A Ressurreição de Cristo
A Nossa Ressurreição na Morte
Leonardo Boff (*)
Canção à Morte
Eu espero a Morte como se espera o Bem-Amado.
Não sei quando virá, nem como virá.
Mas eu espero.
E não há medo nesta expectativa.
Há somente ânsia e curiosidade porque a Morte é bela.
Porque a Morte é uma porta que se abre para lugares desconhecidos, mas imaginados.
Como o amor, nos leva para um outro mundo.
Como o amor, começa para nós outra vida diferente da nossa.
Eu espero a Morte como se espera o Bem-Amado.
Porque eu sei que um dia ela virá e me receberá em seus braços amigos.
Seus lábios frios tocarão a minha fronte, e sob a sua carícia eu adormecerei o sono da eternidade.
Como nos braços do Bem-Amado.
E esse sono será um ressurgimento.
Porque a Morte é a Ressurreição, a Libertação, a Comunicação total com o Amor total.
Maria Helena da Silveira (1922-1970)
Poesia inédita escrita em 1944, aos 22 anos de idade.
Introduçâo
O homem é essencialmente homo viator: está em busca de si mesmo. Quer realizar-se em todas as suas dimensões. Não só na alma. Mas no homem todo, unidade radical corpo-alma. O pensar utópico é uma constante em todas as culturas. O homem quer superar todas as alienações que o estigmatizam como a dor, a frustração, o ódio, o pecado e a morte. O princípio-esperança é uma estrutura existencial do ser-homem. Quem me livrará deste corpo de morte? (Rom 7-24)? Todos os homens sonham com a situação descrita pelo Apocalipse, onde a morte não existirá mais, nem mais luto, nem pranto, nem fadiga, porque tudo isto já passou.. (21,4). O homem de hoje se coloca mais que em outras épocas perguntas radicais acerca de seu futuro. Está em busca do homem novo que ele crê vislumbrar no horizonte das possibilidades oferecidas pela manipulaçao genética. A pergunta que mais o preocupa nâo é tanto: quem é o homem? Mas, o que será dele? Que o espera? Nietszche sonhou com o Super-homem, com um corpo de César e uma alma de Cristo, um santo de uma espécie nunca dantes existente, capaz de dominar com suma responsabilidade o mundo por ele mesmo criado. A ânsia de realizaçâo pessoal e cósmica do homem é sempre frustrada pela morte. Ela é uma barreira para todas as utopias. Que resposta dá o cristianismo a semelhante questionamento?
I -- Em Busca do Homem Novo
MAIS que em outros tempos, nossa época se caracteriza pela preocupação do futuro e, nas penumbras dele, vislumbrar o homem de amanhã. Todos são nisso unânimes: o homem de hoje é alguém que deve ser superado. O verdadeiro homem é ainda um projeto. Ele não nasceu. Está latente dentro dos dinamismos da evolução. Essa busca do homem novo talvez seja um desses anseios que jamais fizeram progresso na história da humanidade. É uma constante permanente de cada cultura, seja na sua expressão mítica no pensamento selvagem, seja na sua formulação dentro do horizonte das utopias científicas do pensamento objetivo da modernidade. (1)
1. O homem novo no pensamento selvagem
O pensamento mesopotâmico produziu a epopéia de Gilgamés(2), interessante por nela se relatar também a criação do mundo e o dilúvio, à semelhança dos relatos bíblicos. Angustiado pelo drama da morte Gilgamés busca a árvore da vida que restitui a jovialidade ao homem velho e mortal. Quer juntar-se a Uta-Napishtim, herói do dilúvio, que os deuses imortalizaram, colocando-o numa ilha maravilhosa. A ele Gilgamés suplica o segredo da vida eterna. Em sua caminhada impossível, o deus Sol (Shamash) ironicamente o apostrofa: «Para onde corres, Gilgamés? A vida que procuras jamais a irás encontrar»!(3) A divina ninfa Siduri também o adverte: «Quando os deuses criaram a humanidade, deram-lhe como destino a morte. Eles retiveram a vida eterna em suas mãos. Gilgamés, enche o ventre, goza a vida de dia e de noite. Alegra-te com o pouco que tens em tuas mãos».(4) Gilgamés não se deixa dissuadir. Chega à ilha maravilhosa do homem imortal. Ganha a árvore da vida. E regressa. No retorno a serpente bafeja com seu hálito a árvore da vida e lha rouba. O herói desiludido morre como todos e vai ao «país onde não há retorno, onde a comida se constitui de pó e barro e os reis são despojados de suas coroas».(5) O homem permanecerá sempre o mesmo, sob o signo férreo da morte. Sonhará com a imortalidade e novidade de vida. Mas não passa de um sonho.
A civilização egípcia foi por excelência uma civilização centrada sobre o tema da morte e da imortalidade.(6) Professa-se nela um otimismo que transcende, no seu conjunto, à mensagem dos livros mais antigos do Velho Testamento: ao homem bom é prometida vida próspera e nova num outro mundo, no convívio com os deuses Osiris, Horos, Ré e Atum. O embalsamamento dos cadáveres era uma réplica do que acontecia no além: a personalidade consciente (ba) permanece na imortalidade unida ao corpo (jet) e ao seu princípio animador, de origem divina (ka)
O judaísmo bíblico criou o relato do paraíso que é uma profecia do futuro, projetada no passado. (7) Aí se pinta o homem e seu mundo como serão amanhã:
o homem matinal, na limpidez de sua relação harmoniosa com o mundo e com Deus, onde não haverá mais a dominação do marido sobre a mulher, nem as dores do parto, nem a seca, nem o trabalho escravo, nem a ameaça dos animais, nem a religião do medo, nem a morte. A pátria do homem será o jardim de Deus (Ez 31,7-9.16.18; 36,35 -- textos que influenciaram na elaboração de Gênesis 2-3), numa situação de paz total entre o homem e a natureza e os homens consigo mesmos e com Deus (Jer. 24,7; 32,39; 31,34). Tudo será novo e paradisíaco (Is. 66,22; 65,17; cf. Is 11,9 -- textos que também influenciaram na elaboração de Gên 2-3). O homem que Deus quis está sendo ainda plasmado em Suas mãos e pelas mãos dos próprios homens na história. Mas um dia ele nascerá, totalmente, imagem e semelhança do Criador (Gên 1,26). Essa é a grande esperança do Antigo Testamento.
Os nossos tupi-guaranis e apapocuva-guaranis criaram a utopia da «terra sem mal» (yuý maraeý) e da «pátria da imortalidade». Pesquisas históricas e antropológicas recentes(8) mostraram que esses índios viviam em constante mobilidade: da costa de Pernambuco, de repente, se deslocavam para o interior das selvas até às nascentes do Madeira; do interior da selva amazônica outro grupo se punha em marcha até atingir o Peru; dos limites com o Paraguai outro grupo se movia até à costa atlântica e assim por diante. Por muito tempo essas migrações permaneceram misteriosas e inexplicáveís aos antropólogos. O estudo de seus mitos, contudo, veio revelar um dado esclarecedor: o mito da «pátria da imortalidade» punha em marcha toda a tribo. O pajé profetizava: a «terra sem mal» irá aparecer no mar. E para lá rumavam esperançosos. Com danças, ritos e jejuns criam tornar leve o corpo e ir ao encontro, nas nuvens, da pátria da imortalidade. Desiludidos regressavam para as selvas e lá aguardavam no coração da terra o emergir da utopia, com a destruição deste velho mundo.
