Parte I
*Este número traz o
texto escrito por P. Kropotkin intitulado "Sobre o Governo Representativo ou
Parlamentarista", estando dividido em quatro partes sendo publicada uma em cada
edição.
Quando observamos
as sociedades humanas nos seus traços essenciais, abstraindo das manifestações
secundárias e temporais, constatamos que o regime político a que estão
submetidas é sempre a expressão do regime econômico que existe no seio da
sociedade. A organização política não se modifica pela vontade dos legisladores;
pode, é verdade, mudar de nome, pode apresentar-se hoje sob a forma de
monarquia, amanhã sob a da república, mas não sofre uma modificação equivalente;
adapta-se, harmoniza-se com o regime econômico, de que é sempre a expressão e,
ao mesmo tempo, a congregação, o sustentáculo.
Se às vezes, na sua
evolução, o regime político dum tal país está atrasado comparativamente com a
modificação econômica que nele se opera, é então, bruscamente alterado,
modificado, remodelado, de maneira a ajustar-se ao regime econômico que se
estabeleceu. Mas, por outro lado, se sucede que, em virtude duma revolução, o
regime político vai além da modificação econômica, fica em estado de letra
morta, de fórmula, inscrita nas cartas, mas sem aplicação real. Assim, a
declaração dos Direitos do Homem, fosse qual fosse o seu papel na história, é
hoje apenas um documento histórico, e essas belas palavras de Liberdade ,
Igualdade e Fraternidade permanecerão como um sonho ou uma mentira inscrita nas
paredes das igrejas e das prisões, enquanto a liberdade e a igualdade se não
tornarem a base das relações econômicas. O sufrágio universal seria tão
inconcebível numa sociedade baseada na servidão, como o despotismo numa
sociedade que tivesse por base o que se chama a liberdade da
exploração.
As classes
operárias da Europa ocidental compreenderam-no bem. Sabem ou advinham que as
sociedades continuarão a ser esmagadas sob as instituições políticas existentes,
enquanto o regime capitalista de hoje não for destruído. Sabem que essas
instituições, embora revestidas de belos nomes são a corrupção e o domínio do
mais forte erigidos em sistema, o estrangulamento de todas as liberdades e de
todo o progresso; sabem que o único meio de sacudir esses empecilhos seria
estabelecer as relações econômicas sobre um novo sistema, o da propriedade
coletiva. Sabem finalmente que para realizar uma revolução política profunda e
durável, é preciso realizar uma revolução econômica.
Mas por causa mesmo
da ligação íntima que existe entre o regime político e o regime econômico, é
evidente que uma revolução no modo de produção e de repartição dos produtos não
se poderia operar, se não fizesse a par duma modificação profunda dessas
instituições que se designam geralmente sob o nome das instalações políticas. A
abolição da propriedade individual e da exploração que dela é a conseqüência, o
estabelecimento do regime coletivista ou comunista seriam impossíveis se
quiséssemos conservar os nossos parlamentos e os nossos reis. Um novo regime
econômico exige um novo regime político, e esta verdade é também compreendia por
toda a gente, que de fato o trabalho intelectual que se opera hoje nas massas
diz respeito indistintamente aos dois aspectos da questão a resolver.
Raciocinando sobre o futuro político, e ao lado das palavras Coletivismo e
Comunismo, ouvimos as palavras : Estado Operário, Comuna Livre, Anarquia, ou
então Comunismo Autoritário ou Anarquista, Comuna Coletivista.
Regra geral:
"Quereis estudar com proveito? Começai por imolar um a um , os mil preconceitos
que vos ensinaram "! - Estas palavras, pelas quais um astrônomo célebre começava
os seus discursos, aplicam-se a todos os ramos dos conhecimentos humanos: muito
mais ainda às ciências sociais do que as ciências físicas, porque logo no início
destas, nos defrontamos com uma quantidade de preconceitos herdados dos tempos
passados, de idéias absolutamente falsas, lançadas para melhor iludir o povo, de
sofismas minuciosamente elaborados para falsificar o juízo que o povo possa
formular. Temos assim um verdadeiro trabalho preliminar a fazer para marchar com
segurança.
Ora, entre esses
juízos, há um que merece sobretudo a nossa atenção, porque não só é a base de
todas as nossas instituições políticas modernas, como aparece em todas as
teorias sociais postas em destaque pelos reformadores franceses. É o da fé num
governo representativo, num governo por procuração.
No fim do século
XVIII, o povo francês destruía a monarquia e o último dos reis absolutos expiava
no cadafalso os seus crimes e o dos seus antecessores.
Parecia que
precisamente nessa época, desde que tudo que a revolução fez de bom, de grande,
de duradouro, foi realizado pela iniciativa e a energia dos indivíduos ou dos
grupos, graças à desorganização e a fraqueza do governo central, parecia, digo,
que essa época o povo francês não procuraria voltar a submeter-se ao jogo dum
novo poder, baseado nos mesmos princípios do anterior, ou mesmo muito mais forte
porque não estaria contaminado pelos vícios do poder derrubado.
Mas não se deu
assim. Sob a influência de preconceitos governamentais e deixando-se enganar
pela aparência de liberdade e bom estar que davam - dizia-se- as instituições
inglesa e americana, o povo francês apressou-se a dar-se a si mesmo uma
constituição, depois constituições, que alterou por várias vezes, que variou até
ao infinito nas suas particularidades, mas todas baseadas neste princípio: o
governo representativo. Monarquia ou república, pouco importa! O povo não se
governa por si mesmo: é governado por representantes escolhidos melhor ou pior.
Proclamará a sua soberania, mas apressar-se-á a abdicar dela. Elegerá, bem ou
mal, deputados que vigiará ou não, e serão esses deputados que se encarregarão
de regular a imensa diversidade de interesses desencontrados, de relações
humanas tão complicadas no seu conjunto, sobre toda a superfície da
França.
Mais tarde em todos
os países da Europa continental dá-se a mesma evolução. Todos destroem uns após
outros as suas monarquias absolutas, e todos se lançam no caminho do
parlamentarismo. Até aos dois despotismos do Oriente não há país que não siga
este caminho: a Bulgária, a Turquia e a Sérvia tentam o regime constitucional;
na própria Russia tenta-se sacudir o jogo duma camarilha para o substituir pelo
jogo temperado duma assembléia de delegados.
E, o que é pior, a
França, inaugurando novos caminhos, cai apesar disto nos mesmos erros. O povo
desgostoso com uma triste experiência da monarquia constitucional, destrói-a e
apressa-se no dia seguinte a eleger uma assembléia a que não muda senão o nome e
confia-lhe o cuidado de governar...para que o venda a um bandido que chamará a
invasão do estrangeiro às planícies férteis da França.
Vinte anos mais
tarde cai ainda no mesmo erro. Vendo a cidade de Paris livre, abandonada pela
tropa e pelos poderes, não trata senão de experimentar uma nova forma que
facilitasse o estabelecimento de um regime econômico. Satisfeito por ter mudado
o nome de Império pelo de República e este pelo de Comuna, apressa-se a pôr em
prática uma vez mais, no seio da Comuna, o sistema representativo. Falsifica a
idéia nova pela herança cancerosa do passado. Abdica a sua própria iniciativa
nas mãos de uma assembléia de pessoas eleitas mais ou menos ao acaso, e
confia-lhe o trabalho dessa organização completa das relações humanas que podia
ter dado à Comuna a força e a vida.
As constituições
periodicamente esfarrapadas em pedaços voam como folhas mortas caídas ao rio por
um vento de outono! Não importa, volta-se sempre aos primeiros amores; rasgada a
décima sexta constituição, faz-se uma décima sétima!
Finalmente, mesmo
em teoria vemos reformadores que, em matéria econômica, não se detém diante duma
modificação completa das formas existentes, que se propõe alterar completamente
a produção e a troca e abolir o regime capitalista. Mas quando se trata de expor
- em teoria bem entendido-o seu ideal político, não ousam tocar no sistema
representativo; sob a forma de Estado Operário ou de Comuna Livre, procuram
sempre conservar custe o que custar, esse governo por procuração. Todo um povo,
toda uma raça se aferra ainda encarniçadamente a esse sistema.
