

Antigamente escola de samba não podia ter patrocínio. E vimos desfiles monumentais no passado sem essa invasão que nos traz enredos sobre prefeituras, artistas extraterrestres ao samba, indústria de laticínios, chapa branca de governos e outras apelações mais. Hoje, o mantra é "ter patrocínio"! Todo mundo caminha para uma igualdade que descaracteriza as escolas de suas identidades originais.

Para ser "aceito" pelas elites, o samba precisou mudar. Saímos do deus Baco para o deus Chronos: tempo é dinheiro e tempo rege os desfiles! Bateria e samba-enredo correram, passistas passam escondidos e voando, Velha Guarda sai do chão porque "é lenta e não evolui", baianas são trocadas por dançarinas jovens de quadrilha junina, escolas precisam se colorir e desprezar suas cores fundamentais para que o visual na televisão não fique "monótono" (?).

São tantas imposições para satisfazer o "deu$ dinheiro" que passou-se a triturar a preciosidade mais relevante dessa festa que é a escola de samba: deixar seus elementos passionais, tradicionais, seu legado cultural evoluir sem essas intromissões.

Quando surgem as torcidas organizadas de escola de samba - e a pioneira nisso chama-se Guerreiros da Águia, representante da majestosa Portela - parece que, finalmente, o espaço para o amor, a devoção, o respeito e a dedicação serão mantidos em voga, diante de nossos olhos e de nossa admiração. Essa torcida, por exemplo, militou fortemente e brigou nas ruas pela reativação da Portela, pelo renovo que todos estão vendo, pela valorização dos setores primais da escola, pela lisura na escolha de um samba que traduzisse os anseios de sua comunidade. A Guerreiros da Águia - cunhada com o temo "guerreiros" em homenagem à maior das guerreiras do samba, a diva eterna azul-e-branco chamada Clara Nunes - encheu ruas e lotou arquibancadas, em todas as frentes de ensaio e apresentação, mostrando seu amor e sua vocação em abraçar a escola. Quem conhece Marcelo Moura, Jany Monteiro, Betinha, Joseane, Glauber, Denílson, Adriana "Nana", Walter Alverca, Vinicius Rangel, Thiago Kátia Henriques, Helen Mary, Andre Marques, Claudio, Brian, Marcia Vaz, Giselle, Karine, Marcia "Fera Guerreira" sabe o que é sentimento de paixão e (mais que isso) de dedicação pela escola. Lamentavelmente, uma decisão "superior" abafa o trabalho desses e de tantos outros representantes das comunidades da escola em prol de uma argumentação inócua e equivocada como essa, de que suas faixas e bandeiras "poluem a transmissão do desfile".

Podemos, então, relacionar, algumas coisas que nós, também "consumidores" da festa, consideramos "poluentes"? A lista é boa... vamos lá!

- Comentaristas de televisão que caem de para-quedas do futebol e de outras áreas, e não entendem nada de samba, poluem os desfiles.

- Câmeras que privilegiam celebridades de novelas em detrimento dos sambistas originais poluem os desfiles.

- Bicões e celebridades embriagadas (pelo álcool ou pela fama) atravancando a harmonia poluem os desfiles.

- Logomarcas de patrocinadores estampadas toscamente em vinhetinhas eletrônicas que encobrem as imagens das escolas poluem os desfiles.

- Camarotes berrantes de patrocinador recheados de gente vulgar e oferecida, que despreza as escolas de samba, mas adora promover seus 15 minutos de fama no carnaval do sambódromo, poluem os desfiles.

- Jurados que levam envelope pra casa, desconhecem as características das escolas, pontuam bisonhamente os quesitos e apresentam justificativas de nota com argumento patético e erros gramaticais horrorosos poluem os desfiles.

Ainda precisamos dizer mais??? Assim como será feito com as bandeiras das torcidas organizadas, esses poluentes serão também ensacados e recolhidos da festa???

Ninguém aqui é teimoso nem dura cerviz para viver de passado e saudosismo, ignorando a evolução dos tempos. Mas é possível um afã de modernidade que não nos cegue para as tradições, que não nos aparte de nossas raízes, que não faça de nossas escolas de samba filhas desgarradas órfãs de si mesmas por opção, matricidas em desfile.

Fica aqui o meu manifesto de apoio a essa laboriosa gente do samba - Leões da Estácio, Torcida Organizada da Ilha, Sangue Salgueirense, Portelamor, Guerreiros da Águia, Nação Leopoldinense, Independentes da Mocidade, Guerreiros de Vila Isabel, Sou da Vila, Raiz Mangueirense, Devotos da Coroa, Familia Tijucana e outras tais, não citadas, mas não menos importantes.

Gente do chão de escola, da raça vibrante dos tamborins que não podem ser silenciados. Gente da raiz das escolas que não pode ser calada. E que nunca - nunca, sob hipótese alguma! - poderá ser acusada de "poluir o samba"!