A expressão é selvagem. A linguagem é mítica. Mas ambas revelam o mesmo princípio-esperança que dilacera o coração do homem, como o sentimos nós hoje dentro de outro horizonte de experiência.
2. O homem novo no pensamento científico
O homem de hoje não aguarda do céu o surgir do homem novo. Ele tenta críá-lo com os meios que as ciências e a manipulação biológica lhe fornecem. Nos nossos dias o experimento humanidade está em processo: as manipulações para se lograr um controle da natalidade, a imunização contra doenças genéticas, os transplantes de órgãos e tecidos, a inseminação artificial, que nos EUA chega à ordem de 25.000 por ano(9), a criação de embriões in vitro como os célebres experimentos dos Professores Daniele Petruci de Bologna e de Landrum Shettles da Univ. de Colúmbia, a manipulação sobre o cérebro humano e melhoramento genético através de mutações cromossomáticas, dão prova da extensão da pesquisa. Será que tudo isso se processa à revelia dos princípios éticos e de uma correta interpretação do homem e de sua posição no mundo? Essa pergunta se tornará ainda mais angustiante se ouvirmos as prognoses hiperentusiásticas de não poucos biólogos e geneticistas. Herman J. MüIler, prêmio Nobel de Medicina, fala de bancos de sêmen humano, descritos com seu pedigree exato em catálogos a serem fornecidos às mães potenciais.(10) Rostand prevê o tempo em que crianças humanas receberão uma dose padrão de ADN que lhes transmita as qualidades físicas e intelectuais mais desejáveis. I. B. S. Haldane, biólogo inglês, prognostica a criação de homens para viagens espaciais, homens que não possuem pernas, que não precisam se alimentar muito e que podem suportar altíssimas velocidades. «Para corpos celestes com grande gravitação, como por exemplo Júpiter, poderiam ser de vantagem homens de pernas curtas ou de quatro pernas». Th. Löbsack pensa que «nada, teoricamente, nos poderá impedir de criar homens que vivam no fundo dos oceanos ou tais que possam emigar para outros planetas e fazer deles sua nova pátria». Nathan Line e Mandred Clynes do Roekland-State-Hospitals de Nova York sugerem a produção de seres metade-máquinas-metade-homens, mais adaptados às viagens espaciais. Atwood vê a possibilidade de criar uma síntese de qualidades vegetais e animais no homem. Com isso nasceriam seres «com grande cérebro para poder dedicar-se à filosofia, e ao mesmo tempo com um campo fotosintético, nas costas, o que dispensaria a necessidade de alimentar-se». Ele vê ainda outras possibilidades: «Em lugar de um sistema complexo fotosintético poderíamos implantar no conjunto haplóide de cromossomos humanos uma série-ADN com a informação para a enzima-celulose. Neste caso, os indivíduos estariam em condições de alimentar-se de papel ou de serragem, porque possuiriam a enzima-celulose para digerir celulose como já o conseguem vacas e térmitas com o auxílio de microrganismos».(11) Desta forma e com a total manipulação genética poder-se-ia criar o verdadeiro super-homem, totalmente liberto de qualquer tara ou defeito físico, um corpo de César com alma de Cristo, com capacidade extraordinária de doação, amor, simpatia, equilíbrio, retidão e sensibilidade para os valores éticos e com uma profunda experiência religiosa. Como transparece nessas visões, que certamente muito têm de utópico e até de ingênuo, o homem se encontra diante de um terrível paradoxo, como o notou muito bem o grande biólogo Dobzhansky: «É o sucesso impressionante da evolução não só biológica, mas também cultural de nossa espécie que faz espalhar perigos e talvez até os germens da aniquilação própria». (12) Impressionante é o testemunho do grande biólogo francês Jean Rostand em seu livro Inquietudes d'un biologiste: «Os três verbos: ser, procriar, morrer não têm mais o mesmo conteúdo, depois dos últimos desenvolvimentos da ciência que nos trazem muitas vantagens, mas também muitas ameaças diretas. As próprias vantagens nos criam escrúpulos terríveis: as descobertas, entusiásticas para o biólogo, são, muitas vezes, desconcertantes para os moralistas». (13)
Diante de tais experimentos se esvaziam os conceitos clássicos de moral. Parece que é impraticável uma plena coibição do experimento-humanidade. Ela está se processando irresistivelmente. Urge criar uma visão religiosa e ética no homem que o capacite a orientar para uma maior humanização o tremendo instrumentário manipulador de que dispõe. A automanipulação para uma maior libertação físico-psíquico-pessoal da espécie humana não é em si ilegítima. Antes pelo contrário, parece-nos que emerge da própria tarefa imposta por Deus ao homem de subjugar e dominar a natureza. O homem, imagem e semelhança de Deus, foi criado para poder, na liberdade, cujas dimensões hoje atingem até o mundo genético, criar-se a si mesmo, primeiro diante de Deus com sua decisão e automanipulação para o bem ou para o mal, depois diante de seu próprio mundo hominizado, na fase psicossocial da evolução, e, por fim, diante dos próprios condicionamentos biológicos. Em seu persuasivo livro Come, Let Us Play God (Vamos, brinquemos de Deus, 1969) (14) o biofisico Leroy Augenstein afirma que talvez agora, pela primeira vez, o homem de fato pode assumir o papel a ele confiado por Deus diante do mundo e de seu destino. Isso não significa hybris humana e rebeldia contra o Criador. Mas tomada de consciência radical daquilo que biblicamente se diz: o homem é imagem e semelhança de Deus, isto significa: ele é representante e lugar-tenente de Deus no mundo, o órgão pelo qual Deus continua a agir atuar na totalidade da criação. Essa perspectiva nos sugere a medida e o critério ético para a auto-manipulação biológica do homem, coisa que transcende o alcance deste trabalho.