Felizmente vai-se
fazendo luz sobre este assunto. O sistema representativo não está na prática
unicamente nos países que outrora mal conhecíamos. Funciona e tem funcionado na
grande arena da Europa Ocidental, em todas as suas variedades, sob todas as
formas possíveis, desde a monarquia temperada até à Comuna revolucionária; e
vai-se compreendendo que, acolhido com grandes esperanças, em toda a parte se
tornou um instrumento de intrigas, de enriquecimento pessoal ou embaraço à
iniciativa e ao desenvolvimento ulterior. Vai-se compreendendo que a religião da
representação tem o mesmo valor que a das superioridades naturais e dos
personagens reais. Mais do que isso, começa-se a compreender que os vícios do
governo representativo não dependem só das desigualdades sociais: que aplicado
num meio em que todos os homens tenham igual direito ao capital e ao trabalho
produziria os mesmos resultados funestos. E pode-se facilmente prever o dia em
que esta instituição, nascida, segundo a feliz expressão de J. S. Miel, do
desejo de se garantir contra o bico e as garras do rei dos abutres, cederá o
lugar a uma organização política nascida das verdadeiras necessidades da
humanidade e da concepção de que a melhor maneira de ser livre, é não ser
representado, não abandonar as coisas, todas as coisas, à Providência ou a
eleitos, mas fazê-las para si mesmo.
Esta conclusão
surgirá também, nós o esperamos, ao próprio leitor, depois de termos estudado os
vícios intrínsecos do sistema representativo, inerente ao próprio sistema, sejam
quais forem o nome e a extensão dos agrupamentos humanos no seio dos quais se
aplica.
Parte II
"Previnidos pelos
nossos costumes modernos contra os prestígios da realeza absoluta - escrevia
Agostinho Thierry em 1828 - há outros dos que nos devemos nos acautelar, os da
ordem legal e do regime representativo"1 . Bentham dizia pouco mais ou menos a
mesma coisa. Mas nessa época as suas advertências passavam despercebidas.
Acreditava-se então no parlamento, e respondia-se a estas críticas com este
argumento, bastante plausível na aparência: "O reqime parlamentar não disse
ainda a sua última palavra: não deve ser julgado enquanto não tiver por base o
sufrágio universal".
Mais tarde o
sufrágio universal introduziu-se nos no nossos costumes. Depois de se lhe ter
oposto durante muito tempo, a burguesia acabou por compreender que ele não
comprometeria em nada a sua dominação, e decidiu aceitá-o. Nos Estados Unidos o
sufrágio universal funciona já há quase um século livremente; estabeleceu-se
também na Franca e na Alemanha. Mas o regime representativo não mudou: ficou o
que era no tempo de Thierry e de Bentham; o sufrágio universal não o melhorou,
os seus, defeitos tornaram-se até maiores ainda. Ë em virtude disso que hoje não
são já os revolucionários como Proudhon que o crivam com a sua crítica; são já
os moderados como Mill2 , como Spencer3 , que clamam: "Fora o parlamentarismo"!
Pode-se apreciá-lo publicamente, e, baseando-se em fatos geralmente conhecidos e
reconhecidos poder-se-iam neste momento escrever volumes sobre os
inconvenientes, com a certeza de encontrar eco na grande massa de eleitores. O
governo representativo está julgado - e condenado.
Os seus partidários
- há-os ainda de boa fé, embora os não haja de boa reflexão - não deixam de
fazer valer os serviços que, segundo eles, nos prestou essa instituição. A
ouvi-los, é ao regime representativo que devemos as liberdades Políticas que
possuímos hoje e desconhecidas no tempo da monarquia absoluta. Mas não é isso
tomar a causa pelo efeito, ou antes um dos efeitos simultâneos pela
causa?
Não foi o sistema
representativo que nos deu, nem mesmo garantiu, as poucas liberdades que
conquistamos no último século. Foi o grande movimento do pensamento liberal,
resultante da revolução, que as arrancou aos governos, ao mesmo tempo que lhes
arrancou a representação nacional; foi ainda esse espirito de liberdade, de
revolta, que soube conservá-los contra até os embaraços contínuos dos governos e
dos próprios parlamentos. Por si mesmo o governo o representativo não dá
liberdades reais, adapta-se admiravelmente ao despotismo. As liberdades tem que
ser arrancadas da mesma maneira que aos reis absolutos: e uma vez arrancadas é
preciso defende-las contra o parlamento da mesma maneira que outrora contra um
monarca, dia a dia, palmo a palmo, sem nunca desarmar, o que não se consegue
senão quando há no país uma classe forte, ciosa das suas liberdades e sempre
pronta a defende-las pela agitação extra-parlamentar contra a menor usurpação.
Onde esta classe não existe ou onde não tem unidade de defesa, as liberdades
políticas não existem haja ou não uma representação nacional. A própria Câmara
se torna uma Ante-Câmara do rei. São prova disso os parlamentos dos Balcans, da
Turquía e da Áustria.
É muito usual
citarem-se as liberdades inglesas e associarem-se facilmente, sem refiexão, ao
Parlamento. Mas esquece-se por que processos, dum caráter puramente
insurrecioial, cada uma dessas liberdades foi arrancada a esse mesmo Parlamento.
Liberdade de associacção - tudo isto foi arrancado ao Parlamento à forca, pela
agitação, prestes a transformar-se em revolta. Foi por meio das trades-unions, e
a greve contra os editos do Parlamento e as execuções pela força no ano de 1813
foi saqueando, há apenas cinquenta anos, as fábricas que os operários ingleses
obtiveram o direito de se associarem e de fazerem greve. Foi derrubando, com as
barras das grades de Hyde-Park, a polícia que proibia a entrada que o povo, de
Londres, recentemente ainda, afírmou contra um ministério constitucional, o seu
direito de se manifestar na rua e nos parques da capital. Não é por meio de
juntas parlamentares, mas pela agitação extra-parlamentar, é erguendo e juntando
cem mil homens que protestam e clamam em frente das casas da aristrocacia ou do
ministério, que a burguesia inglesa defende as suas líberdades. Quanto ao
Parlamento, não faz senão usurpar continuamente os direitos políticos do país e
suprimi-los com uma penada, tal qual como um rei, quando não encontra pela
frente uma massa pronta a revoltar-se. Onde estão, por exemplo, a
inviolabilidade do domicilio, e o segredo da correspondência, desde que a
burguesia preferiu renunciar a esses direitos para obter do governo um simulacro
de proteção o contra os revolucionários?
Atribuir aos
Parlamentos o que é devido ao progresso geral, imaginar que basta uma
Constituição para haver liberdade é pecar contra as regras mais elementares da
crítica histórica.
Além disso, a
questão não é essa. Não se trata de saber se o regime representativo oferece
algumas vantagens sobre o regime duma criadagem explorando em seu proveito os
caprichos dum senhor absoluto. Se se introduziu na Europa foi porque
correspondia melhor à fase de exploração capitalista que atravessamos no século
dezenove, mas que vai chegando a seu termo. Oferecia certamente mias segurança
para o industrial e o comerciante aos quais dava o poder arrancado das mãos dos
senhores.
Mas também a
monarquia, a par de enormes inconvenientes, podia oferecer algumas vantagens
sobre o regime dos senhores feudais. Também ela foi um produto necessário da sua
época. Devemos nós, por isso permanecer sempre sob a autoridade dum rei e dos
seus lacaios?
O que nos importa,
homens do fim do século dezenove, é saber se os efeitos do poder representativo
não são tamanhos e tão insuportáveis como o eram os do poder absoluto. Se os
obstáculos que ele opõe ao desenvolvimento ulterior das sociedades não são, no
nosso século, tão perturbadores como o eram os obstáculos opostos pela monarquia
no século XVIII. Finalmente se um simples remendo representativo pode ser o
bastante para a nova fase econômica cujo aparecimento entrevemos. Eis o que se
deve estudar em vez de discutir o papel histórico do regime político da
burguesa.
