21 de junho de 2011

Brincadeira Tem Hora e Limite,Rafinha Bastos!

Entro no Twitter e me deparo com um link para a entrevista que a Rolling Stone fez com Rafinha Bastos – aquele cara de stand-up que o público brasileiro ama de paixão – e abro a página (ó o link aí: http://www.rollingstone.com.br/edicoes/56/textos/a-graca-de-um-herege/ )  já que no tweet alguém colocou aspas numa declaração que me deixou irritadíssmo. Lendo a entrevista, escrita por algum jornalista que notoriamente foi parcial (e com razão), fiquei puto da vida ao constatar que um cara de popularidade tão acentuada quanto esse comediante não tem noção do aspecto social que deve cumprir uma vez que tem um público tão amplo e tão jovem.

A pessoa que fez a entrevista com Bastos fora convidada a ver uma de suas apresentações. O show corria bem, com piadas sórdidas e preconceituosas, quando Rafinha soltou, “Só vejo mulher feia reclamar de ser estuprada… Elas não têm do que reclamar, deveriam encarar isso como uma oportunidade… O cara que estupra não merece ser preso, merece um abraço”. Segundo o relato do jornalista, o público recolheu suas risadas e pairou no ar um clima bem pesado, o repórter pôde ouvir uma mulher cochichar, “Que horror”, ao seu lado. (Rafinha Bastos, tu deu de falar merda agora? Me explica essa beiçada, se você for homem o bastante, ou melhor, entra num presídio bem lotado, onde os presos não toleram esse tipo de crime , e conta uma piada dessas, pra tu ver o que vai te acontecer!!) 

Após o show, Bastos e o jornalista teriam se dirigido a outro local para realizar a entrevista. Parece que o comediante havia ficado realmente incomodado pelo público não ter correspondido da maneira como esperava. Tentara se justificar, dizendo que é um cara polêmico e admitindo ser preconceituoso, acha que gordo é gordo por preguiça, que não faz piada para agradar todo mundo, que era da turma da bagunça no colégio e zoava quem dava “brecha”, que se acha fodão, assim como era seu pai e acrescentou que a piada do estupro costuma funcionar. Então, convidara o entrevistador para a próxima apresentação que iria fazer e repetira a piada. Daquela vez, para alívio de Bastos, todos tinham rido como se não houvesse amanhã. Na saída, cumprimentando o repórter, dissera, “Viu como a piada do estupro funciona?”, e tristemente foi comprovada a razão do comediante.

Não vou questionar os valores do Rafinha Bastos. Cada um tem seus próprios preconceitos. Ninguém está salvo de ser babaca. E também não estou aqui para dizer que ele deve parar de fazer suas piadas sobre gente obesa, órfãos, cadeirantes e outros. Todos têm direito de se sentirem tão ofendidos com as palavras dele quanto ele de ganhar dinheiro com humor negro – afinal, o público dele não é constituído só por homens, ricos, brancos, esbeltos, lindos, perfeitos e que só conhecem pessoas deste mesmo padrão, não é verdade? Consumidor sustenta o mercado e será assim sempre. Mas ainda acho que roubar dinheiro público ou ganhá-lo através da exploração da fé de pessoas humildes ainda é comparável ao lucro que alguns obtêm pregando a ignorância e cegueira social. O que eu quero questionar é a falta de consciência de um cidadão feito o Bastos. Ele, que muitas vezes aparece na mídia defendendo causas bacanas como a do #foraSarney, acrescentando que usa de sua popularidade para fortalecer a idéia, solta uma “piada” dessas com claro teor de apologia a um crime horrendo feito o estupro, mas nesse momento se esquece da forte influência que exerce sobre seus adoradores.

É claro que, neste caso, ninguém vai formar o “clã Rafinha Bastos” para sair na rua procurando mulheres “feias” para estuprar (coisa que vemos acontecendo com gente se juntando para bater em homossexuais, mas isso já é outro assunto), contudo, como é “a situação que cria o algoz”, um cara que vai praticar qualquer ato (ilícito ou lícito), em determinada ocasião, puxa de seu subconsciente todos os motivos que o justificam ou não.

Assim, o cara nunca vai admitir que estuprou alguém porque teve aval do Rafinha Bastos, porque não é bem isso mesmo, mas a consciência o permite quando acredita que uma “piada” dessas faz sentido. Preconceito social é que cria um indivíduo preconceituoso, como naquele caso em que alguns seres incendiaram um índio pensando que era um mendigo. Eles fizeram isso porque foram os criadores do preconceito contra moradores de rua? Pois é… Ninguém é tão criativo, muito menos os preconceituosos desse nível. Espero que essa sequência de analogias tenha sido inteligível e não confusa.

Na própria entrevista, Bastos revela um fato marcante sobre seu pai, que também fazia graças como o filho, e conta que, quando criança, fora ao zoológico onde havia cangurus que permaneciam imóveis. Ao questioná-lo do motivo que levava os animais a ficarem parados, ele respondeu ao filho que “era porque os cangurus só pulavam na Austrália”. Rafinha, que idolatrava o pai, disse que acreditou nisso até os vinte e poucos anos.

Só pra citar aqui: grupos minoritários quando se trata de poder (mulheres, negros, LGBT, indígenas, pobres, migrantes nordestinos nos grandes centros do Sul/Sudeste) são alvos constante de um certo tipo de humor duvidoso que privilegia o insulto, o preconceito, a humilhação.

Semana passada em entrevista à revista Rolling Stone Brasil Rafinha Bastos declarou que ‘mulheres feias’ deveriam agradecer caso fossem estupradas, afinal os estupradores estavam lhes fazendo ‘um favor’, uma ‘caridade’.

Hoje, mais uma vez, os ‘humoristas’ do CQC ocuparam as redes sociais e a mídia impressa. Desta vez com uma piada anti-semita feita por Danilo Gentili no twitter. Diante da reação nas redes e certamente da mobilização da comunidade judaica, Danilo Gentili não apenas apagou seu tweet anti-semita como pediu desculpas públicas à comunidade judaica. A ‘gracinha’ anti-semita de Danilo Gentili também gerou reação em cadeia de seus seguidores preconceituosos. É a geração CQC mostrando seu aprendizado ao insulto.

Embora não tenhamos tido o prazer de ver Danilo Gentili sequer pedir desculpas à população negra por suas piadas racistas (nem apagar seus respectivos tweets), não deixa de ser alentador o fato de ele ter de se render a uma comunidade organizada e com o poder de pressão como a judaica.

E quanto a Rafinha Bastos será que o veremos se retratar por suas piadas de mau gosto, ofensivas às mulheres e de apologia ao estupro? O mesmo, já conhecido por piadas comuns e preconceituosas, ataca agora com sua versão machista. Cansado de reproduzir chavões sobre gordos, carecas, deficientes, judeus e pagodeiros, o humorista achou que seria “engraçado” fazer apologia ao estupro. “Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra caralho. Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e sim uma oportunidade”, esse é parte do texto apresentado por Rafinha em seu stand up.


O estupro é uma das formas mais graves de violência de gênero. Não é apenas a agressão física que incomoda, mas sim a opressão psicológica, a violação do corpo, do íntimo, a submissão e a humilhação que deixam marcas profundas nas vítimas. A piada, que para Rafinha Bastos parecia inovadora, é tão velha quanto nossa civilização. A ideia machista que nos ensina “não seja estuprada” em vez de “não estupre”, está enraizada em nossa sociedade e contribui para que a responsabilidade pela violência seja atribuída à vítima e não ao agressor. Justificar um estupro pelo tamanho da saia que a mulher usava ou pela natureza do homem, incapaz de controlar seus “instintos”, é cruel. Nada justifica ou miniminiza a violência sexual, independente da situação da mulher, ela continua sendo vítima da agressão.

Outra ideia comum é de que existem mulheres “estupráveis”. Em alguns casos o estupro é encarado como cortesia. É o que defende Rafinha Bastos: mulheres fora do padrão de beleza, solteironas ou lésbicas devem encarar a violência sexual como um favor.

Segundo dados do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas para a América Latina, 33% das mulheres entre 16 e 49 anos de idade já sofreram algum tipo de abuso sexual, e a cada 12 segundos uma mulher é violentada no Brasil. O estudo ainda revela que 70% dos casos ocorrem dentro de casa, onde os agressores são membros da família da vítima. Apesar dos números revelarem o tamanho do problema, o assunto não é debatido e mulheres ainda são silenciadas em meio a chacotas.

O humor inteligente deve questionar os padrões estabelecidos pela sociedade, trazer a tona a hipocrisia e os preconceitos existentes. Deve incitar a reflexão a cerca de temas importantes. Mas Rafinha Bastos, através do humor ofensivo, somente perpetua as ideias de uma sociedade conservadora. Insultar minorias, difundir preconceitos é o que a sociedade faz há milhares de anos. Não há nada de novo ou irreverente, somente a pobreza de conteúdo e a chatice das piadas velhas.
A Secretaria Especial de Políticas para Mulheres publicou ontem uma nota de repúdio às piadas de apologia ao estupro do Rafinha Bastos e, hoje, a Ouvidoria desta Secretaria oficiou o Ministério Público Federal por meio do Ofício nº 926/2011, entendendo que tais declarações fazem apologia ao crime de estupro.