3. O homem novo na experiência cristã
Como repercute no cristianismo a busca do homen novo? Ele faz diante disso uma afirmação inaudita: o homem novo, o homem das esperanças dos séculos, já emergiu na história, levando-a assim à sua meta. Ele se chama Jesus de Nazaré, o Cristo ressuscitado. Nele os anseios de plenitude, de potência total do ser e de reconciliação global com Deus, com os outros com o mundo se tornaram realidade concreta. O homo absconditus se revelou plenamente e saiu completamente de sua latência. Surgiu um sol que não tramonta mais. Por isso ele está em nosso meio. Os olhos fenomenais não o vêem, mas os olhos da fé o enxergam plenificando toda a realidade. Em razão disso o cristianismo se apresenta como a religião da jovialidade divina e humana. Se não se apresenta como a religião do Super-homem, quer ser contudo a religião do Homem-Deus. O futuro que anuncia aos homem não é um futuro manipulável biologicamente, como se a manipulação pudesse fazer o homem extrapolar de si mesmo e atingir o mistério de Deus, mas é o próprio futuro de Jesus Cristo. Ele é o primeiro dos homens, que atingiu a meta, como total transfiguração da existência humana, liberta da morte, das limitações e estreitezas de nosso-ser-no-mundo. A utopia de imortalidade e de novidade de vida se traduziu em topia e realidade no seio do mundo. Por isso, por mais que um cristão participe da admiração pelas conquistas biológicas e possa alegrar-se pelos possíveis resultados humanizadores alcançáveis por elas, jamais confunde isso com aquilo que Deus nos prometeu com a ressurreição de Jesus, o novo Adão.
Com isso não se quer insinuar que o processo de evolução ascendente seja teologicamente irrelevante. Ele representa de alguma forma, germinalmente, a plenitude final, que já vai se manifestando ambiguamente e fermentando dentro do tempo. A ciência, a técnica e a manipulação biológica visando a criação de um homem melhor podem assumir até uma missão profética: fazer esse mundo mais semelhante com aquele no final do processo evolutivo.
Se a visão cristã do futuro do homem é assim otimista, não é menos concreta. Ela deixa aberta a possibilidade de que o homem com sua manipulação venha a cometer um erro irreversível. Assim como espiritualmente ele pôde se manipular de forma desastrosa para o ulterior desenrolar da história (pelo assim chamado pecado original), semelhantemente pode ele inaugurar um processo desumanizador e involutivo que reduza porções da humanidade a um estado de rebanho adaptado à arbitrariedade da ideologia e das forças reinantes. (15) Por isso impõe-se sempre uma reserva crítica e desconfiança em relação aos prognósticos sobre o futuro do homem novo. O cristão sabe que a capacidade do mal no homem não se reduz a uma questão de fígado ou de manipulação do genes. Ela se enraíza na própria estrutura espiritual do homem, pervadindo todas as dimensões de seu ser. E não está no poder do homem saltar sobre sua própria sombra. Mas é «muito consolador poder observar que os representantes da pesquisa científico-natural séria se restringem em geral a prognósticos a curto prazo, e os formulam com muita prudência... Propostas eugenéticas que se referem ao futuro distante do homem se encontram fora do campo da ciência».(16) Ademais o cristão por sua fé e esperança sabe que mesmo para o homem desastrosamente manipulado há um caminho pelo qual atinge seu futuro absoluto, prometido por Deus: a morte. A morte não significa somente o termo de um processo biológico, como o veremos pormenorizadamente mais adiante. Mas principalmente significa um acabar de nascer e o modo pelo qual o homem atinge a sua total plenitude através de uma derradeira decisão. A história, para o cristão, por mais manipulada que venha tornar-se a ponto de o homem mesmo absurdamente poder pôr termo a ela, irá irreversivelmente desembocar em Deus, seja para a salvação ou seja para a total perdição. Olhando para o Cristo ressuscitado o cristão contudo confessa-se um profeta do sentido e um inimigo figadal de todo o absurdo. A história pode ser profundamente transformada e o homem degenerar para um suicídio coletivo, mas em Jesus ela atingiu sua meta e realizou já seu ponto Ômega. Esse dado faz com que ele possa esperar contra toda a esperança.
O mito grego da esperança ganha agora um sentido certo: não será uma deusa enganadora dos homens mas a verdadeira posse do almejado. Segundo o mito dizia-se que Zeus, querendo confundir os homens, enviou-lhes a deusa Pandora. Ela trazia uma caixa cheia de presentes. Curiosa, Pandora abre a caixa. E lá se foram todos os presentes, tragados como por encanto. Aos homens restou apenas a esperança de que um dia eles voltassem. E os sábios gregos se perguntavam: é a esperança boa ou má? Uns diziam: é boa porque é a única deusa que permaneceu entre os homens, ao passo que todas as demais divindades se refugiaram no Olimpo. É ela que nos faz sonhar com mundos maravilhosos e nos enche de sentido os dias de angústia. Outros retrucavam: a esperança é tão enganadora como Pandora. Ilude a vida com suas fantasias.
Para o cristianismo, por causa do irromper do homem novo em Jesus Cristo, a esperança tornou-se seu apanágio e sua mensagem. O homem não permanece como um eterno Prometeu. O coração anseia porque entrevê a utopia como uma possível realidade no horizonte de Deus. E ela se realizou em Jesus de Nazaré. Em função disso podia Dostoievski, ao regressar da casa dos mortos da Sibéria, confiante e esperançoso, formular seu credo: «creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito do que o Cristo. E eu o digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir. Mais do que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha nele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade». (17)
Legitimar a emergência do homem novo e definitivo para a nossa esperança não é hoje uma tarefa fácil. Nem mesmo para os próprios cristãos.
Por isso nosso trabalho, num primeiro momento, irá referir e discutir a atual problemática em torno da ressurreição de Jesus.
Em seguida, procederemos a uma análise sucinta mas essencial dos textos que testemunham as aparições do Senhor ressuscitado e do sepulcro vazio. Veremos as dimensões antropológicas que tal evento introduziu dentro das coordenadas de nossa compreensão da existência humana.
Por fim nos perguntaremos pelo nosso próprio futuro. À semelhança de Cristo estamos destinados à ressurreição quando tivermos, na morte, atingido a meta de nossa existência.
Notas
1 Cf. o livro que recolhe enorme material acerca do tema: Mühlmann, W., Chiliasmus und Nativismus. Studien zur Psychologie, Soziologie und historischen Kasuistik der Umsturzbewegungen, Berlin 21964; Bloch, E., Das Prinzip Hoffnuwg, 2 vol. Frankfurt 1959.
2 Cf. Heidel, A., The Gilgamesh Epic and Old Testament Parallels, Chicago 1954; Contenau, G., Le déluge babylonien, Paris 21952, 192-200.
3 Tábula X, em Heidel, op. cit., 69.
4 Tábula X, em Heidel, op. cit., 70.
5 Tábula VII, col. 4, em Heidel, op. cit., 60-61; 99-101.
6 Cf. Croato, S., A esperança de imortalidade nas grandes cosmovisões do Oriente em Concilium 60 (1970) 1220 -1230, esp. 1224-1227.
7 Mesters, C., Paraíso terrestre: saudade ou esperança? Vozes, Petrópolis 1971, 47-48.
8 Cf. Schaden, E., O mito do paraíso na cultura e na vida Guarani, em: Aspectos fundamentais da cultura Guarani (Univ. S. Paulo, Faculdade de Fil. Ciências e Letras, Boletim n. 188), S. Paulo 1954, cap. X; Métraux, A., Migrations historiques des Tupi-Guarani. em Jr. de Ia Soe. des Américanistes, N.S. 19 (1927) 1-45; Linding, W. H., Wanderungen der Tupí-Guarani und Eschatologie der Apapocuva-Guarani, em Mühlmann, W. E., Chiliasmus und Nativismus, Berlin, 1964, 19-40.