Posta pois a
questão nestes termos, não há hesitaçã na resposta.
Certamente que o
regime representativo - esse compromisso com o antigo regime que conservou ao
governo todas as atribuições do poder absoluto, submetendo-o, bem ou mal, a uma
fiscalização popular mais ou menos fictícia - fez o seu tempo. É hoje um entrave
para o progresso. Os seus defeitos não resultam dos homens, dos indivíduos que
estão no poder - são inerentes ao próprio sistema e são tão profundos que
nenhuma modificação poderia adaptá-los às necessidades novas da nossa época. O
sistema representativo foi a dominação organizada da burguesia e desaparecerá
com ela. Para a nova fase econômica que se anuncia, devemos procurar um novo
modo de organização política, baseado num princípio diferente do da
representação. E a lógica dos fatos que o impõe.
Em primeiro lugar,
o governo representativo participa de todos os defeitos inerentes a qualquer
governo. Mas longe de os atenuar, acentua-os ainda mais e dá origem a outros
novos.
Uma das mais
profundas palavras de Rousseau sobre os governos em geral, aplica-se ao governo
eletivo como a todos os outros. Para abdicar dos nossos direitos nas mãos duma
assembléia eleita, não seria na verdade preciso que ela fosse composta de anjos,
de seres sobrehumanos? E ainda que o fossem bem depressa nasceriam chifres e
garras a esses seres etéreos, desde que eles começassem a governar o rebanho
humano.
Semelhante neste
ponto aos déspotas, o governo representativo - chame-se ele Parlamento,
Convenção, Conselho da Comuna, ou tenha outro nome mais ou menos ridículo, seja
nomeado pelos prefeitos de um Bonaparte ou arqui-livremente eleito por uma
cidade insurgida, - o governo representativo procurará sempre alargar a sua
legislação, reforçar sempre o poder, interferindo cm tudo, matando a iniciativa
do indivíduo e do grupo para as suplantar pela lei. A sua tendência natural,
inevitável, será apoderar-se do indivíduo desde a sua infância e levá-lo de lei
em lei, da ameaça a punição, do berço a cova, sem nunca o liberta-lo da sua
vigilância. Viu-se alguma vez uma Assembléia declarar-se incompetente ela para o
que for? Quanto mais revolucionária for, mais tratará de se meter em tudo o que
não for da sua competência. Legislar sobre todas as manifestações da atividade
humana, intervir nas menores particularidades da vida dos "seus súditos" - é a
própria essência do Estado, do Governo. Criar um governo, constitucional ou não,
é constituir uma força um fatalmente procurará apoderar-se de tudo, regulamentar
todas as funções da sociedade, sem reconhecer outro freio além do que nós lhe
poderemos opor de tempos a tempos pela agitação ou insurreição. O governo
parlamentar - ele próprio disso deu a prova - não faz exceção á
regra.
"A missão do
Estado, dizem-nos para nos cegarem melhor, - é proteger o fraco contra o forte,
o pobre contra o rico, as classes trabalhadoras contra as classes
privilegiadas". Nós sabemos perfeitamente como os governos tem desempenhado esta
função: tem-na compreendido perfeitamente ao contrário. Fiel à sua origem, o
governo tem sido sempre o protetor do privilégio contra os que dele procuram
libertar-se. O Governo representativo organizou principalmente a defesa, com a
conivência do povo, de todos os privilégios da burguesia comercial e industrial
contra a aristocracia por um lado, e contra os explorados por outro - modesta,
delicada para com uns, feroz contra os outros. É por isso que a mais
insignificante das leis protetoras do trabalho, por mais anódina que seja, não
pode ser arrancada a um parlamento senão pela agitação insurrecional. Basta
lembrar as lutas que se tiveram de sustentar, da agitação que teve de se fazer,
para obter dos parlamentos ingleses, do conselho federal sulco, das câmaras
francesas, algumas péssimas leis sobre a limitação das horas de trabalho. As
primeiras leis deste gênero votadas na Inglaterra, não foram extorquidas senão
pondo barris de pólvora sob os maquinismos das fábricas.
Além disso, nos
países em que a aristocracia não foi ainda derrubada por uma revolução, os
senhores e os burgueses entendem-se maravihosamente. - "Tu me reconhecerás,
senhor, o direito de legislar, e eu estarei de guarda ao teu castelo", diz o
burguês e assim o faz enquanto se não sente ameaçado.
Foram precisos
quarenta anos duma agitação que, por momentos, penetrou até nos campos, para
decidir o Parlamento inglês a garantir ao arrendatário o beneficio dos
melhoramentos, feitos por ele na terra arrendada. Quanto à famosa "lei agrária"
votada para a Irlanda. foi preciso - o próprio Gladstone o confessava - que o
país se pusesse cm insurreição geral, que se recusasse terminantemente a pagar
as rendas e se defendesse das cobranças pelo boicote, aos incêndios, as
execuções dos lords, para que a burguesia se visse forcada a votar essa medíocre
lei que finge proteger o país esfaimado contra os lords que são a causa
disso.
Mas se se trata de
proteger os interesses do capitalista, ameaçado pela insurreição ou só pela
agitação - então o governo representativo, órgão da dominação do capital,
torna-se feroz. Fere, e com mais segurança e covardia do que qualquer déspota. A
lei contra os socialistas na Alemanha vale o édito de Nantes; e nunca Catarina
II depois da Jacquerie de Pongatchoff, nem Luís XVI depois da guerra das
farinhas, deram tantas provas de ferocidade como essas duas "Assembléias
Nacionais" de 1848, e de 1871, cujos membros gritavam: "Matai os lobos, as lobas
e os lobinhos!" e unanimamente, à exceção de um voto, felicitavam pelos
massacres os soldados ébrios de sangue!
A fera anônima de
seiscentas cabeças ultrapassou os Luís XI e os João IV.
Assim será sempre
enquanto houver um governo representativo, seja ele regularmente eleito, ou
imposto por meio de insurreição.
Ou a igualdade
econômica se estabelece na nação, na cidade, e então os cidadãos livres e iguais
não abdicarão dos seus direitos nas mãos de alguns, procurarão um novo modo de
organização que lhes permita gerir eles mesmos as suas coisas. Ou haverá ainda
uma minoria que dominará as massas no terreno econômico - um quarto Estado
composto de burgueses privilegiados, e então não terão as massas apoio nenhum. -
O governo representativo, eleito por essa minoria, procederá coerentemente.
Legislará para manter os seus privilégios e procederá contra os insubmissos pela
força e o massacre.
Ser-nos-ia
impossível analisar neste livro todos os defeitos do governo representativo.
Seria preciso para isso escrever muitos volumes. Limitando-nos apenas aos mais
essenciais, ainda assim teríamos de sair dos limites marcados para estes
capítulos. Há porém um que merece ser mencionado.
Coisa singular! O
governo representativo tinha por fim impedir o governo pessoal; devia dar o
poder a uma classe e não a uma pessoa. E contudo houve sempre a tendência para
voltar ao poder pessoal, à submissão a um só homem.
A causa desta
anomalia é muito simples. Depois de se terem dado ao governo as milhares de
atribuições que se lhe reconhecem hoje; depois de se lhe ter confiado a gestão
de todas as coisas que interessam o país, e dado um orçamento de muitos milhões,
era possível confiar à multidão parlamentar a gerência dessas inúmeras coisas?
Foi pois necessário nomear um poder executivo - o ministério - investido com
todas essas atribuições, quase reais. Que ínfima autoridade não é a de um Luís
XIV que se vangloria de ser o Estado, comparada com a dum ministério
constitucional de hoje!
É verdade que a
Câmara pode derrubar esse ministério, mas para fazer o quê? - Para nomear outro
que seria obrigado a derrubar dentro de oito dias se ela fosse conseqüente?
Assim prefere conserva-lo até que o país grite demasiadamente, e então despede-o
para chamar o que derrubara dois anos antes. Forma assim esta espécie de
gangorra. Gladstone-Beaconsfield, Beaconsfield-Gladstone, o que fundamentalmente
é a mesma coisa; o país é desta forma governado sempre por um homem, o chefe do
gabinete.