Nota de repúdio às piadas de mau gosto do “humorista (aonde?)” Rafinha Bastos

http://www.sepm.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2011/05/nota-de-repudio-as-piadas-de-mau-gosto-do-201chumorista201d-rafinha-bastos

A Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) vem a público manifestar sua indignação pela maneira como o “humorista” Rafinha Bastos, da TV Bandeirantes, faz piadas com os temas estupro, aborto, doenças e deficiência física. Segundo a edição desse mês da Revista Rolling Stone, durante seus shows de stand up, em São Paulo, ele insulta as mulheres ao contar anedotas sobre violência contra as mulheres.“Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra caralho. Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e sim uma oportunidade. Homem que fez isso [estupro] não merece cadeia, merece um abraço”. Isso não é humor, é agressão gratuita, sem graça, dita como piada. É lamentável que uma pessoa – considerada pelo jornal The New York Times como a mais influente do mundo no twitter -, expresse posições tão irresponsáveis e preconceituosas. Estupro é crime hediondo e não requer, em nenhuma hipótese, abordagem jocosa e banalizada.

Vale lembrar que qualquer mulher forçada a atos sexuais, por meio de violência física ou ameaça, tem seus direitos violados. Não há diferenciação entre as vítimas e, tampouco, a gravidade e os danos deste crime diminuem de acordo com quaisquer circunstâncias da agressão. Assim, a SPM condena a banalização de tais preconceitos e, como organismo que visa, sobretudo, enfrentar a desigualdade para promover a igualdade entre os gêneros, a Secretaria repudia esse tipo de “humor” e qualquer forma de violação dos direitos das mulheres. Humor inteligente e transgressor não se faz com insultos e nem preconceitos. A sociedade não quer voltar à era da intolerância e, sim, dar um passo adiante.

Então, me pergunto, quantos jovens que idolatram Rafinha Bastos vão acreditar em muitas  coisas que o comediante diz até alta idade como verdades absolutas? E até fazer besteiras por causa disso?
 Sim, eu, tanto como homem quanto como ser humano, repudio o estupro, fecho com a mulherada do Slut Walk Brasil, ou Marcha das Vadias, como quieram os puritanos (www.slutwalkbrasil.blogspot.com), estou junto com todas as vítimas, familiares e amigos pela “piada” infame de Bastos. Incitação ao crime não deve ser encarada como humor, seu pé no saco difsfarçado de comediante!

O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) pediu abertura de inquérito policial contra o humorista Rafinha Bastos, do CQC (Band), para apurar uma suposta prática de incitação ao crime e de apologia ao estupro após as polêmicas declarações dele num show de stand-up comedy e reproduzidas na edição de maio da revista Rolling Stone brasileira.

Na ocasião, Bastos disse que "toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra c... Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus". E foi além, dizendo que o homem "que cometeu o ato merecia um abraço, e não cadeia".

O pedido de inquérito foi feito pela promotora de Justiça Valéria Diez Scarance Fernandes, coordenadora do Núcleo de Combate à Violência Doméstica e Familiar de São Paulo. Ela encaminhou nesta quinta-feira (7) um ofício ao delegado-diretor do Departamento de Polícia Judiciária (DECAP), Carlos José Paschoal de Toledo, pedindo a abertura do inquérito contra o humorista.

No documento, Valéria diz que Rafinha compara publicamente o estupro a "uma oportunidade" para determinadas mulheres e o estuprador a um benfeitor, digno de “um abraço”. Em nota, a promotora se justificou:

- O estupro é um crime. O estuprador é um criminoso que deve ser punido e não publicamente incentivado.

A requisição de instauração de inquérito é resultado de representação feita à Promotoria de Justiça pela coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Thais Helena Costa Nader.

Leia abaixo o desafio da presidente do Conselho Estadual da Condição Feminina a Bastos:


“Eu convido Rafinha Bastos a marcar uma hora comigo e as demais 32 integrantes do Conselho de Defesa da Condição Feminina para que ele entenda, exatamente, o que é um estupro”, disse Rosmary, presidente do Conselho, à reportagem. “A piada que ele fez continua repercutindo, o que é uma lástima. Rafinha extrapolou da condição de humorista, fez uma frase completamente inaceitável e nefasta”(nota do Boteco do Valente:Toma, Rafinha, pois quem gosta de caçar chifre na cabeça de cavalo, uma hora acha, e você achou bonitinho o seu, seu mané!).


Rosmary, que foi a primeira titular de uma delegacia da mulher no Brasil, há mais de 20 anos – hoje, só no estado de São Paulo existem 128 delas --, acredita que Rafinha não pode se recusar a aceitar. “Se ele tiver um mínimo de sensibilidade, virá até nós entender o estrago que fez com essa frase”, afirmou. “A violência contra a mulher está aumentando e, quando uma pessoa influente como ele faz esse tipo de coisa, só piora tudo”. A delegada lembrou que, tempos atrás, o Brasil não fazia parte das estatísticas mundiais de violência contra a mulher. “Mas, hoje, somos o décimo país com mais crimes desse tipo”.

Rosmary fez questão de passar, para o próprio Rafinha Bastos o endereço e telefone do Conselho Estadual da Condição Feminina para que Rafinha Bastos agende o encontro com ela e as 32 conselheiras. “Ele pode ligar para (11) 32 21 63 74 e falar com a minha secretária. Proponho o encontro aqui mesmo, na sede do Conselho, rua Antonio de Godoy, 122, 6º andar. Estamos esperando por ele”. É com você, Rafinha? Vai ser homem o bastante pra topar o desafio ou  vai se cagar todo de medo?

Emma Goldman – Casamento e Amor

CASAMENTO E AMOR

Emma Goldman

A noção popular em torno do casamento e do amor é a de que eles são sinônimos, que eles afloram dos mesmos motivos e cobrem as mesmas necessidades humanas. Como tantas outras noções populares, também esta não repousa em fatos concretos, mas sob superstições.

Casamento e amor não possuem nada em comum; estão tão apartados como pólos; e são, de fato, antagônicos entre si. Sem dúvidas, certos casamentos são resultado do amor. Entretanto, não é porque o amor só se afirma em casamento; é antes porque poucas pessoas conseguem superar completamente uma convenção. Para um grande número de homens e mulheres hoje em dia, o casamento nada é senão uma farsa, mas a ele se submetem por amor à opinião pública. Em todo caso, enquanto é verdade que certos casamentos baseiam-se no amor e enquanto é igualmente verdade que certas vezes o amor continua durante a vida conjugal, eu sustento que isso se dá independentemente do casamento e não devido a ele.

Por outro lado, é completamente falso que do casamento resulte amor. Um caso milagroso se faz ouvir, em raras ocasiões, de cônjuges que caem em amor depois de casados, mas em exame amiúde aí se encontrará um mero ajuste ao inevitável. Certamente a habituação ao outro está distante da espontaneidade, da intensidade, e da beatitude do amor, sem o que a intimidade do casamento deve revelar-se degradante para ambos homem e mulher.

O casamento, primeiramente, é um arranjo econômico, um pacto de seguro. Só difere do contrato comum de seguro de vida naquilo que tem de mais obrigatório, de mais exigente. Os retornos são insignificantemente pequenos quando comparados aos investimentos. Ao se contratar uma apólice de seguro se paga em dólares e centavos, mas nos resta sempre a liberdade de descontinuar os pagamentos. Entretanto, se o marido é o prêmio do seguro, ela paga por isso com seu nome, sua privacidade, sua auto-estima, com sua própria vida “até que a morte os separe”. Além do que, o contrato do casamento a condena a uma dependência vitalícia, ao parasitismo, a completa inutilidade individual bem como social. O homem paga a sua parte também, mas como sua esfera é maior, o casamento não o limita tanto como à mulher. Ele sente suas correntes pesarem mais num sentido econômico.

E assim o mote do Inferno de Dante se aplica ao casamento com a mesma força. “Deixai toda esperança, ó vós que entrais!”.

Somente um estúpido completo nega que o casamento é um fracasso. Basta relancear a vista sobre as estatísticas do divórcio para compreender como é verdadeiramente amargo um casamento fracassado. Tampouco o argumento filisteu estereotipado, o da lassidão das leis do divórcio e o da crescente frouxidão da mulher, dará conta do fato de que: em primeiro, cada décimo segundo casamento termina em divórcio; segundo, que desde 1870 divórcios cresceram de 28 para 73 a cada população de cem mil; terceiro, que o adultério, desde 1867, como causa de divórcio cresceu 280.7 por cento; quarto, que a deserção aumentou em 369.8 por cento.

Somado a estes números surpreendentes, há ainda um vasto material dramático e literário melhor elucidando o assunto. Robert Herrick, em Together; Pinero, em Mid-Channel; Eugene Walter, em Paid in Full, e dezenas de outros escritores estão discutindo a aridez, a monotonia, a sordidez, e a inadequação do casamento como fator pela harmonia e pelo entendimento.

O estudioso social sério não se contentará com a popular desculpa superficial para este fenômeno. Ele terá de escavar a vida mesma dos sexos profundamente adentro para conhecer o porque de o casamento revelar-se tão desastroso.

Edward Carpenter diz que, por detrás de todo casamento, persiste uma ambiência vitalícia dos dois sexos; ambiências tão diferentes entre si que homem e mulher devem permanecer estranhos. Separados por uma muralha intransponível de superstição, costume, e hábito, o casamento não tem a potencialidade de desenvolver o conhecimento e o respeito mútuo, sem o que toda união está destinada ao fracasso.

