20 de setembro de 2010

Isso é Tolstói!

O que explica a intensidade terrível com a qual o homem moderno procura embrutecer-se com o vinho, o fumo, o ópio, o jogo, a leitura dos jornais, com viagens e com toda a espécie de prazeres e espetáculos? As pessoas abandonam-se a isso como a uma ocupação séria e importante, e de fato assim é. Se não houvesse um meio externo de embrutecimento, a metade do gênero humano far-se-ia explodir imediatamente o cérebro, porque viver em contradição com a própria razão é a situação mais intolerável. E todos os homens de nosso tempo encontram-se nesta situação; todos vivem numa contradição constante e flagrante entre sua consciência e sua vida. Estas contradições são econômicas e poéticas, mas a mais notável está na consciência da lei cristã da fraternidade dos homens e, ao mesmo tempo, da necessidade que aos homens impõe o serviço militar obrigatório, a necessidade de ser preparado para o ódio, para a matança, de ser ao mesmo tempo cristão e gladiador.

SOMOS TODOS IRMÃOS, e, no entanto, a cada manhã, este ir­mão ou esta irmã fazem para mim os serviços que não desejo fazer.


SOMOS TODOS IRMÃOS — e no entanto preciso a cada dia de charuto, de açúcar, de espelho e de outros objetos em cuja fabricação meus irmãos e minhas irmãs, que são meus seme­lhantes, sacrificaram e sacrificam sua saúde; e sirvo-me destes objetos, e até os reclamo como meu direito.

SOMOS TODOS IRMÃOS — e no entanto ganho a vida trabalhando num banco, ou nu­ma casa de comércio, num estabelecimento cujo resultado é tornar mais custosas todas as mercadorias necessárias a meus irmãos.

SOMOS TODOS IRMÃOS — e no entanto vivo e sou pago para interrogar, julgar e condenar o ladrão e a prostituta, cuja existência resulta de todo meu modo de viver e a quem não se deve, como sei, condenar ou punir.

SOMOS TODOS IRMÃOS — e vivo e sou pago para recolher impostos dos trabalhadores carentes e empregá-los para o bem-estar dos ociosos e dos ricos.

SOMOS TODOS IRMÃOS — e sou pago para pregar aos homens uma suposta fé cristã, na qual eu mesmo não creio, e que os impede de conhecer a verdadeira fé; recebo salário como padre, como bispo, para enganar os homens nas questões, para eles, mais essenciais.

SOMOS TODOS IRMÃOS — mas não forneço ao pobre se­não por dinheiro meu trabalho de pedagogo, de médico, de literato.

SOMOS TODOS IRMÃOS — e eu me preparo para o assassinato; aprendendo a assassinar, fabrico armas, pólvora, construo fortalezas e por isso sou pago.

 (Leon Tolstói em O Reino de Deus Está Dentro de Vós)

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