E se se trata de um
homem hábil, que lhe garante "a ordem", isto é, exploração dentro e a exploração
para os outros países - então submete-se a todos os seus caprichos, atribui-lhes
todos os dias novos poderes. Seja qual for o seu desprezo pela constituição,
sejam quais forem os escândalos do seu governo, suporta tudo; se o contraria nas
coisas insignificantes, não deixa de lhe dar carta branca em tudo o que tem
importância. Bismarck é um exemplo disso; foram-no para as gerações precedentes
Guizot, Pitt e Palmerston.
Isto compreende-se
perfeitamente: todo governo tem uma tendência para se tornar pessoal; é a sua
origem; é a sua essência. Seja o parlamento censitário ou saia do sufrágio
universal, seja nomeado exclusivamente por trabalhadores, e composto por
trabalhadores, procurará sempre o homem em que possa aliviar-se do trabalho de
governar, e ao qual se submeta. Enquanto confiarmos a um pequeno número todas as
atribuições econômicas, políticas, militares, financeiras, industriais, etc.,
etc., que lhe damos hoje, esse pequeno grupo tenderá necessariamente, como um
destacamento de soldados em campanha, a submeter-se a um chefe único.
Isto em tempo de
paz. Se a guerra estoura nas fronteiras, ou se uma luta civil se desencadeia no
interior, - então o primeiro ambicioso que aparecer, o primeiro aventureiro
hábil, apoderando-se da máquina de mil ramificações que se chama administração,
impor-se-á ao país. A assembléia não será capaz de lho impedir como não o seria
qualquer de quinhentos homens tomados ao acaso na rua: pelo contrário paralizará
a resistência. Os dois aventureiros que usam o nome de Bonaparte são meros
acasos. Foram a conseqüência inevitável da concentração dos poderes.
Quanto à eficácia
que têm os discursos para resistirem aos golpes de estado, a França sabe-o bem.
Mesmo nos nossos dias, foi por ventura a Câmara, que salvou a França do golpe de
Estado de Mac-Mahon? Foram - sabe-se hoje - os grupos extra-parlamentares.
Citam-nos a Inglaterra? Mas ela não se vangloria de ter mantido as suas
instituições parlamentares durante o século XIX! Ela soube evitar, é verdade,
durante este século, a guerra de classes; mas tudo nos leva a crer que o teria
feito igualmente, e não é preciso ser profeta para prever que o Parlamento não
sairá desta luta e cairá duma maneira ou de outra conforme a marcha da
Revolução.
E se quiséssemos,
na próxima revolução, deixar as portas abertas à reação, à própria monarquia
talvez, bastava-nos para isso confiar os nosso interesses a um governo
representativo, a um ministério com todos os poderes que possui hoje. A ditadura
reacionária, a princípio com um certo tom avermelhado, depois azulando-se à
medida que se fosse sentindo mais firme na sela, não se faria esperar. Teria à
sua disposição todos os instrumentos de dominação: e deles facilmente se poderia
servir.
Fontes de tantos
males, não presta o sistema representativo alguns serviços pelo menos para o
desenvolvimento progressivo e pacífico das sociedades?
- Não teria ele
contribuído para a descentralização do poder que se impunha no nosso século? -
Não soube ele mesmo impedir as guerras? - Não teria ele sabido adaptar-se às
exigências de ocasião e sacrificar a tempo uma ou outra instituição já velha,
para evitar a guerra civil? Não oferece ele, pelo menos, algumas garantias de
progresso e melhoramento no interior?
Quanta ironia amarga não há em cada uma destas perguntas e em tantas outras que surgem quando se julga a instituição! Toda a história do nosso século prova o contrário.
Quanta ironia amarga não há em cada uma destas perguntas e em tantas outras que surgem quando se julga a instituição! Toda a história do nosso século prova o contrário.
Os parlamentos,
fiéis à tradição real e à sua transfiguração moderna, o jacobinismo, não fizeram
senão concentrar os poderes nas mãos do governo. Funcionarismo para tudo - tal é
a característica do governo representativo. Desde o princípio deste século se
fala em descentralização, autonomia, e não se faz senão centralizar, matar os
últimos vestígios de autonomia. A própria Suíça sofreu essa influência, e na
Inglaterra deu-se o mesmo. Sem a resistência dos industriais e dos comerciantes,
estaríamos ainda hoje a pedir a Paris licença para matar um boi em
Brives-Guillarde. Tudo cai pouco a pouco sob a alçada do governo. Só lhe falta
já a gestão da indústria e do comércio, da produção e do consumo, e os
democratas socialistas cegos pelos preconceitos autoritários sonham já com o dia
em que poderão regular no parlamento de Berlim o trabalho das fábricas e o
consumo em toda a Alemanha.
O regime
representativo, que dizem ser tão pacífico, preservou-nos das guerras? Nunca se
exterminou tanto como sob o regime representativo. A burguesia precisa dominar
nos mercados e essa dominação não se obtém senão à custa das outras burguesias,
pelos obuzes e pelas metralhadoras. É preciso dar a glória militar aos advogados
e aos jornalistas e não há maiores partidários da guerra do que os guerreiros de
gabinete.
Não se adaptam
então os parlamentos às exigências de ocasião? À modificação das instituições em
decadência?
Como no tempo da
Convenção era preciso espetar os sabres quase no pescoço dos convencionais para
lhes arrancar apenas a sanção dos fatos consumados, assim hoje é preciso a
insurreição para arrancar aos "representantes do povo" a mais insignificante das
reformas.
Quanto ao
melhoramento do corpo eletivo, nunca se viu uma degradação dos parlamentos como
nos nossos dias. Como todas as instituições em decadência, esta vai cada vez
mais tornando-se pior. Falava-se da podridão parlamentar do tempo de Luís
Filipe. Falai hoje às poucas pessoas honestas perdidas nessas paragens e elas
vos dirão: "É de doer o coração"! O parlamentarismo só inspira tristeza a quem o
observar de perto.
Mas, não poderia
ele melhorar? Um elemento novo, o elemento operário, não lhe insuflaria um
sangue novo? - Analisemos então a própria constituição das Assembléias
representativas, estudemos o seu funcionamento, e veremos que alimentar esses
sonhos, é tão ingênuo como casar um rei com uma camponesa na esperança duma
geração de bons reis!
Parte III
Os defeitos das
Assembléias representativas não nos causarão estranheza, se refletirmos um
momento apenas sobre a maneira como elas se recrutam e como
funcionam.
Será preciso que eu
descreva aqui o quadro, tão pungente, tão profundamente repugnante, e que nós
todos conhecemos, - o quadro das eleições? Na burguesa Inglaterra e na
democrática Suíça, na França como nos Estados Unidos, na Alemanha como na
República Argentina, não é essa triste comédia em toda parte a mesma?
É preciso contar
como os agentes e as comissões eleitorais "forjam, arrumam" uma eleição
(verdadeira gíria de larápios), espalhando para um lado e para o outro,
promessas políticas nos comícios; como eles penetram nas famílias, adulando a
mãe, o filho, acariciando se for preciso o cão asmático ou o gato do "eleitor"?
como eles se espalham pelos bares, convertem os eleitores e atraem os mais
calados abrindo com eles discussões, como esses burlões que vos arrastam ao
"jogo da vermelhinha"? como o candidato, depois de se ter feito desejar, aparece
enfim no meio dos seus "queridos eleitores", com um sorriso benevolente, o olhar
modesto, a voz melíflua, - tal qual como velha megera que aluga quartos em
Londres, ao procurar enredar um locatário com o seu doce sorriso e os seus
olhares angélicos? É preciso enumerar os programas mentirosos - todos mentiosos
- sejam eles oportunistas ou socialistas-revolucionários, nos quais o próprio
candidato, por pouco inteligente que seja e por pouco que conheça a Câmara,
acredita tanto como acredita nas predicações do "Mensageiro Coxo" e que ele
defende com entusiasmo uma verbosidade, uma entoação de voz, um sentimento
dignos de um doido ou de um ator de feira? Não é debalde que a comédia popular
se não limita a fazer Bertrand e de Robert Macaire simples burlões e lhes
acrescenta a essas excelentes qualidades a de "representantes do povo" à busca
de votos e de lenços para roubarem.