Henrik Ibsen1, o inimigo de toda farsa social, foi provavelmente o primeiro a conceber esta grande verdade. Nora abandonou o marido, não porque – como queria a crítica estúpida – estaria cansada de suas responsabilidades ou sentia que precisava dos direitos da mulher, mas porque veio saber que, durante oito anos convivera com um estranho e agora pariu uma criança sua. Pode haver qualquer coisa de mais humilhante, de mais degradante do que a proximidade vitalícia entre dois estranhos? Não é preciso que a mulher conheça nada do homem, salvo sua renda. Com relação ao conhecimento da mulher – o que há para se conhecer sobre ela exceto se possui uma boa aparência? Não superamos ainda o mito teológico em que a mulher não tem alma, em que é meramente um apêndice do homem, feita da costela do cavalheiro só para sua conveniência, esse que de tão forte ficara com medo da própria sombra.

Porventura da má qualidade do material, donde a mulher tornou-se responsável por sua própria inferioridade. Em todo caso, mulher não tem alma – o que há para se conhecer sobre ela? Além do que, quanto menos alma tem uma mulher, maior seu tino para esposa, o mais prontamente irá absorver-se ao marido. É essa servil aquiescência à superioridade do homem que manteve a instituição do casamento aparentemente intacta por um tempo tão longo. Mas agora que a mulher está vindo a si, agora que ela está crescentemente consciente de si como um ser exterior à graça do mestre, a sagrada instituição do casamento está gradualmente sendo minada, e nenhum tanto de lamentação sentimental poderá evitar.

Quase desde a infância, é dito à garota comum que o casamento é seu objetivo final; portanto seu treino e educação têm de ser direcionados para esse fim. Feito a besta muda na engorda, ela é preparada para o abate. Mas para ela, estranho dizer, é permitido conhecer muito menos sobre sua função como esposa e mãe do que para o artesão comum sobre seu ofício. Para uma garota respeitável, é indecente e imundo conhecer qualquer coisa da relação marital. Oh, pela incoerência da respeitabilidade, requerer votos de casamento para tornar algo imundo no mais puro e sagrado arranjo que ninguém ousa questionar ou criticar. Mas esta é exatamente a atitude do entusiasta comum do casamento. A futura esposa e mãe é mantida na mais completa ignorância em torno de sua única inclinação no campo competitivo — o sexo. E assim ela adentra com um homem numa relação vitalícia só para encontrar-se chocada, repelida e ultrajada além da medida pelo mais natural e saudável instinto, o sexo. É seguro dizer que uma grande percentagem da infelicidade, miséria, aflição e sofrimento físico do matrimônio se devem à ignorância criminosa em matéria de sexo que é exortada como uma grande virtude. Tampouco é de todo um exagero quando digo que devido a este fato deplorável, mais de um lar foi desfeito.

Se, entretanto, a mulher for livre e grande o bastante para aprender o mistério do sexo sem a sanção do Estado ou da Igreja, permanecerá condenada como completamente imprópria para ser esposa de um “bom” homem, sua bondade consistindo de um cérebro vazio e um bolso cheio de dinheiro. Pode haver qualquer coisa mais ultrajante do que a idéia de uma mulher saudável, em plena idade, cheia de paixão e vida, ter de negar a demanda da natureza, ter de reprimir seu desejo mais intenso, minar a sua saúde e quebrantar seu espírito, ter de aturdir sua visão e abster-se da profundidade e da glória da experiência do sexo, até que um homem “bom” chegue para tomá-la como esposa? Isto é precisamente o que o casamento significa. Como poderia tal arranjo terminar exceto em fracasso? Esse é um fator, embora não menos importante, que diferencia o casamento do amor.

A nossa era é prática. O tempo em que Romeu e Julieta arriscaram-se à fúria dos pais por amor, em que Gretchen expõs-se ao falatório dos vizinhos por amor, já era. Se, em raras ocasiões, pessoas jovens se permitem à luxúria do romance, em seguida os mais velhos cuidam para que, após pregados e martelados, se tornem “sensatos”.

A lição moral instilada na garota não é a de se o homem arrebatou o seu amor, mas: o “Quanto?”. O único Deus importante da vida prática americana: o homem consegue ganhar a vida? Consegue sustentar uma esposa? Esta é a única coisa que justifica o casamento. Gradualmente isto de todo satura o pensamento da garota; seus sonhos já não são de luares e beijos, risos e lágrimas; agora sonha em ir às compras e às boas pechinchas. Tal sordidez e pobreza da alma são elementos inerentes à instituição do casamento. O Estado e a Igreja aprovam esse ideal e não outro, simplesmente porque esse é o ideal que necessita que o Estado e a Igreja controle homens e mulheres.

Indubitavelmente há as pessoas que continuam considerando o amor superior a dólares e centavos. E isto é particularmente verdade para a classe daqueles cuja necessidade econômica forçou a que se auto-sustentassem. A tremenda mudança na posição da mulher operada por este poderoso fator é, de fato, fenomenal quando refletimos que há só um curto período desde o ingresso da mulher na arena industrial. Seis milhões de mulheres trabalhadoras assalariadas; seis milhões de mulheres com direitos iguais aos homens de serem exploradas, roubadas, ir à greve; ai, mesmo até de passar fome. Algo mais, my lord? Sim, seis milhões de trabalhadoras em todas as ocupações, desde o mais elevado trabalho intelectual até as minas e ferrovias, mesmo até detetives e policiais. Com certeza a emancipação está completa.

Apesar disso tudo, só um número muito pequeno do vasto exército das mulheres trabalhadoras enxerga o seu trabalho como situação permanente, na mesma luz que um homem o faz. Não importa quão decrépito seja este último, ele foi ensinado a ser independente, a se auto-sustentar. Oh, eu sei que ninguém é verdadeiramente independente em nossa moenda econômica; e ainda o espécime mais miserável de homem odeia ser um parasita; ou, em todo caso, pelo menos ser conhecido como tal.

A mulher considera transitória sua posição como trabalhadora, a ser deixada de lado pelo primeiro pretendente. É este o porque de ser infinitamente mais difícil organizar mulheres do que homens. “Porque devo me filiar a um sindicato? Vou me casar, ter um lar”. Ela desde a infância não foi ensinada a enxergar isso como sua convocação última? Ela aprende cedo o bastante que, apesar de não tão grande como a prisão de uma fábrica, o lar tem portões e grades ainda mais sólidas. Possui um guardião tão fiel que nada lhe pode escapar. A parte mais trágica, entretanto, é que o lar não a liberta da escravidão assalariada; apenas aumenta seus afazeres.

De acordo com as mais recentes estatísticas submetidas diante de um Comitê “em torno do trabalho, salários e congestão da população”, apenas em Nova York, dez por cento das trabalhadoras assalariadas são casadas, ainda que continuem no trabalho mais mal pago do mundo. Some a esta visão horrível o peso do serviço doméstico e o que resta da proteção e glória do lar? Como matéria de fato, até a garota classe-média não pode falar sobre um lar seu no casamento, desde que é o homem que cria sua esfera. Não é importante se o marido é um bruto ou um doce. O que desejo provar é que o casamento só garante um lar à mulher pela graça do marido. Ela gira em torno do lar dele, ano após ano, até que sua visão de vida e de relações humanas se torne tão rasa, estreita, e tediosa, como seu entorno. Pouco admira se ela vir a ser resmungona, trivial, arengueira, faladeira, insuportável, e expulsando assim o homem da casa. Se ela quisesse, não poderia ir; não há lugar para onde ir. Além do que, um curto período de vida conjugal, de completa rendição de todas as faculdades, incapacita absolutamente a mulher comum para o mundo exterior. Ela se torna indiferente à aparência, desajeitada em seus movimentos, dependente em suas decisões, covarde em seu julgamento, um fardo e um aborrecimento, cuja maioria dos homens cresce para odiar e desprezar. Atmosfera maravilhosamente inspiradora para o desenrolar da vida, não?

Mas e a criança, como será protegida, senão pelo casamento? Depois de tudo, não é esta a consideração mais importante a se fazer? A farsa, a hipocrisia! Casamento protegendo a criança, mas centenas de crianças abandonadas e sem lar. Casamento protegendo a criança, mas orfanatos e reformatórios lotados, a Sociedade pela Prevenção de Crueldade a Criança se mantendo ocupada resgatando as pequenas vítimas daqueles pais “amorosos”, para colocá-las sob cuidados mais amorosos ainda, da Gerry Society2. Oh, mas que pilhéria!

O casamento poderá levar o cavalo até a água, mas já pôde obrigá-lo a beber? A lei colocará o pai na detenção, irá vesti-lo em uniforme de presidiário; mas alguma vez já matou a fome das crianças? Se o pai não tem emprego, ou se esconde sua identidade, que faz então o casamento? Invoca a lei para levar o homem à “justiça”, colocá-lo em segurança atrás de portões fechados; seu trabalho, entretanto, não vai para criança, mas para o Estado. A criança só recebe uma memória enferrujada das listras do pai.

Com relação à proteção da mulher — aí reside a maldição do casamento. Ele não as protege verdadeiramente, e a idéia mesma é tão revoltante como um ultraje e um insulto à vida, tão degradante à dignidade humana, que condena para sempre esta instituição parasitária.

Feito aquele outro arranjo paternal — o capitalismo. Rouba do homem seus direitos, aturde o seu crescimento, envenena o seu corpo, o mantém na ignorância, na pobreza, na dependência, daí institui caridades que medram sobre os últimos vestígios do auto-respeito humano.

A instituição do casamento faz da mulher uma parasita, uma dependente absoluta. Incapacita-a para a luta da vida, aniquila sua consciência social, paralisa sua imaginação, daí impõe sua graciosa proteção que na realidade é um ardil, travestido a caráter humano.

