Previsivelmente e infelizmente, acontece o famoso, inaceitável e covarde “ sabe com quem você está falando?”, mais conhecido como “carteiraço”. Esta forma de comportamento é o que melhor comprova nossa estrutura social hierarquizada, onde alguns que possuem “carteira” de delegado, procurador, juiz, desembargador, deputado, prefeito, secretário, funcionário em cargo comissionado, vereador, médico, advogado, dentista, diretor de universidade, simples eletistas que pertencem a famílias tradicionais e muitos outros, impõem sua surreal “supremacia” sobre os cidadãos normais, os únicos em que a igualdade formal, prevista na Constituição, é realmente aplicada.
Presenciamos pessoalmente e assistimos através da mídia, inúmeros casos deploráveis de ”você sabe com que está falando?”, em especial contra muitos guardas municipais e policiais, que reclamam há anos por melhores condições de trabalho (merecidamente!). É de se ressaltar que os que se intitulam seres acima da lei e que seriam os protagonistas únicos dos “carteiraços” não estão mais sozinhos, pois uma nova forma de abuso surge: são os “carteiraços” de mulheres, filhos, sobrinhos, vizinhos, amigos e até mesmo amantes (olha a pulada de cerca aí, gente!) de pessoas que se julgam importantes e que de tão prepotentes acreditam que sua posição pode servir como manto de proteção a outros. Na verdade há, diariamente, uma chuva de indiretas e promessas de futuras retaliações, até mesmo ameaças à integridade física de pessoas que tentam ganhar honestamente o seu suado dinheiro. titude arcaica presente no nosso cotidiano e muitas vezes um comportamento que anuímos por omissão.
De acordo com as leis vigentes, além de o “você sabe com quem está falando?” poder ser tipificado como desacato (art. 331, do Código Penal), pode também configurar como abuso de autoridade (Lei 4.898/65). devendo o fulano que dá uma dessas ser preso em flagrante, pois o dito cujo vai estar fora de suas funções, não sendo autoridade, mas sim um cidadão comum e igual a todos perante a lei (caput do art. 5°/CF 1988).
Vai vendo: isso ocorreu recentemente, no dia 21 de outubro de 2004, quando a Polícia Federal prendeu em flagrante o publicitário Duda Mendonça, o Vereador do PT Jorge Babu e mais 200 pessoas por estarem fazendo apostas em brigas de galo, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. O “você sabe com quem está falando?” novamente correu frouxo, pois, após terem sido indiciados (Jorge Babau e Duda Mendonça) pelos crimes de formação de quadrilha, maus-tratos e apologia ao crime, pelo delegado Antonio Carlos Rayol, este foi imediatamente afastado da Polícia Federal do Meio Ambiente e os dois Agentes Federais que efetivaram as prisões foram, estranhamente, afastados da Delegacia do Meio Ambiente e Patrimônio Histórico (DEMAPH) para o interior do Rio de Janeiro.
Se este tipo de atitude, de se sobrepor às leis e se considerar imune à ordem social, é comumente presenciado no comportamento de algumas autoridades de 1° escalão, também não é de se espantar que autoridades do alto escalão dos Governos Federais,Estaduais e Municipais sejam as protagonistas de tais barbáries contra a Constituição e a sociedade. Citemos a atitude do deputado federal Waldomiro Fioravante, que, conforme o site “Polícia e Segurança Pública” (10/02/05), em texto de Rosane Oliveira (“A cultura do Carteiraço”), desrespeitou uma via preferencial em Erechim, atropelou um casal de motoqueiros e não quis fazer o exame de teor alcoólico, pois não queria se sentir humilhado ( quem tem, tem medo!). O deputado aplicou o brasileiríssimo “carteiraço”, invocando a imunidade parlamentar num dos raros casos em que ela não se aplica plenamente. Em 1997, ao ser abordado por policiais rodoviários na RS-239, em Campo Bom, o ex-deputado Paulo Ritzel, também apelou ao “carteiraço” e desacatou patrulheiros rodoviários com palavrões impublicáveis. Ritzel teve azar (sorte nossa!), porque os patrulheiros inteligentemente gravaram todo o desacato.
Esse tipo de comportamento não é normal quando o “você sabe com quem está falando?” está presente, tendo em vista que na grande maioria dos casos, quando nos deparamos com um “carteiraço” nos sentimos oprimidos e cedemos, deixamos que a arrogância alheia se sobreponha à sensatez e muitas vezes à legalidade. Já é hora de compreendermos que não vivemos mais em uma ditadura, vivemos numa das 10 maiores democracias do mundo, não temos mais espaço para autoritarismos e muito menos desrespeitos que passam de simples indiretas de represálias, resultando até mesmo em agressão física.
É de se destacar o trabalho de servidores como os muitos de nossa cidade que vencem muitos obstáculos para exercer suas funções, devendo receber a admiração da sociedade, mas acima de tudo, nosso respeito. Respeito este que não encontramos, por exemplo, no comportamento de muitos jovens (o “carteiraço” não vem só das autoridades) que encaram os servidores responsáveis pelo bem-estar de nossa cidade como inimigos ou até mesmo como subalternos. Não é raro nos depararmos com jovens, principalmente de classe média e alta, passando por cima das leis e das autoridades que por elas zelam. São homens e mulheres que cumprem com seus deveres, dignos de nossa atenção e, precipuamente, nossa consideração e solidariedade.
Já está mais do que na hora de dar um basta a tanta hipocrisia, ou seja não cabe, por exemplo, a uma autoridade do alto escalão se sobrepor à lei, cabe sim respeitá-la e servir de modelo para que o país passe da ilegalidade para a normalidade constitucional. Além de crescimento econômico e social, devemos saber que tudo passa por uma mudança interna, pessoal e consciente, pequenas atitudes podem trazer grandes mudanças, ou melhor, varrer essa cultura maldita do "Sabe cum quem cê tá falando?" de nossa sociadade de uma vez por todas! Devemos fazer um pacto pela legalidade, onde saibamos contrabalançar nossos deveres com os nossos direitos, e cobrá-los nem que seja no grito, ou como diz o nacionalmente conhecido rapper X (Cãmbio Negro): “Preste bem atenção, não trato mal o estrangeiro que tá aqui pra trabalhar, ajudar o povo brasileiro, crescer junto com o país, ter família, ganhar o seu dinheiro, gerar emprego, ter o que merece ser feliz, mas não dou mole pra pilantra que lá fora é merda e aqui quer ser o foda e vive empinando o nariz!”
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