É preciso dar aqui
a nota das despesas das eleições? Mas todos os jornais nos informam
suficientemente a esse respeito. Ou reproduzir a nota das despesas dum agente
eleitoral, na qual figuram grandes quantidades de carneiros, fardos de flanela e
até água enviado tudo pelo candidato compadecido dos "seus queridos filhos", dos
seus eleitores? Será preciso reproduzir aqui as despesas com pêras cozidas e
ovos, "para confundir o partido contrário", que sobrecarregam os orçamentos
eleitorais nos Estados Unidos, e as despesas de cartazes caluniosos e "manobras
da última hora" que desempenham já um horrível papel nas eleições
européias?
E quando o governo
intervém, com os seus "lugares", os seus cem mil "lugares" oferecidos ao que
mais der, as suas condecorações, os seus depósitos de tabaco, a sua alta
proteção prometida às casas de jogo e de vício, a sua imprensa desavergonhada,
os seus policiais, os seus burlões, os seus juízes e os seus
agentes...
Não, seria demais!
Deixemos essa lama, não a remexamos! Limitemo-nos apenas a perguntar: Haverá uma
única paixão humana, a mais vil, a mais abjecta de todas, eu não seja
aproveitada num dia de eleições? Fraude, calúnia, baixeza, hipocrisia, mentira,
toda a lama que existe no fundo da besta humana - eis o belo espetáculo que nos
oferece um país quando se lança no período eleitoral.
É assim e assim
será sempre enquanto houver quem faça eleições para servir de escada aos outros,
que se tornarão chefes e senhores dos que os elegeram. Sejam até operários
todos, todos iguais, e meta-se-lhes na cabeça eleger governantes - que se dará a
mesma coisa. Já não se distribuirão pernas de carneiro, mas distribuir-se-á a
adulação, a mentira, - o que equivalerá ao mesmo. Como se há de conseguir outra
coisa quando se põem em leilão os direitos mais sagrados?
Que se pede,
afinal, aos eleitores? Que encontrem um homem a que se possa confiar o direito
de legislar sobre tudo o que eles têm de mais caro: os seus direitos, os seus
filhos, o seu trabalho. E é para admirar que dois ou três mil Robert Macaire se
disputem entre si os direitos reais? Procura-se um homem ao qual se possa
confiar, juntamente com alguns outros, saídos da mesma loteria, o direito de
perder os nossos filhos aos vinte e um anos ou aos dezenove, se assim lhe
parecer acertado; de os conservar encerrados num quartel durante três anos, ou
mesmo dez se se julga isso melhor, absorvendo uma atmosfera putrefata; de os
fazer massacrar quando e onde quiser ao começar uma guerra que o país será
forçado a fazer, uma vez a isso arrastado. Poderá fechar as Universidades ou
abri-las conforme lhe apetecer; obrigar os pais a mandar para lá os filhos ou
proibir-lhes a entrada. Novo Luís XIV poderá favorecer uma indústria ou mata-la
se assim o preferir; sacrificar o Norte pelo Sul, ou o Sul pelo Norte; anexar
uma província ou cede-la. Disporá duma insignificância como três bilhões de
francos por ano, que ele tirará do estômago do trabalhador. Terá ainda a
prerrogativa real de nomear o poder executivo, isto é, um poder que, desde que
esteja de acordo com a câmara, poderá ser despótico e tirânico de uma maneira
diferente da extinta realeza. Porque, se Luís XVI não mandava senão em algumas
dezenas de milhares de funcionários, ele manda em cem vezes maior número deles e
se o rei podia roubar ao tesouro público alguns sacos de escudos, o ministro
constitucional de hoje, num só lance de Bolsa, recebe "honestamente"
milhões.
Não é para admirar
ver o embate de tantas paixões, quando se procura um chefe para ser investido
dum tal poder! Quando a Espanha pôs o seu trono vago em leilão, alguém se
admirou de ver flibusteiros surgirem de toda a parte? Enquanto permanecer a
venda dos poderes reais, nada se poderá reformar: a eleição será a feia das
vaidades e das consciências.
Ainda mesmo que
fosse cerceada o mais possível o poder dos deputados, ainda que o fracionassem
constituindo em cada Estado pequenos Estados correspondendo à atual divisão dos
distritos ou mesmo em conselhos, tudo ficaria na mesma.
Compreende-se ainda
a delegação quando cem, duzentos homens que se encontram todos os dias no seu
trabalho, nos seus serviços comuns, que se conhecem muito bem uns aos outros,
que discutiram sob todos os aspectos uma questão qualquer e que chegaram a uma
decisão, escolhem um deles e o enviam para se entender com os outros delegados
do mesmo gênero sobre este assunto especial. Então a escolha faz-se com pleno
conhecimento de causa, sabendo cada um o que pode confiar ao seu representante.
Esse representante não fará mais do que expor perante outros representantes as
considerações que levaram os seus constituintes a tal ou tal conclusão. Não
podendo impor nada, tentará a conciliação e voltará com uma simples proposta que
os mandatários poderão aceitar ou recusar. Foi mesmo assim que nasceu a
representação: quando as comunas enviaram os seus delegados às outras comunas
não tinham outro mandato. É ainda assim que procedem os meteorologistas, os
estatísticos nos seus congressos internacionais, os delegados das companhias de
estrada de ferro e das administrações postais de diversos países.
Mas, o que se exige
aos eleitores? - A dez, vinte, cem mil, que não se conhecem absolutamente, que
não se vêem nunca, que se não encontram nunca tratando duma questão comum,
pede-se-lhes que se entendam sobre a escolha de um homem. E assim é esse homem
enviado para expor um assunto determinado, ou defender uma resolução relativa a
uma questão especial? Não, ele deve servir para tudo, para legislar não importa
sobre quê, e a sua decisão será lei. O caráter primitivo da delegação
transformou-se inteiramente e tornou-se um verdadeiro absurdo.
Esse ser onisciente
que hoje se procura não existe. Mas pode encontrar-se um cidadão honesto que
reúna certas condições de probidade e de bom senso com alguma instrução. É esse
que será eleito? Evidentemente que não. Há apenas vinte pessoas no seu círculo
eleitoral que conhecem as suas excelentes qualidades. Nunca procurou a
popularidade, despreza os meios usuais de fazer barulho em volta do seu nome,
não alcançará mais do que 200 votos. Não chegará mesmo a ser candidato,
nomeando-se para isso um advogado ou um jornalista, bom falador ou bom
escrevinhador que irá para o parlamento com os seus hábitos do tribunal ou da
redação e irá reforçar a carneirada do ministério ou da oposição.
Poderá ser ainda
algum comerciante, envaidecido com a honra de ser deputado, e que não trepidará
perante uma despesa de 10 000 francos para conquistar a notoriedade. E nos
países onde os costumes são eminentemente democráticos como nos Estados Unidos,
onde as comissões se constituem com extrema facilidade e contrabalançam a
influência da fortuna, nomear-se-á o pior de todos, o político de profissão, o
ser abjeto que é hoje a chaga da grande república, o homem que faz da política
uma indústria e que a explora segundo os processos da grande indústria -
publicidade e corrupção.
Transformai o
sistema eleitoral como quiserdes: substitui o escrutínio por pequenos círculos,
pelo escrutínio de lista, fazei as eleições em dois graus como na Suíça (eu falo
das reuniões preparatórias) modificai-o quando puderdes, aplicai o sistema nas
melhores condições de igualdade, - talhai e retalhai os colégios eleitorais - o
vício intrínseco da instituição não terá com isso desaparecido. Aquele que
souber conseguir a metade dos sufrágios (salvo muito raras exceções, nos
partidos perseguidos), será sempre nulo, sem convicções - o homem que sabe
contentar toda a gente.