Se a maternidade é a mais elevada realização da natureza da mulher, que outra proteção poderia requerer, salvo amor e liberdade? Casamento só contamina, ultraja, e corrompe essa realização. Não diz à mulher: darás à luz vida somente se me seguires? Não a degrada e a envergonha quando ela se recusa a vender seu direito à maternidade vendendo a si mesma? O casamento não é somente uma sanção para a maternidade, mesmo quando concebida no ódio, na compulsão? Mas quando a maternidade é de livre escolha, do amor, do êxtase, da paixão desafiante, ele não coloca uma coroa de espinhos numa cabeça inocente e crava em letras de sangue o hediondo epíteto de Bastardo? Contivesse o casamento todas as virtudes alegadas, seus crimes contra a maternidade bastariam para excluí-lo para sempre do reino do amor.

Amor, o mais forte e mais profundo elemento de toda a vida, o anunciador da esperança, da alegria, do êxtase; amor, o desafiador de todas as leis, de todas as convenções; amor, o libérrimo, poderosíssimo modelador do destino humano; como pode uma força que a tudo compele ser sinônimo daquela pobre erva daninha gerada pelo Estado e a Igreja, o casamento?

Amor livre? Como se o amor fosse outra coisa que não livre! O homem comprou cérebros, mas todos os milhões no mundo falharam em comprar o amor. O homem subjugou os corpos, mas todo o poder na terra foi incapaz de subjugar o amor. O homem conquistou nações inteiras, mas todos os seus exércitos não puderam conquistar o amor. O homem acorrentou e agrilhoou o espírito, mas tem sido absolutamente indefeso diante do amor. Do alto de um trono, com todo esplendor e pompa que o ouro pode comandar, os homens são ainda pobres e desolados se o amor os perpassa. Mas quando fica, o casebre mais pobre irradia calor, cor e vida. E assim, o amor possui o poder mágico para fazer de um mendigo um rei. Sim, o amor é livre; não pode habitar outra atmosfera. Em liberdade se dá sem reservas, abundantemente, completamente. Todas as leis nos estatutos, todos os tribunais do universo, não podem arrancá-lo do solo, uma vez que o amor tenha fincado raízes. Entretanto, se o solo é estéril, como o casamento poderia fazê-lo fruir? É feito a última luta desesperada da vida breve contra a morte.

O amor não precisa de proteção; já é sua própria proteção. Tão logo vidas sejam geradas pelo amor, nenhuma criança é desertada, passa fome ou vontade de afeição. Que isto é verdade, eu o sei. Conheço mulheres que se tornaram mães em liberdade dos homens que amaram. Poucas crianças na relação aproveitam o cuidado, a proteção, a devoção que a maternidade livre é capaz de conferir.

Os defensores da autoridade temem o advento de uma maternidade livre, receando que ela irá roubar-lhe as vítimas. Quem combateria nas guerras? Quem geraria riqueza? Quem faria o policial, o carcereiro, se a mulher se recusasse à reprodução indiscriminada de crianças? A raça, a raça! – grita o rei, o presidente, o capitalista, o padre. A raça deve ser preservada, embora a mulher degradada à mera máquina — a instituição do casamento é nossa única válvula de segurança contra o pernicioso despertar sexual da mulher. Mas em vão, estes frenéticos esforços para manter um estado de sujeição. Em vão, também os éditos da Igreja, o louco ataque dos governantes, em vão, até mesmo o braço da lei. A mulher já não quer mais tomar parte na produção de uma raça de seres humanos doentios, débeis, decrépitos, miseráveis, que não possuem nem a força nem a coragem moral para se libertar do jugo da pobreza e da escravidão. Ao invés, deseja poucas crianças, mas superiores, geradas e criadas em amor e através da livre escolha; não por compulsão, como impõe o casamento. Nossos falso-moralistas têm ainda de aprender o profundo senso de responsabilidade pela criança que o amor em liberdade despertou no seio da mulher. Melhor seria renunciar para sempre a glória da maternidade do que dar à luz uma vida numa atmosfera onde só se respira destruição e morte. E se ela vem a ser mãe, é para dar à criança o mais profundo e melhor que seu ser pode oferecer. Crescer com a criança é seu mote; e ela sabe que somente dessa maneira é que pode ajudar a construir a verdadeira masculinidade e feminilidade.

Ibsen deve ter vislumbrado uma mãe livre, quando, num golpe de mestre, retratou Ms. Alving3. Ela foi uma mãe ideal por superar o casamento e todos os seus horrores, por quebrar suas correntes, e libertar o espírito para voar, até que uma personalidade, regenerada e forte, lhe retornasse. Ai! Foi demasiado tarde para recuperar sua alegria de viver, seu Oswald; mas não demasiado tarde para compreender que o amor em liberdade é a única condição para uma vida bela. Aquelas que, feito Ms. Alving, que pagaram com sangue e lágrimas por seu despertar espiritual, repudiam o casamento como uma imposição, uma pilhéria baixa e sem graça. Elas sabem que só o amor é, quer dure um breve espaço de tempo ou pela eternidade, a única base criativa, inspiradora e elevada para uma nova raça e para um novo mundo.

Em nosso presente estado pigmeu, para a maioria das pessoas, o amor é, de fato, um estranho. Incompreendido e evitado, raramente finca raízes, e se o faz, tão logo seca e morre. Suas fibras delicadas não aturam o stress e a tensão do cotidiano maçante. Sua alma é complexa demais para ajustar-se à trama viscosa de nosso tecido social. Ele chora e geme e sofre com aqueles que precisam dele, mas faltam da capacidade de elevar-se ao cume do amor.

Algum dia, algum dia homens e mulheres se elevarão, alcançarão o pico da montanha, se encontrarão grandes e fortes e livres, prontos para receber, partilhar, e refestelar-se nos raios dourados do amor. Que fantasia, que imaginação, que gênio poético pode, mesmo que aproximadamente antever as potencialidades de tal força na vida de homens e mulheres. Se o mundo alguma vez dará à luz ao verdadeiro companheirismo e união, não será o casamento, mas o amor a concebê-lo.

Notas

1. Henrik Ibsen (1828-1906), literato escandinavo conhecido por sua tendência anarquista-individualista. A autora faz uma análise mais demorada da obra de Ibsen em seu livro “The Social Significance of the Modern Drama”. N. do T.
2. Referência a New York Society for the Prevention of Cruelty to Children, reconhecida como a primeira instituição devotada à “proteção do menor” nos E.U.A., em atividade desde 1874. Gerry Society é um outro modo de referir-se à mesma instituição. N. do T.
3. Ms. Alving é personagem de Ibsen na obra “Ghost”, uma análise desta obra e desta personagem encontra-se em livro já mencionado. N. do T.

Texto original: GOLDMAN, Emma. “Marriage and love” in: Anarchism and Other Essays. New York: Dover Publications, 1969. p. 227.

17 de junho de 2011

Oração do Desempregado


Jesus, abre-me uma porta!
Senhor, atende este clamor que brota do mais íntimo do meu coração: "abre-me uma porta!"... Só Tu sabes e conheces, Jesus Cristo, o momento de dificuldade pelo qual eu (diga aqui o seu nome) e toda a minha família estamos passando por causa do desemprego.
Tu sabes também, Senhor, com quanta esperança eu me aproximo de Ti para pedir que vás à minha frente, abrindo uma porta e preparando um emprego, para que eu possa, através de um trabalho digno, dar à minha família "o pão nosso de cada dia".
"Por que vós sois, ó meu Deus, minha esperança..." (Salmo 70, 5) peço ainda que me concedas todo ânimo, confiança, destemor e fortaleza, para sair de minha casa em busca deste trabalho, na certeza de que Tuas Mãos, estendidas a meu favor, baterão nestas portas antes de mim, preparando a minha entrada num emprego segundo a Tua vontade.
Confiando inteiramente na Tua Palavra que diz: "Batei e abrir-se-vos-á... ao que bater se lhe abrirá..." (Lc 11, 9) já agradeço, de todo o meu coração, porque acredito que "a Deus nenhuma coisa é impossível" (Lc 1, 37).

14 de junho de 2011

O Poder Nu (Bertrand Russell)

* editado em português clássico

Boteco do Valente apresenta:

O Poder Nu

( Capítulo número 6 de O Poder, por Bertrand Russell )

À MEDIDA que a crença e os hábitos que mantiveram o poder tradicional decaem, vão cedendo gradualmente lugar ou ao poder baseado em alguma crença nova, ou ao poder nu , isto é, à espécie de poder que não implica aquiescencia alguma por parte do súdito. Esse é o poder do carniceiro sobre o rebanho, de um exército invasor sobre uma nação vencida e da polícia sobre os conspiradores desmascarados. O poder da Igreja Católica sobre os católicos é tradicional, mas o seu poder sobre os hereges que são perseguidos é um poder nu. O poder do Estado sobre os cidadãos leais é tradicional, mas o seu poder sobre os rebeldes é um poder nu. As organizações que mantem o poder durante muito tempo passam, cm regra, por tres fases: primeira, a da crença fanática, mas não tradicional, que conduz à conquista; depois, a do assentimento geral ao novo poder, que se torna ràpidamente tradicional e, finalmente, aquela em que o poder, sendo usado agora contra todos os que rejeitam a tradição, se torna de novo nu. O caráter de uma organização sofre grandes transformações ao passar por essas fases.