9 Veja-se o meu artigo A manipulação biológica do homem, em Vozes 65 (1971) 631-641 com a bibliografia aí citada especialmente os 5 vols. do Overhage, P., A caminho da pós-humanidade, Vozes, Petrópolis 1971; para o caso citado veja: Time, abril 19, 1971, 28.
10 Cf. Kaufmann, R., Die Menschenmacher, Hamburgo 1964, 17s.
11 Exemplos tirados de Overhage, P., A caminho da pós-humanidade. Experimento Humanidade, 1, op. cit., 85-89 e de Hasenfuz, J., Biologische Atombombe. Der manipulierte Mensch, em Deutsche Tagespost n. 152 (1966) 18.
12 Overhage, P., op. cit., 34.
13 Appolonio, U., O homem no ano 2000, Vozes, Petrópolis 1971, 25.
14 Time, abril 19. 1971, 38.
15 Cf. Rahner, K., Experiment Mensch, em Schriften zur Theologie VIII, Einsiedeln 1967, 260-285, esp. 281-284; Id, Zum Problem der genetischen Manipulation, op. cit., 286-321.
(16) overhage. P., Experimento-Humanidade, op. cit, 56.
17 Correspondence I, Calmann-Levy, Paris 1961, 157.
II -- A Emergência do Homem Novo, Jesus Ressuscitado, no Crivo da Teologia Crítica
DESDE o tempo dos apóstolos até os dias de hoje a fé na Ressurreição é questionada. A certeza que a Igreja possui é uma certeza de fé. Uma constante se nota nos relatos acerca da Ressurreição: o sepulcro vazio e as aparições não são de natureza tal que excluam a dúvida.(1) No final de seu evangelho Mateus deixa pairar no ar a frasezinha: «alguns porém duvidaram» (28,17b). Contudo, com a resposta que se dá à fé na Ressurreição resolve-se também a pergunta pelo ser ou não ser do Cristianismo. Se a Ressurreição não se verificou somos «falsas testemunhas de Deus», «vã é a nossa fé» e «somos os mais miseráveis de todos os homens» (lCor 15,14-19). Porque em vez de nos filiarmos ao grupo dos que dizem «comamos e bebamos porque amanhã morreremos» (1Cor 15,32) fugimos da realidade num mito de sobrevivência e ressurreição e iludimos outros com tais idéias. Nos últimos anos desencadeou-se uma grande discussão tanto na teologia protestante quanto na católica acerca do significado da profissão de fé «Deus o ressuscitou (Jesus) dos mortos» (At 3,15; 4,10). Assumiram-se posições radicais, provocando fortes reações dentro das comunidades.(2) A Comissão Romana dos Congressos sobre a Teologia do Vaticano II organizou um simpósio internacional sobre esse tema, realizado em Roma de 31 de março a 6 de abril de 1970.(3) Um ponto deve ser salvaguardado, mesmo entre os mais radicais, e que foi esquecido no calor das disputas: não se trata de estabelecer se Cristo ressuscitou ou não. Ninguém dos implicados no debate duvida da fé na presença do Senhor vivo no meio de nós. Todos recitam o mesmo credo. A pergunta que se coloca é: O que significa para nós hoje a afirmação da fé antiga: «Cristo ressuscitou verdadeiramente e apareceu a Simão» (Lc 24,34)? Como se deverá interpretar semelhante frase para que tenhamos o mesmo impacto e retenhamos o mesmo conteúdo que a Igreja primitiva? É nesse horizonte que se situam os debates e que se coloca também nossa exposição. Referiremos o estado da questão no seio das teologias protestante(4) e católica.(5) Tomaremos uma posição crítica frente a cada uma das posições. No final ensaiaremos deslindar uma reflexão de ordem sistemática, onde se realçará particularmente o significado da Ressurreição para o nosso hoje e agora da fé.
I- INTERPRETAÇÕES DA FÉ NA RESSURREIÇÃO NA TEOLOGIA PROTESTANTE
Entre as várias posições dentro da teologia protestante como a de K. Barth, G. Ebling, H. Braun e U. Wilckens queremos relevar especialmente três: a de R. Bultmann, de W. Marxsen, e a de W. Pannenberg.
1. R. BuItmann: Ressurreição não é um fato histórico mas expressão do significado da cruz
Os Apóstolos viram na cruz de Cristo não a morte de um amaldiçoado (Dt 21,23; cf. Gál 3,13), mas perceberam nesse fato histórico um significado transcendente e salvífico: «o juízo libertador de Deus sobre o mundo, o juízo de Deus que vence a morte».(6) Esse significado não é visto no fato bruto da cruz. Por isso ele não é histórico, no sentido de poder ser detectado pelo historiador ao analisar o fato com seu método histórico-crítico. Mas ele pode ser crido. Ora «dizer Ressurreição é exprimir o significado da cruz».(7) Falar em Ressurreição não é dizer que aconteceu historicamente algo em Jesus. Mas é dizer que aconteceu historicamente algo nos Apóstolos: a fé de que a morte de Cristo é vida para o homem.(8) Fé na Ressurreicão é a forma como se exprime a fé no significado salvífico da morte de Cristo. Nesse sentido a Ressurreição não é um fato histórico que qualquer um pode verificar. O que o historiador pode averiguar é que houve homens que creram e pregaram a Ressurreição. Só na fé a Ressurreição é um fato. A fé cristã, como fé, não se interessa pela reconstrução histórica de como surgiu a fé na Ressurreição. A ela interessa o significado existencial da morte de Cristo, como salvação para nós.(9) E isso ela o sabe pela palavra da pregação. «Fé nessa palavra é, na verdade, fé na Ressurreição».(10) A palavra pertence também ao fato escatológico e conseqüentemente possui um caráter salvífico. Por isso pode-se dizer: «na, pregação o Ressuscitado está presente».(11) Na pregação Cristo ressuscita.(12) «As lendas do sepulcro vazio» e «os relatos da Ressurreição acerca das demonstrações da corporalidade do Ressuscitado são sem dúvida construções posteriores, das quais Paulo nada sabe».(13)
Tomada de posição
Para entender a posição de BuItmann convém saber o Sitz im Leben de toda a sua teologia e do programa da desmitização por ele inaugurado. Ele se situa entre os liberais do método histórico-crítico aplicado à Bíblia no século XIX e os apologetas. Aos liberais concede que não podemos reconstruir os fatos da vida de Jesus. Nem superar as contradições existentes nos textos acerca da Ressurreição. Contudo a fé não fica com isso abalada. Ela não se baseia na ciência histórica. Frente a eles BuItmann mantém firmemente a fé cristã. Frente aos apologetas argumenta Bultmann que a Ressurreição não é um fato como qualquer outro da história, verificável por quem quiser. Só a alguns foi dado ver o Senhor. Por isso a Ressurreição não pode ser considerada como uma «prova», face aos não crentes, da verdade da fé cristã. Nesse sentido específico devemos conceder razão a Bultmann: a Ressurreição não é um fato histórico mas estórico (kein historisches Ereignis, sondern ein geschichtliches).