É por isso que -
Spencer o notou já - os parlamentos são geralmente tão mal compostos. A Câmara,
diz ele, na sua Introdução, é sempre inferior à média do país, não só em
consciência como em inteligência. Um país inteligente figura na sua
representação como se não o fosse. Se se propusesse ser representado por idiotas
não teria escolhido melhor. Quanto à probidade dos deputados, nós sabemos bem o
que ela vale. Basta ler o que deles dizem os ex-ministros que o conheceram e
apreciaram.
Que pena que não
haja caravanas especiais, para que os eleitores pudessem ir ver a sua Câmara
funcionar. Como eles ficariam enojados. Os antigos embebedavam os seus escravos
para ensinarem aos filhos a aversão pela embriaguês. Parisienses, ide à Câmara
ver os vossos representantes para aborrecerdes o governo
representativo.
A esse montão de
nulidades o povo confia todos os seus direitos, salvo o de os destituir de
tempos a tempos e de nomear outros. Mas como a nova assembléia, nomeada segundo
o mesmo sistema e encarregada da mesma missão, será tão má como a precedente, a
grande massa acaba por se desinteressar da comédia e limita-se a algumas
substituições de vez em quando, aceitando alguns candidatos novos que conseguem
por qualquer motivo impor-se.
Mas se a eleição
está já corroída de um vício de constituição, irreformável, que dizer da maneira
como a assembléia cumpre o seu mandato? Refleti apenas um minuto e vereis bem
depressa a inanidade da missão que lhe impusestes.
O vosso
representante deverá emitir uma opinião, um voto, sobre toda a série variável
até ao infinito, de questões que poderão surgir nessa formidável máquina, - o
Estado centralizado.
Deverá votar o
imposto sobre os cães e a reforma do ensino universitário, sem nunca ter posto
os pés na Universidade e sabido o que é um cão de guarda. Deverá pronunciar-se
sobre as vantagens da espingarda Grass e sobre o local a escolher para as
cudelarias do Estado. Votará sobre a filoxera, o guano, o tabaco, o ensino
primário e o saneamento das cidades; sobre a Cochinchina e a Guiana, sobre as
chaminés e o observatório de Paris. Ele que não viu os soldados senão na parada,
dividirá os corpos do exército, e sem nunca ter visto um árabe, vai fazer e
desfazer o código muçulmano da Argélia. Votará a barretina ou quepi, segundo as
predileções da esposa. Protegerá o açúcar e sacrificará o pão. Matará a vinha
julgado protegê-la; votará a arborização contra a pastagem e protegerá a
pastagem contra a floresta. Tratará a peito a questão dos bancos. Inutilizará um
canal por causa de uma estrada de ferro, sem saber muito bem em que parte da
França se encontra um e outro. Acrescentará novos artigos ao Código Penal, sem o
ter nunca folheado. Proteu onisciente e onipotente, hoje militar, amanhã
tratador de porcos, e sucessivamente banqueiro, acadêmico, limpador de canos,
médico, astrônomo, fabricante de drogas, curtidos de peles ou negociante,
segundo a ordem do dia da Câmara, não hesitará nunca. Habituado na função de
advogado, de jornalista, ou de orador de reuniões públicas, a falar do que não
conhece, votará sobre todas as questões, com a única diferença de que no seu
jornal divertia o porteiro, no tribunal despertava os juízes e os jurados
sonolentos e na Câmara a sua opinião será lei para trinta, quarenta milhões de
habitantes.
E como lhe é
materialmente impossível ter uma opinião sobre os mil assuntos em que o seu voto
fará lei, passará o tempo a conversar com o vizinho do lado, ou a escrever
cartas para aquecer o entusiasmo dos seus "queridos eleitores", enquanto o
ministro estiver lendo um relatório cheio de algarismos dispostos para o caso
pelo seu chefe de gabinete; e no momento do voto se pronunciará pró ou contra o
relatório segundo o sinal do chefe do partido.
Assim uma questão
de gorduras para porcos ou de equipamento para o soldado não será nos dois
partidos de oposição senão uma questão de escaramuça parlamentar. Não quererão
saber se os porcos terão necessidade das gorduras e se os soldados não estarão
já sobrecarregados como camelos do deserto - a única questão que os interessa
será saber se um voto afirmativo beneficia aos seu partido. A batalha
parlamentar faz-se sobre as costas do soldado, do agricultor, do trabalhador
industrial, no interesse do ministro ou da oposição.
Pobre Proudhon, eu
calculo os seus dissabores quando teve a ingenuidade infantil, de entrar na
Assembléia, de estudar a fundo cada uma das questões como ordem do dia. Levava ã
tribuna algarismos, idéias - nem sequer o escutavam. As questões resolveram-se
todas antes da sessão, por esta simples consideração: é útil, é prejudicial ao
nosso partido? A contagem de votos está feita: os submissos são registrados,
contados cuidadosamente. Os discursos não se pronunciam senão para efeito
teatral; não se escutam senão quando têm valor artístico ou se prestam ao
escândalo. Os ingênuos imaginam que Roumenstan, arrebatou a Câmara com a sua
eloqüência, e Roumenstan no fim da sessão, estuda com os seus amigos a maneira
como poderá realizar as promessas feitas para caçar os votos. A sua eloqüência
não era mais do que uma cantata de ocasião, composta e pronunciada para divertir
a galeria, para manter a sua popularidade com algumas frases
empoladas.
"Caçar votos!" -
Mas quem são esses que caçam votos, esses votos que fazem inclinar para um e
para outro lado a balança parlamentar? Quem são esses que derrubam e erguem
ministérios e que dotam o país com uma política de reação ou de aventuras
exteriores? Quem decide entre o ministério e a oposição? - São os chamados
"camaleões da política". Os que não têm opinião, os que se sentam sempre entre
duas cadeiras, que vogam entre os dois partidos principais da Câmara.
É precisamente esse grupo - uns cinqüenta indiferentes, de gente sem convicção nenhuma, que se fazem de cataventos entre os liberais e os conservadores, que se deixam influenciar pelas promessas, os lugares, a lisonja ou o pânico, - esse pequeno grupo de nulidades, que dando ou recusando os seus votos, decide todas as questões do país. São eles que fazem as leis ou que as revogam. São eles que apóiam ou derrubam os ministérios e que mudam a direção da política. - Uns cinqüenta indiferentes ditando a lei do país, - eis a que se reduz o sistema parlamentar.
É precisamente esse grupo - uns cinqüenta indiferentes, de gente sem convicção nenhuma, que se fazem de cataventos entre os liberais e os conservadores, que se deixam influenciar pelas promessas, os lugares, a lisonja ou o pânico, - esse pequeno grupo de nulidades, que dando ou recusando os seus votos, decide todas as questões do país. São eles que fazem as leis ou que as revogam. São eles que apóiam ou derrubam os ministérios e que mudam a direção da política. - Uns cinqüenta indiferentes ditando a lei do país, - eis a que se reduz o sistema parlamentar.
Isto é inevitável,
seja qual for a composição do parlamento, embora ele esteja repleto de estrelas
de primeira grandeza e de homens íntegros, - a deliberação pertencerá... aos
camaleões! E assim será sempre enquanto for a maioria a fazer a lei.
Depois de termos
indicado ligeiramente os vícios fundamentais das assembléias representativas,
deveríamos agora mostrar essas assembléias funcionando. Deveríamos mostrar como
todas, desde a Convenção até ao conselho da Comuna de 1871, desde o Parlamento
inglês até ã Skoupchtchina sérvia, estão eivadas de nulidade; como as suas
melhores leis têm sido apenas - segundo a expressão de Buckle - a abolição das
leis anteriores, como essas leis têm sido arrancadas à força pelo povo, por meio
insurrecionais. Seria uma grande história que ultrapassaria os limites deste
capítulo.