O poder conferido pela conquista militar deixa de ser, depois de um período maior ou menor de tempo, meramente militar. Todas as províncias conquistadas pelos romanos, exceto a Judéia, se tornaram logo leais ao Império, deixando de sentir qualquer desejo de independencia. Na Ásia e na África, os países cristãos conquistados pelos maometanos submeteram−se, com pouca relutância, a seus novos governantes. O País de Gales submeteu−se, aos poucos, ao domínio ingles, ao passo que a Irlanda não o fez. Depois que os hereges albigenses foram sobrepujados pela força militar, seus descendentes se submeteram tanto interior como exteriormente à autoridade da Igreja. A conquista normanda produziu, na Inglaterra, uma família real que, depois de algum tempo, foi considerada como possuidora de um Direito Divino ao trono. A conquista militar só é estável quando seguida da conquista psicológica, mas os casos em que isso ocorreu são muito numerosos.

O poder nu, no governo interno de uma comunidade não recentemente submetida a uma conquista estrangeira, nasce de duas circunstâncias diferentes: primeiro, onde duas ou mais doutrinas fanáticas lutam pelo predomínio; segundo, onde todas as crenças tradicionais decaíram, sem que fossem substituídas por novas crenças, de modo que não há limites para a ambição pessoal. O primeiro caso não é puro, já que os adeptos de um credo predominante não estão sujeitos ao poder nu. Examinarei este ponto no capítulo seguinte, ao tratar do poder revolucionário. Limitar−me−ei, por ora, ao segundo caso.

A definição do poder nu é psicológica, sendo que um governo pode agir a descoberto em relação a alguns de seus súditos e não em relação a outros. Os exemplos mais cabais de que tenho notícia, à parte os de conquista estrangeira, são os das últimas tiranias gregas e os de alguns dos Estados italianos da Renascença.

A história grega nos fornece, como num laboratório, um grande número de experimentos em pequena escala que são de grande interesse para os que estudam o poder político. Os governos monárquicos hereditários da época homérica chegaram ao fim antes do começo dos registros históricos, sendo sucedidos por uma aristocracia hereditária. Na altura em que começa a história digna de crédito das cidades gregas, havia uma luta entre a aristocracia e a tirania. Com exceção de Esparta, a tirania foi vitoriosa, durante certo tempo, em toda a parte, mais foi substituída pela democracia ou por uma restauração da aristocracia, às vezes sob a forma de plutocracia. Esta primeira época de tirania abrangeu uma grande parte dos séculos VII e VI A. C. Não foi uma época de poder nu, como ocorreu no período posterior, de que me ocuparei de modo especial. Não obstante, preparou o caminho para a desordem e a violencia das épocas posteriores.

A palavra tirano não implicava, originàriamente, quaisquer qualidades más no governante, mas apenas ausencia de um título legal ou tradicional. Muitos dos primeiros tiranos governaram sabiamente, com o assentimento da maioria de seus súditos. Seus únicos inimigos implacáveis, regra geral, eram os aristocratas. A maioria dos primitivos tiranos era constituída de homens muito ricos, que compravam o poder e se mantinham mais devido a meios economicos do que militares. Devem ser comparados mais aos Medieis que aos ditadores de nossos dias.

Os primeiros tempos de tirania foram aqueles em que a cunhagem de moeda passou a ser usada, sendo que isso teve o mesmo efeito, quanto ao aumento do poder dos homens ricos, que o crédito e o papel−moeda em tempos recentes. Tem−se afirmado − embora eu não seja competente para julgar se com razão ou não − que a introdução da moeda estava ligada ao aparecimento da tirania; a posse de minas de prata, certamente, era uma ajuda para o homem que ambicionava tornar−se tirano. O uso do dinheiro, quando recente, perturba profundamente os costumes antigos, como se poderá ver em regiões da África que não se acham há muito sob domínio europeu. Nos séculos VII e VI antes de Cristo, tal efeito foi aumentar o poder do comércio e diminuir o das aristocracias territoriais. Antes do domínio da Ásia Menor pelos persas, as guerras, no mundo grego, eram poucas e sem importância, sendo que apenas uma pequena parte do trabalho cie produção era executada por escravos. As circunstâncias eram ideais para o poder economico, que debilitou o domínio da tradição do mesmo modo que o industrialismo a fez no século XIX.

Enquanto houve possibilidade de que todos fossem prósperos, o enfraquecimento da tradição foi mais benéfico do que prejudicial. Produziu, entre os gregos, um progresso mais rápido da civilização do que jamais ocorrera antes −com a possível exceção dos quatro últimos séculos. A liberdade da arte, das ciencias e da filosofia gregas é a de uma época próspera, que não sofreu os entraves da superstição. Mas a estrutura social não possuia o vigor requerido para resistir ao infortúnio, e os indivíduos não tinham os padrões morais necessários para evitar crimes desastrosos, quando a virtude não mais conduzia ao exito. Uma longa série de guerras diminuiu a população livre e aumentou o número de escravos. A própria Grécia caiu, finalmente, sob o domínio da Macedonia, enquanto que a Sicília helenica, apesar de revoluções cada vez mais violentas, guerras civis e tiranias, continuou a lutar contra o poder de Cartago e, depois, de Roma. As tiranias de Siracusa merecem a nossa atenção, tanto por apresentar um dos exemplos mais perfeitos de poder nu , como por haver influenciado Platão, que teve uma disputa com o velho Dionísio e procurou fazer com que o mais jovem se tornasse seu discípulo. As opiniões dos gregos posteriores, de todas as épocas subseqüentes, sobre os tiranos gregos em geral, foram grandemente influenciadas pelos contactos infortunados dos filósofos com Dionísio o Antigo e seus sucessores nos maus governos siracusanos.

A maquinaria da fraude − diz Grote − pela qual o povo era enganado e levado à submissão temporária, como um prelúdio da maquinaria da força, pela qual a submissão deveria ser perpetuada sem o seu assentimento, era coisa corriqueira entre os usurpadores gregos . Até que ponto as primitivas tiranias eram perpetuadas sem o assentimento popular, é coisa sobre a qual pode haver dúvidas, mas, quanto ao que se refere às tiranias posteriores, isso é, sem dúvida, verdadeiro. Tomemos, por exemplo, a descrição de Grote, baseada em Diodoro, do momento crítico da ascensão de Dionísio, o Antigo. As armas de Siracusa haviam sofrido derrotas e desgraças sob um regime mais ou menos democrático, e Dionísio, o líder escolhido pelos campeões de uma guerra vigorosa, exigia a punição dos generais vencidos.

Em meio do silêncio e da inquietude que reinavam na Assembléia de Siracusa, Dionísio foi o primeiro que se ergueu para dirigir−lhe a palavra. Discorreu longamente sobre um tema apropriado tanto para o temperamento de seus ouvintes como para seus próprios propósitos. Denunciou com veemencia os generais que, segundo ele, haviam traído a segurança de Siracusa ante os cartagineses − apontando− os como culpados da ruína de Agrigento e do perigo iminente em que todos se achavam. Expos seus crimes, reais ou supostos, não apenas com acrimonia e abundância de pormenores, mas, também, com uma violencia feroz, ultrapassando todos os limites de um debate legítimo, procurando condená−los a um assassínio ilegal, como a morte dos generais ocorrida recentemente em Agrigento. Tendes aí os traidores! Não espereis um julgamento ou um veredicto legais, mas lançai mão deles incontinenti infligindo−lhes uma justiça sumária . Essa exortação, brutal, era uma ofensa não só contra a lei como contra a ordem parlamentar. Os magistrados que presidiam a Assembléia censuraram Dionísio como perturbador da ordem e o multaram, como a lei lhes permitia. Mas seus partidários acorreram, ruidosos, em seu apoio. Filisto não só pagou imediatamente a multa, como declarou, em público, que continuaria pagando, durante todo o dia, as multas semelhantes que pudessem ser impostas − e incitou Dionísio a que persistisse em tal linguagem, que lhe parecia apropriada. O que começara como uma ilegalidade, agravava−se agora com um desafio aberto à lei. No entanto, tão debilitada se encontrava a autoridade dos magistrados, e era tão veemente o alarido que se erguia contra eles, na situação em que se achava a cidade, que não lhes era possível castigar ou fazer com que o orador se calasse. Dionísio prosseguiu em sua arenga em tom ainda mais inflamado, não só acusando os generais de haver traído, corruptamente, Agrigento, mas, também, denunciando os cidadãos mais destacados e ricos como oligarcas que exerciam um predomínio tirânico, que tratavam a maioria com desdém e se beneficiavam com os infortúnios da cidade. Siracusa − afirmou −jamais poderia ser salva, a menos que homens de caráter inteiramente diferente fossem investidos de autoridade − homens, não escolhidos pela riqueza ou par sua situação, mas de nascimento humilde, pertencentes ao povo pela sua posição e bondosos, em sua conduta, pela consciencia de sua própria fraqueza .

E, assim, se tornou tirano; mas a história não se refere a nenhuma vantagem que os pobres e os humildes hajam tido com isso. Confiscou, é verdade, as propriedades dos ricos, mas foi aos seus guardas pessoais que ele as deu. Sua popularidade logo se dissipou, mas não o seu poder. Poucas páginas adiante, deparamos com Grote a dizer: Sentindo mais do que nunca que o seu domínio repugnava aos siracusanos, e que se baseava apenas na força nua e crua, cercou−se de precauções provàvelmente mais fortes que as acumuladas por qualquer outro déspota grego .

A história grega é peculiar quanto ao fato de que, exceto em Esparta, a influencia da tradição era extraordinàriamente fraca na Grécia. Ademais, quase não havia moralidade política. Heródoto afirma que nenhum espartano sabia resistir a um suborno. Em toda a Grécia, era inútil fazer−se objeção a um político sob alegação de que ele recebia subornos do rei da Pérsia, pois seus adversários também o faziam, quando se tornavam suficientemente poderosos para que valesse a pena comprá−los.