(14) Só é atingível pela fé. Esclarecendo: se dissermos -- a Ressurreição não é um fato histórico -- e com isso pensarmos que nada aconteceu depois da morte de Jesus, então interpretamos mal a Bultmann. Se pensarmos que aconteceu sim, mas isso é só acessível pela fé (estórico) e escapa ao historiador (histórico), então temos compreendido sua tese fundamental. Bultmann não quer perder muito tempo em discutir a base histórica das aparições e dos relatos do sepulcro vazio, Ele quer concentrar-se no cerne essencial, que muitíssimas vezes, devido às discussões sem fim, se perde totalmente. Este é: a Ressurreição é uma mensagem de vida para a existência humana. A morte foi vencida definitivamente pela cruz e por isso entrou um grande sentido em nossa vida. Para exprimir essa novidade BuItmann utiliza categorias não objetivistas e objetivantes da filosofia clássica mas a terminologia do existencialismo heideggeriano, mais apta para exprimir situações existenciais. Para compreender essa mensagem precisamos vivê-Ia pela fé. Assim como a existência verdadeira reside no processo mesmo de viver, da mesma forma o compreender a mensagem de fé se realiza na realização mesma da fé.(15) Para isso pouco vale saber se o sepulcro vazio é uma lenda ou não ou qual é o cerne histórico das aparições do Senhor. Importante é viver a fé na Ressurreição. Seria pena se o homem de hoje, pouco afeito a milagres e à admissão de intervenções freqüentes de Deus no mundo, viesse por causa disso a não aceitar essa chance oferecida por Deus de vida nova e cheia de esperança salvadora.(16) Contudo devemos, à luz de lCor 15,38, o mais antigo testemunho escrito da Ressurreição (entre 54 e 57), perguntar a Bultmann se a ligação da Ressurreição com a história é assim tão irrelevante como ele pensa. A Ressurreição não é um mito do qual se poderia dizer que «nunca aconteceu e contudo é». Embora não seja um fato his- tórico comum, está ligada à história de Jesus. Aquele que morreu e foi sepultado é que agora ressuscitou (cf. lCor 15,3-4; At 2,23-24), como atestam várias testemunhas, «das quais muitos ainda vivem, e alguns morreram» (1Cor 15,6). Isso não é uma prova da Ressurreição mas um argumento em favor da credibilidade da pregação apostólica acerca da Ressurreição. Nesse sentido as aparições e os relatos sobre o sepulcro vazio ganham relevância teológica: não visam constituir uma demonstração para o que não crê, mas um convite, fundamentado e cheio de razoabilidade para a fé. Bultmann quer destruir todas as bases e esteios racionais da fé, para purificá-la e fazê-la cada vez mais ela mesma. Isso é um postulado de seu sistema teológico, radicalização do princípio luterano da sola-fides, sem fundamento bíblico.(17) Semelhante fideísmo está a um passo do ateísmo dogmático. Como se há de distinguir fé de ideologia? Como se há de legitimar (não se trata de provar nem de demonstrar) nossa esperança a quem nos pede as razões dela (1Pdr 3,15) ?
2. W. Marxsen: A Ressurreição não é um fato histórico mas uma interpretação das aparições condicionada pelo horizonte apocalíptico
Bultmann bagatelizava o valor da pergunta pelo fato histórico. W. Marxsen, embora seja mais radical ainda que Bultmann, interessa-se por ela.(18) Sabemos, diz ele, como surgiu a convicção do fato da Ressurreição. Não se trata da constatação de um fato real, mas de uma interpretação condicionada pela cosmovisão apocalíptica da época. Pertencia a ela a esperança na ressurreição dos mortos. As aparições reais que os Apóstolos tiveram (essas possuem caráter histórico e agiram como um impacto -- Widerfahrnis -- sobre os Apóstolos) foram interpretadas dentro das categorias de ressurreição. Para o historiador nada se disse ainda sobre se a Ressurreição aconteceu ou não. (19) Ele constata historicamente que alguns assim interpretaram as aparições que tiveram. Essa interpretacão -- Jesus ressuscitou -- não é obrigatória para nós hoje. Porque não somos obrigados a assumir a cosmovisão, da época, passada e mítica. O próprio NT mostra como há uma outra possibilidade de interpretar as aparições, não como Ressurreição de Jesus, mas como missão de viver e de pregar a causa de Cristo adiante.(20) Paulo em lCor 9,1 fundamenta seu apostolado no fato de ter visto o Senhor. Portanto as aparições que de fato aconteceram após a morte de Jesus levaram os Apóstolos a refletir em duas direcões: uma funcional, voltada para o futuro: a missão. «A causa de Jesus vai adiante» (21), pela pregação «Jesus nos atinge hoje». (22) Outra voltada para o passado, pessoal: Jesus ressuscitou dos mortos. Essa afirmação está condicionada pela antropologia judaica, segundo a qual não há vida humana sem corpo. Por isso a insistência maciça de alguns textos em Lucas e João em afirmar a corporalidade do Ressuscitado. Se um grego tivesse refletido sobre as aparições do Senhor, ele diria, consoante sua antropologia, para a qual o corpo é um cárcere e um mal: «Jesus deixou realmente seu corpo». Ele teria afirmado a vida de Cristo sem precisar de falar em Ressurreição do corpo. (23) Isso não é um fato mas uma interpretação que deve hoje ser traduzida em nossa fé. Ressurreição é um modo de falar e não algo que aconteceu. O conteúdo de verdade desta expressão, que deve ser man tido por nós, reside nisso: pela Igreja e pelo Evangelho a causa de Cristo segue adiante e nos atinge a nós como atingiu outrora os discípulos de Cristo. «Se isso me atinge então eu sei: Ele vive. Exprimindo-o numa terminologia mais antiga (sabendo dos limites e condicionamentos daquela terminologia) posso eu hoje professar: Ele vive, Ele não permaneceu na morte. Ele ressuscitou».(24)
Tomada de posição