Mas mesmo quem
souber raciocinar sem se deixar sugestionar pelos preconceitos da nossa viciosa
educação encontrará por si próprio muitos exemplos na história do governo
representativo dos nossos dias. E compreenderá que, qualquer que seja o corpo
representativo, seja ele composto por operários ou por burgueses, ou mesmo
amplamente aberto aos socialistas-revolucionários - conservará todos os vícios
das assembléias representativas.
Esses defeitos não
dependem dos indivíduos, são inerentes à própria instituição. Sonhar um
Estado operário, governado por uma assembléia eleita é o pior dos sonhos que nos
inspira a nossa educação autoritária.
Como se não pode
ter um bom rei, nem em Rieuzi, nem em Alexandre III, assim se não pode ter um
bom parlamento. O futuro socialista tem outra direção: ele abrirá à humanidade
caminhos novos na ordem política, como na ordem econômica.
Parte IV
É principalmente
observando a história do regime representativo, a sua origem e a maneira como a
instituição se adulterou à medida que se desenvolveu o Estado, que nós
compreendemos que ela deu já tudo o que tinha a dar, e que deve ceder o lugar a
um novo molde de organização política. Não precisamos ir
muito longe; vejamos o século XII e a libertação das Comunas.
No meio da
sociedade feudal produz-se um grande movimento libertário. As cidades
libertam-se dos senhores. Os seus habitantes "juram" a defesa mútua; declaram-se
independentes dentro das suas muralhas; organizam-se para a produção e a troca,
para a indústria e o comércio; criam as suas cidades que durante três ou quatro
séculos servem de refúgio ao trabalho livre, às artes, às idéias - que lançam os
fundamentos dessa civilização que hoje nós glorificamos.
Longe de serem de
origem puramente romana, como pretenderam Raynouard e Lebas em França (seguido
por Guizot e, em parte, por Augusto Thierry), Eichhorn, Gaupp e Savigny na
Alemanha; longe de serem de origem puramente germânica, como o afirma a escola
brilhante dos "germanistas", as Comunas foram um produto natural da idade média
e da importância sempre crescente dos burgos como centros de comércio e de
indústria. É por isso que simultaneamente, na Itália, em Flandres, na Gália, na
Germânia, no mundo Escandinavo e no mundo Eslavo, onde a influência romana é
nula e a influência germânica insignificante, nós vemos afirmar-se pela mesma
época, isto é, nos séculos XI e XII, essas cidades independentes que enchem três
séculos com a sua vida movimentada e mais tarde se tornam os elementos
constituídos dos Estados modernos.
Conjurações de
burgueses que se armam para a defesa e criam no interior uma organização
independente dos seus senhores temporais ou eclesiásticos, tanto como do rei, -
as cidades livres florescem logo dentro dos seus muros; e embora procurem
substituir-se ao senhor no domínio das aldeias, respiram o mesmo sopro de
liberdade. Nus sumes homes cum il sunto, - "Nós somos homens como eles", cantam
os aldeões caminhando para a libertação dos servos.
"Asilos abertos à
vida de trabalho", as cidades libertadas constituem-se no interior como ligas de
corporações independentes. Cada corporação tem a sua jurisdição, a sua
administração, a sua milícia. Cada qual é livre, não só no que diz respeito ao
seu trabalho ou a seu comércio, mas em tudo o que o Estado lhe atribui mais
tarde: instrução, medidas sanitárias, infrações aos costumes, questões penais e
civis, defesa militar. Corpos políticos, ao mesmo tempo industriais e
comerciais, as corporações unem-se pelo fórum o povo reunido ao som dos sinos
nas grandes ocasiões, ou para julgar os casos entre as corporações, ou para
decidir questões relativas a toda a cidade, ou para se entenderem sobre os
grandes empreendimentos comunais que exigiam o concurso de todos os
habitantes.
Na Comuna,
sobretudo no princípio - ponto de ligação com o governo representativo - a rua,
a seção, toda a cidade, toma as deliberações, - não por maioria mas por
discussão até que os partidários das duas opiniões opostas ou diferentes acabem
por aceitar voluntariamente mesmo para experiência, a opinião do maior
número.
Existia acordo? - A
resposta está nas suas obras que nós não cessamos de admirar sem as podermos
ultrapassar. Tudo o que ficou de belo do fim da idade média é obra dessas
cidades. As catedrais, esses monumentos gigantescos que contam em pedra, a
história, as aspirações das comunas, são a obra dessas corporações, trabalhando
por piedade, por amor da arte e da cidade (não era como os fundos municipais que
as catedrais de Reims, de Rouem, poderiam pagar-se) e rivalizando entre si na
edificação das suas muralhas.
É às Comunas
libertadas que nós devemos o renascimento da arte, é às corporações de
mercadores, por vezes a todos os habitantes da cidade que contribuíam cada um
com a sua parte para a organização, preparação e provisões de uma caravana ou de
uma flotilha, que nós devemos esse desenvolvimento do comércio que deu depois as
ligas hansiáticas e as descobertas marítimas. É às corporações industriais,
estupidamente difamadas depois pela ignorância e egoísmo dos exploradores da
indústria, que nós devemos a criação de quase todas as artes industriais cujos
benefícios gozamos hoje. Mas a Comuna da
idade média tinha que perecer. Dois inimigos a atacavam ao mesmo tempo: o de
dentro e o de fora.
O comércio, as
guerras, a dominação egoísta sobre o campo contribuíram poderosamente para
aumentar a desigualdade no seio da Comuna, para empobrecer uns e enriquecer
outros. Durante algum tempo a corporação impediu o desenvolvimento do
proletariado no seio da cidade, mas bem depressa ela sucumbiu na luta desigual.
O comércio sustentado pela pilhagem, as guerras contínuas de que a história da
época cheia, empobreciam as outras; a burguesia nascente trabalhava para
fomentar a discórdia, para exagerar as desigualdades de fortuna. A cidade
dividiu-se em ricos e pobres, em "brancos" e "negros"; começou a luta das
classes e com ela o Estado no seio da Comuna. À medida que os pobres iam se
tornando cada vez mais pobres, sujeitos cada vez mais aos ricos pela usura,
ia-se estabelecendo na Comuna a representação municipal, o governo por
procuração, isto é, o governo dos ricos. A Comuna constituía-se em Estado
representativo, com cofre municipal, milícia mercenária, condottieri armados,
serviços públicos, funcionários. Ela própria um Estado em ponto pequeno, não era
natural que fosse absorvida pelo estado em ponto grande que se constituía sob os
auspícios da realeza? Minada já no interior, foi na verdade absorvida pelo
inimigo exterior - o rei.
Enquanto as cidades
livres floresciam, constituía-se às suas portas o Estado
centralizado.
Nasceu longe do
ruído do fórum, longe do espírito municipal que inspirava as cidades
independentes. É numa cidade nova, Paris, Moscou, - amontoado de aldeias, - que
o poder nascente da realeza se consolidou. Que era então o rei? Um chefe de
bando como os outros. Um chefe cujo poder se estendia apenas sobre o bando e que
recebia o tributo dos que lhe queriam comprar a paz. Desde que, de simples
defensor das muralhas tentava tornar-se senhor da cidade, o fórum o expulsava.
Refugiou-se pois numa aglomeração, numa cidade nova. Aí, tirando a sua riqueza
da exploração do trabalho dos servos, não encontrando obstáculos na plebe
turbulenta, começou pelo dinheiro, pela fraude, pela intriga e pelas armas, o
lento trabalho de aglomeração, de centralização, que as guerras da época, as
invasões contínuas favoreciam, - direi mesmo que impunham, - simultaneamente a
todas as nações européias, às Comunas já em decadência, Estados dentro dos seus
muros, serviram-lhe de mira e de modelo. Tratava-se apenas de as englobar pouco
a pouco, de lhe apropriar uns órgãos, de as fazer servir o desenvolvimento do
poder real. Foi o que a realeza fez, primeiro com muitas precauções e astúcia e
depois cada vez mais brutalmente à medida que sentia aumentarem as suas
forças.