O resultado disso era uma luta desordenada pelo poder pessoal, conduzida pela corrupção, arruaças e assassínios. Neste assunto, os amigos de Sócrates e Platão estavam entre os mais inescrupulosos. O resultado final, como se poderia prever, foi a subjugação por potencias estrangeiras.

Era costume lamentar−se a perda da independencia grega, pensando−se nos gregos como se fossem todos semelhantes a Solon e Sócrates. Quão pouca razão havia para se deplorar a vitória de Roma é coisa que se pode ver pela história da Sicília helenica. Não conheço melhor exemplo do poder nu do que a carreira de Agátocles, contemporâneo de Alexandre o Grande, que viveu de 361 a 289 A. C. e foi tirano de Siracusa durante os últimos vinte anos de sua vida. Siracusa era a maior das cidades gregas e, talvez, a maior cidade do Mediterrâneo. Sua única rival era Cartago, com a qual estava sempre em guerra, salvo durante curtos períodos, depois de alguma séria derrota sofrida por uma das combatentes. As outras cidades gregas da Sicília colocavam−se ora do lado de Siracusa, ora de Cartago, segundo a maré da política partidária. Em cada cidade, os ricos eram a favor da oligarquia, e, os pobres, da democracia. Quando os partidários da democracia saíam vitoriosos, seu líder, habitualmente, conseguia converter−se em tirano. Muitos dos que pertenciam ao partido derrotado seguiam para o exílio e uniam−se aos exércitos das cidades em que o seu partido estava no poder. Mas o grosso das forças armadas consistia de mercenários, na maioria não-helênicos.

Agátocles era um homem de origem humilde, filho de um oleiro. Devido à sua beleza, tornou−se o favorito de um rico siracusano chamado Demas, que lhe deixou todo 0 seu dinheiro e com cuja viuva ele casou. Tendo−se distinguido na guerra, pensava−se que éle aspirasse à tirania. Foi, por conseguinte, exilado, transmitindo−se ordens para que fosse assassinado durante sua viagem. Mas ele, prevendo tal coisa, mudou de roupa com um pobre homem, que foi morto, por equívoco, pelos assassinos mercenários. Formou, então, um exército no interior da Sicília, o qual atemorizou tanto os siracusanos que estes fizeram um tratado com ele: foi readmitido e jurou, no templo de Ceres, que nada faria em prejuízo da democracia.

O governo de Siracusa parece ter sido, nessa época, uma mistura de democracia e oligarquia. Havia um conselho constituído de seiscentos membros, escolhidos entre os homens mais ricos . Agátocles esposou a causa dos pobres contra a dos oligarcas. No decurso destes últimos ele sublevou os soldados e fez com que os quarenta fossem assasinados, dizendo que havia uma conspiração contra a sua pessoa. Conduziu, depois, o exército para a cidade, ordenando−lhe que saqueasse todos os seiscentos. Os soldados assim o fizeram, massacrando os cidadãos que saíam de suas casas para ver o que estava ocorrendo. No fim um grande número de pessoas foi assassinado pelos soldados que se entregavam à pilhagem. A respeito, diz Diodoro: Não, não havia segurança para os que fugiam para os templos, sob o abrigo dos deuses; a piedade para com os deuses, pelo contrário, foi esmagada e calcada aos pés pela crueldade dos homens. Os gregos lutavam contra os gregos em seu próprio país, os parentes contra os parentes em tempo de paz, sem consideração alguma pelas leis da natureza, ou pelas ligas, ou pela reverencia devida aos deuses − sendo tudo isso audaciosamente cometido. Ante uma tal situação, não apenas os amigos, mas os próprios inimigos, bem como todos os homens sensatos, não podiam deixar de sentir piedade pela miserável condição desse povo infortunado. Os partidários de Agátocles passavam o dia entregues à matança e, à noite, voltavam a atenção para as mulheres.

Depois de dois dias de massacre, Agátocles retiniu os prisioneiros e os matou a todos, com exceção de seu amigo Dinocrates. Reuniu, depois, a assembléia, acusou os oligarcas e disse que expurgaria a cidade de todos os amigos da monarquia, e que ele próprio iria retirar−se para a vida privada. Despiu, pois, o seu uniforme e vestiu um traje à paisana. Mas os que haviam roubado sob a sua chefia desejavam que ele se conservasse no poder, e foi eleito único general. Muitos dos mais pobres, dos que tinham dívidas, ficaram muito satisfeitos com essa revolução , pois Agátocles prometeu a remissão das dívidas e a repartição das terras entre os pobres. Depois disto, agiu com moderação durante algum tempo.

Na guerra, Agátocles era engenhoso e bravo, mas temerário. Houve um momento em que parecia que os cartagineses acabariam completamente vitoriosos: assediavam Siracusa e sua armada ocupava o porto. Mas Agátocles, com um grande exército, partiu para a África, onde queimou seus navios, para evitar que estes caissem nas mãos dos cartagineses. Temendo uma revolta em sua ausencia, levou consigo crianças como reféns. Depois de algum tempo, seu irmão, que o representava em Siracusa, exilou oito mil adversários políticos, que contavam com a amizade dos cartagineses. Na África, Agátocles foi, a princípio, surpreendentemente bem sucedido: capturou Túnis e assediou Cartago, cujo governo ficou alarmado, ordenando que se realizassem cerimonias propiciatórias no templo de Moloc. Verificou−se que os aristocratas, cujos filhos deviam ser sacrificados ao deus, haviam adquirido o hábito de comprar crianças pobres para substituílos. Tal prática foi, então, severamente reprimida, pois se sabia que agradava mais a Moloc o sacrifício de crianças aristocráticas. Depois desta reforma, a sorte dos cartagineses começou a melhorar.

Agátocles, sentindo necessidade de reforços, enviou emissários a Cirene, que pertencia então aos Ptolomeus e era governada por Ophelas, um dos capitães de Alexandre. Os emissários tinham ordens de dizer que, com a ajuda de Ophelas, Cartago poderia ser destruída; que Agátocles desejava apenas estar seguro na Sicília, pois não tinha ambições na África − e que todas as conquistas que fizessem juntos na África pertenceriam a Ophelas. Tentado por estas ofertas, Ophelas marchou, através do deserto, com o seu exército e, após grandes dificuldades, uniu−se a Agá tocles. Sem perda de tempo, Agátocles assassinou−o, declarando a seu exército que a única esperança de salvação consistia em colocar−se sob o comando do assassino de seu ex−comandante.

Sitiou, a seguir, Utica, onde, chegando inesperadamente, capturou trezentos prisioneiras no campo de batalha, colocando−os diante de suas máquinas de assédio, de modo que os soldados de Utica, para defender−se, tiveram de matar seus próprios concidadãos. Embora bem sucedido nessa empresa, sua situação era difícil, sobretudo porque tinha razões para temer que o seu filho Archagathus estivesse suscitando descontentamento no exército. De modo que fugiu secretamente de volta à Sicília, e o exército, furioso com a sua deserção, assassinou não só Archagathus como o seu outro filho. Isto o enfureceu tanto, que matou todos os homens, mulheres e crianças de Siracusa que tivessem parentesco com qualquer soldado do exército revoltoso.

Seu poder na Sicília, durante algum tempo, sobreviveu a todas essas vicissitudes. Capturou Aegesta, matou todos os indivíduos do sexo masculino mais pobres da cidade e torturou os ricos até que revelassem onde suas riquezas estavam escondidas. As jovens e as crianças foram por ele vendidas, como escravas, aos bruttii, no continente.

Sua vida familiar, lamento dize−lo, não era inteiramente feliz. Sua esposa teve um caso amoroso com o seu filho, um de seus dois netos assassinou o outro, induzindo depois um criado do velho tirano a envenenar os palitos do avo. O último ato de Agátocles, quando viu que ia morrer, foi convocar o Senado e exigir vingança contra o neto. Mas suas gengivas, devido ao veneno, tinham−se tornado tão doloridas que não podia falar. Os cidadãos sublevaram−se, levaram−no apressadamente à pira funerária antes que ele estivesse morto, seus bens foram confiscados e, segundo nos dizem, a democracia foi restaurada.

A Itália renascentista apresenta um paralelo que se aproxima muito da Grécia antiga, mas a confusão é ainda maior. Havia repúblicas comerciais oligárquicas, tiranias segundo o padrão grego, principados de origem feudal e, além disso tudo, os Estados da Igreja. O Papa, exceto na Itália, impunha respeito, mas seus filhos não o faziam, e César Bórgia teve de lançar mão do poder nu.