Essa interpretação de Marxsen tem muito de sedutor e desencadeou uma discussão sem precedentes. Sua preocupação é pastoral: a fé na Ressurreição, diz ele, deve ser uma fé que compreende o que professa; deve falar à existência concreta e deixar de ser uma informação neutra.(25) Marxsen viu claramente onde reside o problema: nas aparições que agiram como um impacto sobre os apóstolos. Ninguém viu a Ressurreição. Existem testemunhas que afirmam a Ressurreição por causa de vivências que tiveram (aparições) após a morte de Jesus. É legítima a interpretação destas vivências como: Jesus ressuscitou? Ou é algo que se legitima só dentro das categorias apocalípticas do tempo dos apóstolos, de sorte que nós hoje deveríamos traduzir essa mensagem para outras coordenadas de compreensão? Para responder a isso devemos ponderar dois elementos. Primeiro: o conceito que o NT tem de Ressurreição não corresponde exatamente ao das esperanças apocalípticas de Ressurreição do judaísmo tardio.(26) Os saduceus negavam-na; os fariseus criam antes numa revivificação, isto é, numa volta às condições de vida deste velho éon. Em Mc 12,23 Cristo mesmo corrige semelhantes representações. Ressurreição para o NT é a passagem do mundo presente ao mundo futuro, da história à metahistória, transfiguração e atualização radical e total das possibilidades do mundo presente. Numa palavra: Ressurreição é a realização do Reino de Deus para a condição humana. Ressurreição de Cristo não é a volta de um cadáver à vida biológica, mas a transfiguração de um estraçalhado na cruz. Mais: um amaldiçoado por Deus (Dt 21,23; Gá1 3,13) é «elevado», feito «sentar-se à direita de Deus» e «entronizado como Filho de Deus em poder» (cf. Rom 1,4; At 13, 33). Os apóstolos foram surpreendidos e dominados por tal impacto que estava fora de suas possibilidades de representação. Sem isso jamais teriam pregado o Crucificado como sendo o Senhor. Sem «essa alguma coisa» que aconteceu em Jesus não se explica o fato de a Ressurreição de Jesus sempre vir ligada, na pregação, com a morte e o sepultamento. Bem dizia Dahl, referindo-se a Bultmann, o que vale muito mais para Marxsen: «Os acontecimentos da páscoa não foram previstos pelos discípulos. Foram fatos que se realizaram, antes algo que deve ser interpretado (interpretandum) que uma interpretação do significado de Jesus e de sua morte». (27) E aqui abordamos um segundo elemento em que se deve refletir: precisavam os apóstolos fazer uma interpretação para este fato ser decifrado? As aparições narradas no NT não são algo de totalmente indeterminado e de vago que exigisse reflexão e interpretação para serem decifradas. Antes pelo contrário. Usa-se o termo que é considerado por bons exegetas como técnico na temática de revelação: óphte (aoristo medial ou passivo de oráo) significando: «ele deixou-se ver, ele apareceu». (28) Com isso se acentua a iniciativa vinda de fora e que agiu como um impacto sobre os apóstolos. Os apóstolos tiveram encontros com o Senhor vivendo agora sob outra forma. O encontro pessoal é muito mais rico que um simples ver (óphte) : é comunhão de pessoas, um estar-aí frente a frente em mútua presença, é um diálogo de tu-a-tu, dentro do «esprit de finesse» da recíproca imediatez e não do «esprit de géométrie», que pede provas e averiguações científicas. Todo encontro humano rompe os esquemas pré-fabricados. Situa-se num outro painel de referências, onde vale a comunicação pessoal, a amizade, o amor, a gentileza e recíproca abertura numa simbiose de dar e receber. Isto fez os apóstolos afirmarem: «Jesus ressuscitou verdadeiramente» (Lc 24,34) e não tanto as representações e esperanças de uma ressurreição dos mortos, implicadas no horizonte apocaliptico em que se moviam.(29) Se quisermos admitir que a Ressurreição seja uma interpretação, então só com condição de dizermos: é uma metáfora que de fato e de forma adequada exprime o encontro pessoal dos apóstolos com Jesus vivo. Não é pois uma expressão que pode ser sem mais mudada por outra, como «a causa de Jesus é levada adiante» ou «Ele hoje nos vem ainda ao encontro». Os textos do NT deixam claro que pela Ressurreição aconteceu algo em Jesus e que isso provocou a fé nos apóstolos e não vice-versa.
3. W. Pannenberg: A Ressurreição é realmente uma interpretação das aparições, porém insubstituível, atingindo o fato histórico
R. Bultmann se desinteressava pelo fato histórico da Ressurreição. W. Marxsen vê interesse nele como uma interpretação condicionada pela atmosfera cultural da época mas se desinteressa pelo seu valor permanente, porque pode ser intercambiada por outra interpretacão. W. Pannenberg, professor de Teologia sistemática protestante em Munique e chefe de um grupo de teólogos que se afastaram da problemática buItmaniana e propugnam por uma concepção da revelação como história, interessa-se exatamente pela interpretação das aparições como fator insubstituível também para nós hoje, atingindo o fato histórico-Ressurreição de Jesus.(30) Após a crucificação os Apóstolos foram surpreendidos por Jesus, ressuscitado dentre os mortos, comunicando-se com eles através de aparições. Para exprimir essa nova realidade, sem analogias dentro da história (a Ressurreição de Jesus é outra coisa que a revivificação do jovem de Naim (Lc 7,11-17), da filha de Jairo (Mc 5,35-43 par) ou de Lázaro (Jo 11) (31), os Apóstolos lançaram mão das metáforas do mundo apocalíptico. Uma delas era a da Ressurreição dos mortos, como um acordar do sono e um levantar-se. Semelhantemente acontecerá no final do mundo. Evidentemente a linguagem é simbólica: a realidade pensada e seu modo são toto caelo diversos. Os homens do velho mundo não podem fazer representações adequadas de como serão os homens no mundo novo. O NT assumiu a metáfora Ressurreição mas pensa bem outra coisa que uma simples revivificação de um cadáver, no sentido de um levantar-se e de um andar por aqui e por ali de um morto. Ressurreição é nova vida (cf. lCor 15,35-56): uma transformação radical da existência corporal para uma existência pneumática, totalmente determinada e repleta por Deus (lCor 15,38-42.50-53). Ao usarem a metáfora quiseram exprimir tal realidade absolutamente nova: Jesus vive uma existência corporal totalmente diversa da do velho éon. Isso é visto como o romper do mundo novo: Cristo é o primeiro entre muitos irmãos (Rom 8,29), as primícias dos que morreram e agora ressurgem (lCor 15,20; Col 1,18; cf. At 1,15; 3,15), aquele por quem todos somos vivificados (lCor 15,22). (32) Esse fato só pode ser expresso na linguagem da expectativa escatológica, simbólica e insuficiente, porque tomada das categorias do velho mundo, porém insubstituível.(33) Sem ela perdemos a realidade pensada e testemunhaia pelos textos do NT. Se ela é de tal natureza que só pode ser expressa pela linguagem simbólica e anunciada por aparições então as aparições e as expressões simbólicas garantem o caráter histórico do fato-Ressurreição de Jesus. O historiador constatando as aparições atinge também o fato-Ressurreição manifestado nelas. Se as aparições possuem carãter histórico (o que não é posto em dúvida por W. Marxsen ao menos para o núcleo central) também o possui a Resrurreição. Caso contrário jamais poderíamos dizer que a Ressurreição aconteceu dentro de um determinado momento de nossa história.(34)
Tomada de posição