O direito escrito
nascera já, ou melhor cultivava-se, nas cartas das Comunas. Serviu de base ao
Estado. Mais tarde o direito romano dá-lhe a sua sanção, ao mesmo tempo que lhe
dá a autoridade real. A teoria do poder imperial, desenterrada dos glossários
romanos, propaga-se em benefício do rei. A Igreja, por seu lado, apressa-se a
dar-lhe a sua benção, e depois de ter falhado na sua tentativa de construir um
Império universal, concentra-se em volta daquele por intermédio do qual esperava
reinar um dia sobre a terra.
Durante cinco
séculos de realeza prosseguem esse lento trabalho de aglomeração, amotinando os
servos e as Comunas contra o senhor, e mais tarde esmagando os servos e as
Comunas com o auxílio do senhor, tornando-se seu fiel servidor. Começa
lisongeando as Comunas mas espera que as lutas intestinas lhe abram as portas,
lhe ponham à disposição os seus cofres de que ela se apodera e enche os
mercenários. Procede contudo para com as Comunas com precaução: reconhece-lhes
vários privilégios, quando as submete ao seu domínio.
Chefe dos soldados
que não lhe obedecem se não quando ele lhes procura presa para saquearem, o rei
esteve sempre rodeado de um conselho dos seus sub-chefes, que no século XIV e XV
formam o seu conselho de Nobreza. Mais tarde, vem juntar-se a este conselho um
conselho do clero. E à medida que o rei se vai apoderando das Comunas, convida a
irem à sua corte, - sobretudo nas épocas críticas, - os representantes das suas
"boas cidades", para lhes pedir subsídios.
Foi assim que
nasceram os parlamentos. Mas, - notemos bem isso - esses corpos representativos,
como a própria realeza, tinham um poder muito limitado. O que se lhes pedia era
apenas um auxílio pelos delegados das cidades, ainda era preciso que elas o
retificasse. Quanto à administração interior das Comunas, a realeza não tinha
nada com isso. - "Tal cidade está pronta a dar-vos tal subsídio para repelir tal
invasão. Consente em aceitar uma guarnição para servir de praça forte contra o
inimigo", - tal era o mandato do representante da época. Que diferença do
mandato ilimitado, compreendendo tudo o que há, que nós damos hoje aos nossos
deputados. O mal estava feito.
Alimentada pelas lutas dos ricos com os pobres, a realeza constituira-se sob o
pretexto da defesa nacional.
Mas bem depressa,
vendo o desperdício dos seus subsídios à corte real, os representantes das
Comunas procuram pôr-lhe termo. Impõem-se à realeza como administradores do
tesouro nacional; e na Inglaterra, apoiados pela aristocracia, conseguem ser
aceitos como tal. Na França, depois do desastre de Poitiers, estavam quase a
arrogar-se esses direitos; mas Paris insurrecionada por Étienne Marcel é
reduzida ao silêncio, ao mesmo tempo que a Jacquerie, e a realeza sai da luta
com uma força nova.
Desde então tudo
contribui para a concentração da realeza, para a centralização dos poderes na
mão do rei. Os subsídios transformam-se em impostos e a burguesia apressa-se a
pôr ao serviço do rei o seu espírito de ordem e administração. A decadência das
Comunas, que sucumbem uma após outra perante o rei; a fraqueza dos camponeses
reduzidos cada vez mais à servidão, econômica ou mesmo pessoal; as teorias do
direito romano desenterrada pelos juristas; as guerras contínuas - fonte
permanente de autoridade; - tudo favorece a consolidação do poder real. Herdeiro
da organização comunal, apodera-se dela para se intrometer cada vez mais na vida
dos seus súditos - de tal forma que no tempo de Luís XIV ele pôde exclamar: "o
Estado sou eu"!
Desde então é a
decadência, o envilecimento da autoridade, caindo nas mãos das cortesãs,
procurando erguer-se sobre Luís XVI pelas medidas liberais do princípio do
reinado, mas sucumbindo logo o peso das suas culpas. O que faz a grande
Revolução quando ataca a autoridade do rei?
O que tornou
possível essa Revolução foi a desorganização do poder central, reduzido durante
quatro anos à impotência absoluta, ao papel de simples registrador dos fatos
consumados; é a ação espontânea das cidades e dos campos arrancando ao poder
todas as suas atribuições, recusando-lhe o imposto e a obediência.
Mas a burguesia que
tinha uma importância maior podia acomodar-se com este estado de coisas? Ela via
o povo, depois de ter abolido os privilégios dos senhores, ia combater os da
burguesia urbana e rústica, e procurou domina-lo. Para isso fez-se defensora do
governo representativo e trabalhou durante quatro anos com toda força de ação e
de organização que se lhe conhece, para incutir na nação esta idéia. O seu ideal
era o de Étienne Marcel: um rei que, em teoria, está investido dum poder
absoluto, mas que na realidade se acha reduzido a zero por um parlamento,
composto evidentemente pelos representantes da burguesia. A onipotência da
burguesia pelo parlamento, encoberta pela realeza - eis o seu fim. Se o povo lhe
impõe a República é contra a vontade que ela a aceita, e dela procura
desembaraçar-se o mais depressa possível.
Atacar o poder
central, despojá-lo das suas atribuições, descentralizar, pulverizar o poder
seria confiar ao povo os seus negócios, seria correr o risco duma revolução
verdadeiramente popular. É por isso que a burguesia procura reforçar cada vez
mais o poder central, investi-lo de poderes em que o próprio rei não ousa
pensar, a concentrar tudo nele, a submeter-lhe tudo duma ponta a outra da França
- e depois apoderar-se de tudo pela Assembléia Nacional. Este ideal do
jacobino é ainda hoje o ideal da burguesia de todas as nações européias, e o
governo representativo é a sua arma.
Pode ser este o
nosso ideal? Os trabalhadores socialistas podem pensar em seguir, nos mesmos
termos, a revolução burguesa? Podem pensar em reforçar por sua vez, o governo
central entregando-lhe o domínio econômico, e confiar a direção de todas as
questões políticas, econômicas, sociais, ao governo representativo? O que foi um
compromisso entre a realeza e a burguesia deve ser o ideal do trabalhador
socialista? Evidentemente que
não.
A uma nova fase
econômica corresponde uma nova fase política. Uma revolução tão profunda como a
que imaginam os socialistas não podia adaptar-se à vida política do passado. Uma
sociedade nova, baseada na igualdade de condições, na posse coletiva dos
instrumentos de trabalho, não poderia contentar-se, mesmo oito dias que fosse,
com o regime representativo, nem com nenhuma das modificações com que
procurassem galvanizar esse cadáver.
Esse regime já
caducou. O seu desaparecimento é tão inevitável hoje como o foi outrora o seu
aparecimento. Corresponde ao domínio da burguesia. É por esse regime que a
burguesia impera há um século e terá de desaparecer com ele. Quanto a nós, se
queremos a revolução social, devemos procurar o modo de organização política que
corresponda ao novo modo de organização econômica.
Esse modo está já traçado. É a formação, do simples para o complexo, de grupos que se constituem livremente para a satisfação de todas as múltiplas necessidades dos indivíduos nas sociedades.
Esse modo está já traçado. É a formação, do simples para o complexo, de grupos que se constituem livremente para a satisfação de todas as múltiplas necessidades dos indivíduos nas sociedades.
As sociedades
modernas vão já nesse caminho. Em toda a parte o agrupamento livre, a livre
federação procura substituir a obediência passiva; contam-se já em dezenas de
milhões. Esses grupos livres e novos surgem todos os dias. Estendem-se e começam
já a cobrir todos os ramos de atividade humana; ciências, artes, indústria,
comércio, socorros, mesmo defesa do território e seguro contra o roubo e os
tribunais - nada lhes escapa, vão-se estendendo cada vez mais e hão de acabar
por abranger tudo o que o rei e o parlamento se arrogavam.
O futuro é do livre
agrupamento dos interessados e não da centralização governamental - é da
liberdade e não da autoridade. Mas antes de
esboçar o que surgiria do livre agrupamento, devemos ainda combater muitos
preconceitos políticos de que todos estamos embuídos e é o que vamos fazer nos
próximos estudos.
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