César Bórgia e seu pai, Alexandre VI, são importantes não devido apenas às suas pessoas, mas por terem inspirado Maquiavel. Um incidente da vida de ambos, c.rrientado por Creighton, servirá para dar um exemplo da época em que viveram. Os Colonnas e os Orsinis haviam sido a desgraça dos Papas durante séculos; os Colonnas já haviam caído, mas os Orsinis permaneciam. Alexandre VI fez um tratado com eles, convidando o seu chefe, o Cardeal Orsiní, para o Vaticano, ao ter notícia de que César aprisionara, traiçoeiramente, dois Orsinis importantes. O Cardeal Orsini foi preso logo que chegou à presença do Papa; sua mãe pagou ao Papa dois mil ducados pelo privilégio de enviar alimentos ao filho, e sua amante presenteou Sua Santidade com uma pérola de alto valor, que ele cobiçava. Não obstante, o Cardeal Orsini morreu na prisão − por haver bebido, segundo se disse, vinho evenenado que lhe fora servido por ordem de Alexandre VI. Os comentários de Creighton sobre esta ocorrencia ilustram o caráter de um regime de poder nu:

É surpreendente que essa ação traiçoeira não haja despertado nenhum protesto, sendo, pelo contrário, tão bem sucedida; mas, n a política artificial da Itália, tudo dependia da habilidade dos que se entregavam a tal jogo. Os condottieri representavam apenas a si próprios, e quando eram afastados, por quaisquer meios, embora traiçoeiros, não restava nada. Não havia partido algum, nem qualquer interesse, que se sentisse prejudicado pela queda dos Orsinis e dos Vitellozos. Os exércitos dos condottieri eram formidáveis enquanto seguiam os seus generais; quando os generais eram afastados, os soldados se dispersavam e entravam para o serviço de outros . . . A maioria dos cidadãos admirava a consumada frieza de César quanto a esta questão... Nenhum prejuízo fora causado à moralidade corrente... Quase todos, na Itália, aceitavam como suficiente a observação de César a Maquiavel: É bom enganar aqueles que se revelaram mestres na traição . A conduta de César foi julgada pelo seu exito .

Na Itália renascentista, como na Grécia antiga, um nível muito elevado de civilização se unia a um nível moral muito baixo: ambas as épocas revelaram as maiores alturas do genio e as maiores profundidades da canalhice e, em ambas, os canalhas e os homens de genio não são, de modo algum, antagonicos uns aos outros. Leonardo construiu fortificações para César Bórgia; alguns dos discípulos de Sócrates se achavam entre os piores dos trinta tiranos; os discípulos de Platão andavam metidos em ações vergonhosas em Siracusa, e Aristóteles casou com a neta de um tirano. Em ambas as idades, depois que a arte, a literatura e o assassínio floresceram, lado a lado, durante cerca de cento e cinqüenta anos, foram extintos juntos, por nações menos civilizadas, mas mais coesas, do Ocidente e do Norte. Em ambos os casos, a perda da independencia política não implicava apenas decadencia cultural, mas perda da supremacia comercial, seguida de um empobrecimento catastrófico.

Os períodos de poder nu são, habitualmente, breves. Terminam, em geral, de um ou de outro modo, entre tres modos diversos. O primeiro é a conquista estrangeira, como nos casos da Grécia e da Itália que já foram por nós examinados. O segundo é o estabelecimento de uma ditadura estável, que logo se torna tradicional. (Disto, o exemplo mais notável é o império de Augusto, depois dos períodos das guerras civis, de Mario até a derrota de Antonio.) O terceiro é o advento de uma nova religião, empregando−se a palavra em sua acepção mais ampla. O exemplo mais óbvio disso é a maneira pela qual Maomé uniu as tribos da Arábia, anteriormente inimigas. O reinado da força nua nas relações internacionais, depois da Grande Guerra, poderia ter terminado com a adoção do comunismo por toda a Europa, se a Rússia dispusesse, na ocasião, de um excedente exportável de víveres.

Onde o poder é nu, não só internacionalmente, mas no governo interno de Estados separados, os métodos de adquirir poder são muito mais implacáveis do que em outras partes. Este tema foi tratado, de uma vez por todas, por Maquiavel. Tomemos, por exemplo, o seu relato laudatório das medidas adotadas por César Bórgia a fim de proteger−se no caso da morte de Alexandre VI:

Ele decidiu agir de quatro maneiras. Primeiro, exterminando as famílias dos senhores a quem havia espoliado, a fim de afastar esse pretexto do Papa. Segundo, conquistando para si todos os grandes senhores de Roma, para poder dobrar o Papa com a sua ajuda. Terceiro, convertendo o colégio mais para o seu lado. Quarto, adquirindo uma tal quantidade de poder, antes que o Papa morresse, que lhe permitisse resistir, com suas próprias medidas, ao primeiro choque. Dessas quatro, tinha realizado tres, por ocasião da morte de Alexandre. Pois matou tantos cavaleiros espoliados quantos foram aqueles sobre os quais conseguiu deitara mão, sendo que poucos escaparam , etc.

O segundo, terceiro e quarto desses métodos poderiam ser empregados a qualquer tempo, mas o primeiro chocaria a opinião pública num período de governo ordenado. Um Primeiro Ministro ingles poderia esperar consolidar a sua posição mediante o assassínio do líder da oposição. Mas onde o poder é nu, tais restrições morais se tornam inoperantes.

O poder é nu quando os seus súditos o respeitam somente porque se trata de um poder, e não por qualquer outra razão. Assim, uma forma de poder que tenha sido tradicional se torna nua logo que a tradição deixa de ser aceita. Segue−se daí que os períodos de pensamento livre e de crítica vigorosa tendem a transformar−se em períodos de poder nu. Foi assim tanto na Grécia como na Itália, durante a Renascença. A teoria adequada ao poder nu foi exposta por Platão no primeiro livro da República, pela boca de Trasímaco, que ficou agastado com Sócrates devido às suas amáveis tentativas para encontrar uma definição ética de justiça. Segundo a minha doutrina − diz Trasímaco − a justiça é simplesmente o interesse do mais forte . E prossegue:

Cada governo arquiteta suas leis de modo a servir seus próprios interesses: uma democracia, fazendo leis democráticas; um autocrata, leis despóticas, e assim por diante. Ora, mediante esse procedimento, tais governos declaram que o que é de seu interesse é justamente do interesse de seus súditos; e, quem quer que se afaste disso, é por eles castigado, sob acusação de ilegalidade e injustiça. Portanto, meu bom senhor, o que quero dizer é que, em todas as cidades, a mesma coisa, isto é, o interesse do governo estabelecido, é justa. A força superior, segundo presumo, deve encontrarse do lado do governo. De modo que a conclusão a que se chega, através de um raciocínio correto, é a de que a mesma coisa, isto é, o interesse do mais forte, é, em toda a parte, justa .

Sempre que esta opinião é geralmente aceita, os governantes deixam de estar sujeitos a restrições morais, já que o que fazem a fim de conservar o poder não é considerado chocante, exceto por aqueles que sofrem diretamente as conseqüencias de seus atos. Os rebeldes, igualmente, só se contem por temor do fracasso; se podem ter exito através de meios implacáveis, não precisam temer que a sua implacabilidade os torne impopulares.

A doutrina e Trasímaco, nos lugares em que é geralmente aceita, torna a existencia de uma comunidade organizada inteiramente dependente da força física indireta que se acha à disposição do governo. Torna, assim, inevitável a tirania militar. Outras formas de governo podem ser estáveis onde haja alguma crença comum que inspire respeito pela distribuição existente do poder. As crenças que, a este respeito, foram bem sucedidas, são, em geral, de tal ordem que não podem permanecer de pé ante a crítica intelectual. O poder, em várias épocas, limitou−se, com assentimento geral, às famílias reais, aos aristocratas, aos homens ricos, aos homens em oposição às mulheres, e aos brancos em oposição aos homens de qualquer outra cor. Mas a difusão da inteligencia entre os súditos fez com que estes rejeitassem tais limitações, e os detentores do poder viram−se obrigados a ceder ou a confiar na força nua. Para que um governo ordenado possa contar com o consentimento geral, deve ser encontrado algum meio de persuadir a maioria da humanidade a que −aceite uma doutrina diferente da de Trasímaco.

Deixo para um capítulo posterior as considerações sobre os métodos de se conquistar o consentimento geral, quanto a uma forma de governo, por outra maneira que não a superstição, mas, a esta altura, são oportunas algumas observações preliminares. Em primeiro lugar, o problema não é essencialmente insolúvel, pois que já foi solucionado nos Estados Unidos. (Dificilmente poderia dizer−se que foi resolvido na Grã−Bretanha, já que o respeito pela Coroa tem sido um elemento essencial da estabilidade britânica.) Em segundo lugar, as vantagens de um governo ordenado devem ser compreendidas por todos; isso implica, habitualmente, a existencia de oportunidades para que os homens enérgicos se tornem ricos ou poderosos por meios constitucionais. Nos lugares em que alguma classe, que contenha indivíduos dotados de energia e capacidade, é excluida de carreiras desejáveis, há um elemento de instabilidade que tem probabilidade de conduzir, mais cedo ou mais tarde, à rebelião. Em terceiro lugar, haverá necessidade de alguma convenção social deliberadamente adotada no interesse da ordem, e que não seja tão flagrantemente injusta a ponto de despertar uma oposição generalizada. Uma tal convenção, se for bem sucedida durante algum tempo, logo se tornará tradicional e terá todo o poder inerente ao poder tradicional.

O Contrato Social de Rousseau, para um leitor moderno, não parece muito revolucionário, e é difícil de ver−se por que razão chocou tanto os governos. A razão principal disso, creio eu, é ter procurado basear o poder governamental numa convenção adotada por motivos racionais, e não uma reverencia supersticiosa pelos monarcas. O efeito das doutrinas de Rousseau sobre o mundo mostra a dificuldade de fazer−se com que os homens concordem com uma base não supersticiosa quanto ao governo. Talvez isto não seja possível quando a superstição é afastada de maneira demasiado súbita: alguma prática quanto à cooperação voluntária é necessária como adestramento preliminar. A grande dificuldade é que o respeito pela lei é essencial à ordem social, mas é impossível sob um regime tradicional que já não conta com o assentimento dos governados, sendo necessàriamente menosprezado numa revolução. Mas, embora o problema seja difícil, tem de ser resolvido, para que a existencia das comunidades ordenadas seja compatível com o livre exercício da inteligência.