A posição de Pannenberg é familiar aos ouvidos católicos. Concede que a fé na Ressurreição é uma interpretação das aparições. Contudo uma interpretação imediata que atinge a realidade nova e a expressa de forma adequada à sua natureza (novo mundo, novo homem: 2Cor 5,17), isto é, simbolicamente. Como podemos falar senão simbolicamente do novo céu e da nova terra? Pannenberg insiste com razão na Ressurreição como fato histórico no sentido de que ela realmente se verificou dentro da história, embora o acesso seja indireto por via das aparições. Talvez Pannenherg (para evitar equívocos) se devesse exprimir como E. Dhanis o fez na relação conclusiva do Simpósio internacional em Roma sobre a problemática da Ressurreição distinguindo entre um fato diretamente histórico de outro indiretamente histórico. Aquele é atingível em si mesmo mediante os métodos próprios da pesquisa histórica; este, o indiretamemente histórico, só é atingível mediante a reflexão sobre fatos históricos. (35) A Ressurreição não é um fato diretamente histórico. Ninguém a viu. Contudo é um fato indiretamente histórico porque os Apóstolos, refletindo do sobre o sepulcro vazio, encontrando-se com Jesus vivo em aparições, puderam convencer-se e dizer «Deus o ressuscitou dos mortos» (At 3,15; 4,10). A Ressurreição não é uma revivificação de um cadáver mas é a entronização da realidade corporal de Jesus transfigurada na glória de Deus. Isso funda um fato de outro gênero que os fatos históricos comuns. Essa novidade de vida humana deixou contudo sinais e traços entre os homens, o sepulcro vazio, as aparições que refletidos e interpretados nos dão a certeza moral -- que é a certeza própria da história -- de que a história de Jesus não acabou na cruz mas na Ressurreição. A Ressurreição é o ponto de partida da cristologia. A partir dela os Apóstolos e os autores do NT começaram a se perguntar: Quem é esse Jesus de Nazaré que Deus ressuscitou dos mortos? E sob essa nova luz foram relendo e descodificando a história de Jesus kata sárka (segundo a carne), isto é, começaram a fazer e a escrever a cristologia. Nesse horizonte escreve também Pannenberg sua grandiosa cristologia, em grande consonância com a cristologia católica. (36)
II. INTERPRETAÇÕES DA FÉ NA RESSURREIÇÃO NA TEOLOGIA CATÓLICA
As discussões exegético-sistemáticas no campo protestante não deixaram de influenciar a teologia católica especialmente a exegese. No presente momento, graças à opinião de W. Marxsen, desencadeou-se também no lado católico uma série de reações, tomando posicão ou mesmo assumindo traços das soluções apresentadas. No que se refere à exegese, pode-se, sem exagero, dizer que os autores católicos não ficam em nada atrás de seus colegas protestantes, quer no espírito crítico, quer na utilização dos mais recentes métodos exegéticos (história morfo-crítica, das tradições, das várias redações etc.) e mesmo na ousadia e liberdade de sacarem conclusões das análises feitas. A título de sistematização dividiremos as tendências como seguem: (37)
1. Tendência tradicional: a Ressurreição é indiferenciadamente um fato histórico
Essa posição era assumida em toda sua linha por quase todos os manuais de teologia dogmática e de teologia fundamental. A Ressurreição era considerada a prova principal da divindade e veracidade do Cristianismo. Recentemente foi ainda proposta por E. Gutwenger. (38) Segundo esse autor a Ressurreição é um fato histórico sem mais, baseado na realidade das aparições. A convicção da Igreja primitiva, diz Gutwenger, mostra «que o Jesus redivivo se manifesta como um vivo entre vivos, de sorte que quem o via parecia ver um homem em sua vida diária».(39) De forma um pouco mais diferenciada mas fundamentalmente idêntica esta posição é defendida também por W. BuIst no recente dicionário Sacramentum Mundi.(40) A obra de F. X. DurrwelI, A Ressurreição de Jesus, ministério de salvação(41), representa da parte católica um Novum no sentido de apresentar uma sistematização impressionante da fé na Ressurreição em suas ligações com a redenção, com a história de Cristo, com a Igreja e seus sacramentos e com a consumação celeste. A preocupação crítica porém é, para as exigências do atual debate, muito exígua. É sintomático que a teologia de S. João ocupa o lugar principal em suas reflexões, o que mostra o caráter preferentemente teológico e menos exegético-crítico de seu trabalho. Frente a Gutwenger devemos ressaltar que Ressurreição não é o mesmo que revivificação. Por isso seu caráter histórico, como irrupção de uma realidade escatológica dentro de nossa história, não pode ser equiparado com outros fatos históricos.
2. Tendência da exegese moderna positiva: a Ressurreição é um fato de fé da Igreja primitiva
A essa tendência filia-se aquele grupo de exegetas que com auxílio dos modernos métodos da exegese chegam a eruir a fé da Igreja primitiva, sem, tematizadamente, perguntar o que é influência do ambiente cultural, o que é histórico e o que é elaboração teológica sobre fatos históricos. O interesse se concentra nos textos tais quais temos, assegurados por séria análise crítico-literária. J. Schmitt(42) é um de seus melhores representantes. Ele constata que para os Apóstolos a Ressurreição era considerada um fato histórico como a vida e a morte de Cristo. Ressurreição é corporal, e é «mais que um fato histórico. É a 'palavra' decisiva do diálogo que Deus conduz com os homens, o argumento principal pelo qual Deus quer convencer os homens de sua fidelidade, de sua 'sabedoria' e de seu 'poder'».(43) Aos olhos dos Apóstolos a Ressurreição é a resposta do Pai à submissão do Filho (cf. Mc 15,34 par), a recompensa por sua obediência até à morte (cf. Flp 2,9). Um pouco nesta linha vai o excelente livro de P. Benoit, Passion et Résurrection du Seigneur.(44) A crítica literária e histórica encontra em seu estudo um terreno privilegiado, ao lado da preocupação de deslindar o horizonte teológico típico de cada evangelista(45) que se mostra no modo como trabalham sobre o material tradicional.
A discussão como hoje é conduzida tem antes de tudo uma preocupação hermenêutica: como haveremos de entender nós hoje o que os Apóstolos entenderam outrora? Como vamos pregar e testemunhar a mesma novidade, expressa dentro de coordenadas que não são mais as nossas? Até que ponto os Apóstolos testemunham uma experiência original? Até que ponto fazem trabalho teológico, apologético, cultual? Os atuais textos têm em seu subsolo todas essas tendências. Daí que uma exegese que se concentra principalmente em eruir a fé do NT é necessária, porém insuficiente, em relação às perguntas que homens de hoje fazem.