A natureza deste problema não é, às vezes, compreendida. Não basta encontrar−se, em pensamento, uma forma de governo que, para os teóricos, não pareça proporcionar nenhum motivo adequado para revolta; é necessário encontrar uma forma de governo que possa ser realmente posta em prática e, ainda, que, se existir, mereça suficiente lealdade para que possa suprimir ou impedir a revolução. Ëste é um problema prático da ciencia de governar, no qual devem levarse em conta todas as crenças e preconceitos da população em apreço. Há os que acreditam que um grupo qualquer de homens, uma vez que se haja apoderado da maquinaria do Estado, possa, por meio da propaganda, assegurar o assentimento geral. Há, todavia, limitações óbvias quanto a esta doutrina. A propaganda do Estado tem−se mostrado, nos últimos tempos, impotente, ao opor−se ao sentimento nacional, como,por xemplo, na Índia ( antes de 1921) e na Irlanda. Tem tido dificuldade em predominar sobre fortes sentimentos religiosos. Até que ponto e até quando poderá prevalecer contra os interesses da maioria é ainda uma questão duvidosa. Deve−se admitir, no entanto, que a propaganda do Estado se torna cada vez mais eficiente; o problema de assegurar a aquiescencia dos governados está−se tornando, por conseguinte, mais fácil para os governos. As questões que vimos suscitando serão analisadas, de modo mais amplo, em capítulos ulteriores; por ora, basta que as tenhamos em mente.Estado se torna cada vez mais eficiente; o problema de assegurar a aquiescencia dos governados está−se tornando, por conseguinte, mais fácil para os governos. As questões que vimos suscitando serão analisadas, de modo mais amplo, em capítulos ulteriores; por ora, basta que as tenhamos em mente.

Falei, até aqui, do poder político, mas, na esfera economica, o poder nu é, pelo menos, de igual importância. Marx considerava todas as relações economicas, exceto na comunidade socialista do futuro, como sendo governadas inteiramente pelo poder nu. Por outro lado, o extinto Élie Halévy,historiador do benthumismo, afirmou que, de um modo geral, aquilo que um homem recebe pelo seu trabalho é o que ele considera que o seu trabalho vale. Estou certo de que isto não é verdade com respeito aos autores: verifiquei sempre, em meu próprio caso, que quanto mais eu achava que um livro valia, tanto menos me pagavam por ele. E se os homens de negócios que tiveram exito acreditam, realmente, que o seu trabalho vale aquilo que lhes proporciona em dinheiro, devem ser ainda mais estúpidos do que parecem. Não obstante, há um elemento de verdade na teoria de Halévy. Numa comunidade estável, não deve haver nenhuma classe considerável que sinta um vivo sentimento de injustiça; é de supor−se, pois, que, onde não há grande descontenta mento economico, a maioria dos homens não se sinta grande mente mal remunerada. Nas comunidades pouco desenvolvidas, em que a subsistencia do homem depende antes de um status que de um contrato, ele, regra geral, achará justo tudo o que seja habitual. Mas, mesmo neste caso, a fórmula de Halévy inverte causa e efeito: o costume é a causa do sentimento do homem quanto ao que é justo, e não vice−versa. Neste caso, o poder economico é tradicional; só se torna nu quando os costumes antigos são perturbados ou, por alguma −razão, se tornam objeto de crítica.

Na infância do industrialismo não havia costume album que regulamentasse os salários que deviam ser pagos e os em, pregados não se achavam ainda organizados. Por conseguinte, as relações existentes entre empregador e empregado se baseavam no poder nu, dentro dos limites permitidos pelo Estado e, a princípio, esses limites eram muito amplos. Os economistas ortodoxos haviam ensinado que os salários dos trabalhadores não especializados deviam sempre tender a cair até o nível da subsistencia individual , mas não perceberam que isso dependia da exclusão dos assalariados quanto ao poder político e os benefícios da união entre os mesmos. Marx viu que a questão era uma questão de poder, mas penso que ele subestimou o poder político , em comparaçã com o econômico . Os sindicatos , que aumentaram incomensuravelmente o poder de negociação dos assalariados, podem ser suprimidos, se os assalariados não participarem do poder político; numa série de decisões legais os teria paralisado na Inglaterra, não fosse o fato de que , de 1868 em diante, os trabalhadores urbanos passaram a ter direito ao voto. Dada a organização dos sindicatos, os salários não são mais determinados pelo poder nu, mas por negociação, como na compra e venda de utilidades.

O papel desempenhado pelo poder nu na economia é muito maior do que se julgava antes de a influencia de Marx ter−se tornado operante. Em certos casos, isto é óbvio. Os haveres subtraídos de sua vítima por um salteador de estrada, ou os despojos capturados de uma nação vencida por um conquistador, são, evidentemente, uma questão de poder nu. O mesmo ocorre com a escravidão, quando o escravo não aquiesce devido a um longo hábito. Um pagamento é extorquido pelo poder nu, se tiver de ser feito apesar da indignação da pessoa que o faz. Tal indignação existe em dois casos: quando o pagamento não é habitual, e nos lugares em que, devido a uma mudança de ponto de vista, o que é costumeiro passou a ser considerado injusto. Antigamente, o homem tinha domínio completo sobre os bens da esposa, mas o movimento feminista produziu revolta contra esse costume, o que levou a uma modificação da lei. Antigamente, os patrões não eram responsáveis pelos acidentes ocorridos com os seus empregados. Aqui, também, o sentimento mudou, produzindo modificação na lei. Exemplos como estes são inumeráveis.

Um operário que seja socialista poderá achar injusto o fato de ganhar menos do que o seu patrão; neste caso, é o poder nu que o obriga à aquiescencia. O antigo sistema de desigualdade economica é tradicional e não desperta, por si só, indignação, salvo naqueles que se sentem revoltados contra a tradição. Assim, à medida que se difunde o ponto de vista socialista, ó poder do capitalista se torna mais nu., Um caso análogo é o da heresia e o do poder da Igreja Católica. Há, como vimos, certos males que são inerentes ao poder nu, em oposição ao poder que conquista a aquiescencia. Por conseguinte, o aumento da opinião socialista tende a tornar o poder capitalista mais prejudicial, exceto na medida em que a sua implacabilidade possa ser mitigada pelo medo. Dada uma comunidade organizada inteiramente de acordo com o modelo marxista, em que todos os assalariados fossem socialistas convictos e todos os outros fossem, igualmente, defensores convictos do sistema capitalista, o partido vitorioso, qualquer que pudesse ser, não teria outra saída senão o exercício do poder nu com relação aos seus oponentes. Esta situação, profetizada por Marx, seria muito grave. A propaganda de seus discípulos, na medida em que é bem sucedida, tende a produzi−la.

A maioria das grandes abominações, na história da humanidade, está relacionada com o poder nu − não apenas as que estão associadas com a guerra, mas outras igualmente terríveis, embora menos espetaculares. A escravidão e o comércio de escravos, a exploração do Congo, os horrores do primitivo industrialismo, as crueldades contra crianças, as torturas judiciais, as leis criminais, prisões, hospícios, perseguições religiosas, o tratamento atroz dos judeus, as frivolidades impiedosas dos déspotas, a iniqüidade incrível no tratamento dos adversários políticos na Alemanha e na Rússia de nossos dias − todos esses são exemplos do emprego do poder nu contra vítimas indefesas.

Muitas formas de poder injusto, profundamente enraizadas na tradição, devem ter sido, em alguma época, formas do poder nu. As esposas cristãs, durante muitos séculos, obedeceram os maridos porque São Paulo disse que deviam fazê−lo; mas a história de Jason e Medéia nos dá um exemplo das dificuldades que os homens devem ter tido antes de que a doutrina de São Paulo fosse aceita geralmente pelas mulheres.

Tem de existir tanto o poder dos governos como o dos aventureiros anárquicos. Tem de haver mesmo o poder nu, enquanto houver rebeldes que ajam contra o governo, ou mesmo criminosos comuns. Mas, para que a vida humana possa ser, para a massa da humanidade, algo melhor que uma triste miséria pontilhada de momentos de vivo terror, deve haver o menor poder nu possível. O exercício do poder, para que possa ser algo melhor que a imposição de caprichosas torturas, deve ser limitado pelas salvaguardas da lei e do costume, e só deve ser permitido depois de uma deliberação devida, sendo confiado a homens que sejam estreitamente fiscalizados, no interesse dos que estão a eles sujeitos.

Não pretendo dizer que isto seja fácil. Implica, entre outras coisas, a eliminação da guerra, pois toda guerra é um exercício do poder nu. Implica um mundo livre das opressoes intoleráveis que provocam as rebeliões. Implica a elevação do padrão de vida em todo o mundo − particularmente na Índia, China e Japão − pelo menos até o nível que foi atingido nos Estados Unidos antes da depressão. Implica instituições análogas às dos tribunos romanos, não para o povo como um todo, mas para cada parte da população que esteja sujeita á opressão, como as minorias e os criminosos. Implica, sobretudo, uma opinião pública vigilante, que tenha oportunidade de verificar os fatos.

É inútil confiar−se na virtude de alguns indivíduos ou de grupos de indivíduos. O rei filósofo foi há muito posto de lado como um sonho ocioso, mas o partido dos filósofos, embora igualmente falaz, é saudado como sendo uma grande descoberta. Nenhuma solução real do problema do poder pode ser encontrada no governo irresponsável de uma minoria, nem mediante qualquer outro atalho. Mas a discussão mais ampla desta matéria deve ser deixada para um capítulo posterior.