3. Tendência da exegese hermenêutica: a Ressurreição é indiretamente um fato histórico anunciado dentro das categorias da época
Há um bom grupo de sérios exegetas católicos que não só se interessam pela fé do NT mas principalmente em ver a gênese desta fé, como deu origem a várias tradições, como foi evoluindo de elementos-cernes para elaborações cada vez mais amplas, terminando no atual estado dos textos.(46) Um elemento é unanimemente afirmado: a Ressurreição não é diretamente um fato histórico, possível de ser detectado pelo historiador. (47) É um fato que aconteceu em Jesus acessível pela fé baseada nos testemunhos dos que viram Jesus depois de ter sido crucificado. Sua nova vida não cai sob categorias biológicas (onde reina morte) mas pertence já à esfera divina da vida eterna. (48) Por isso o fato-Ressurreição entra na ordem do mistério que rompe as categorias do espaço e do tempo.(49) Seu anúncio só pode ser revelado (50) e se for manifesto dentro da história, e será velado por símbolos e aparições. (51) As categorias para exprimir esse novo modo de existir de Jesus são determinadas pelo ambiente da época: Ele é elevado junto a Deus, está sentado à direita de Deus, é entronizado como Filho de Deus em poder, foi feito Kyrios e Juiz universal atc.(52) É o emprego do esquema apocalíptico da humilhação-elevação do justo na interpretação do sepulcro vazio e das aparições. Os mesmos fatos foram interpretados também dentro das categorias escatológicas de Ressurreição dentre os mortos. O estado atual dos textos contém e combina ambas as interpretações.(53)
Para a apologética tradicional o sepulcro vazio é um elemento importante para a credibilidade da Ressurreição. Uma compreensão mais diferenciada da realidade da Ressurreição levou exegetas católicos a afirmar seu caráter secundário. «Em nenhum dos quatro Evangelhos a descoberta do sepulcro vazio é um argumento convincente em favor da verdade do anúncio pascal. (54) Ela não causou a fé mas o medo e a fuga (Mc 16,8; Lc 24,5; Mt 27,8). (55) O tema do sepulcro vazio é tão secundário que não deve ser contado como condição para a verdadeira fé na Ressurreição. Segundo M. Brändle «o corpo da existência renovada (de Cristo) não vem do sepulcro mas do céu». (56) Ressurreição, pensa ele, não quer dizer glorificação do corpo terrestre mas autêntica nova criação de Deus. Já a biologia nos diz que de 7 em 7 anos quase todas as células de nosso corpo biológico são renovadas. Com que corpo haveremos de ressuscitar? Não conhecemos o que seja a matéria. Por isso não devemos arriscar fazer declarações dogmáticas sobre assuntos que podem ser a qualquer momento reformulados. A identidade de nosso corpo não se baseia portanto na identidade da matéria, mas na estrutura e em suas leis que regulam os processos da matéria. Essa identidade é conservada pela Ressurreição.(57) Por isso o sepulcro de Cristo não precisa estar vazio. H. Ebert, pensando na linha de Brändle e admitindo que Ressurreição não é sem mais nem menos a transformação de um cadáver depositado na sepultura, conclui: «Se assim fosse o sepulcro vazio não seria para nós hoje um milagre-sinal mas algo de estranho que mais dificulta do que ajuda a fé. Exagerando um pouco, deveríamos então crer não por causa do sepulcro vazio mas apesar dele».(58)
Contudo quer-nos parecer que essa solução se apresenta por demais minimalista. É sintomático que os quatro evangelhos relatem o fato do sepulcro vazio, e insistam na identidade do crucificado com o ressuscitado. Embora a priori pareça nada se opor ao pen samento de que o corpo glorificado seja outro que o corpo carnal, contudo existem razões suficientes para afirmarmos tal identidade. Primeiro, porque os próprios testemunhos apostólicos o fazem. Segundo, como se haveria de pregar de forma responsável a ressurreição de Jesus dentre os mortos se os habitantes de Jerusalém pudessem constantemente apontar para o cadáver de Jesus? Ademais há uma razão interna de ordem teológica. O corpo de Jesus, embora sárquico (fraco e limitado), não vinha inserido e maculado pelo pecado como vem estigmatizado nosso próprio corpo. Ele exprimia de forma humana e comunicadora a divindade. Nosso corpo é rebelde e não exprime adequadamente nossa interioridade. Em Jesus ele chegava à sintonia de quem superou já todas as alienações. Não era somente o órgão de Deus no mundo. Era Deus mesmo corporalmente presente. Por isso, se já em vida ele exprimia a comunhão e a interioridade divina e humana, quanto mais agora pela ressurreição não fora tal capacidade potencializada ao máximo? Desde o primeiro momento Ele fora carne nova que ia crescendo em idade e graça até lograr a plenitude pela ressurreição. Por aí, parece-nos podermos afirmar, com boas razões teológicas, a identidade pessoal do corpo de Jesus sárquico com o pneumático. Contudo como sempre insistimos e já o fazia Tomás de Aquino: «Ressuscitando, Cristo não retornou à vida comumente conhecida pelos homens. Mas assumiu a vida imortal e conforme com Deus» (Sum. Theol. III, q. 75, a. 2).
Contudo o fato decisivo para a fé na Ressurreição é constituído pelas aparições, interpretadas, como vimos há pouco, dentro de duas categorias de pensar que estavam à disposição dos discípulos: a apocalíptica e a escatológica. A exegese católica, como em J. Kremer, H. Ebert, Ph. Seidensticker, A. George, A. Kehl e outros(59), estudou bem a evolução por que passaram as representações: desde as espiritualizantes em Paulo e Mateus, com concretizações crescentes por motivos apologéticos em Lucas e João, até as maciças representações da Ressurreição de Jesus nos apócrifos, especialmente no evangelho apócrifo de S. Pedro, na Epistula Apostolorum e no fragmento 7 do evangelho aos hebreus.(60) Caso à parte dentro da teologia católica ocupa o discípulo de M. Schmaus o teólogo e filósofo leigo H. R. Schlette.(61)
4. H. R. SchIette: a Ressurreição é uma interpretação retroativa sobre a vida de Jesus
O Pano de fundo da interpretação de Schlette é seu conceito de epifania como história. Típico da teologia do AT é não a narração histórico-factual mas a detectação do sentido latente dentro dos fatos. Ver a mão de Deus no coração da história é detectar Sua epifania no mundo. Com a história de Jesus os apóstolos fizeram o mesmo processo. A vida de Jesus foi a máxima epifania de Deus: pregou o amor universal, entendeu-se como serviço para os outros e foi fiel à sua mensagem em nome de Deus, até à morte. Após sua morte os discípulos se reúnem, falam e se lembram dele, comentam suas palavras. «Parecia-lhes a eles impossível pensar que esse Jesus estivesse morto e relegado ao passado como Abraão, Davi e Jeremias; quando falam dele, se reúnem, comem e bebem juntos, assim crêem eles, ele está com eles. Javé, que o enviou, deixa-o agora vivo no meio deles».(62) Pode bem ser -- o que é difícil de constatar historicamente -- que nessa atmosfera se deram sinais e fenômenos, interpretados como a mão de Deus, assegurando entre eles a verdade: «Jesus e sua mensagem não se acabaram».(63) Essa reflexão interpretativa e retrospectiva sobre a vida passada de Jesus, decifrando ali a máxima revelação epifânica de Deus, levou os apóstolos à afirmação: Ele ressuscitou verdadeiramente. Essa interpretação é legítima, pondera Schlette, para aquele que em sua fé consegue ver a epifania de Deus na história de Jesus. Ele não pode mais que afirmar: De fato ele vive, (64)
Tomada de posição
Essa interpretação de Schlette, marcadamente influenciada por W. Marxsen, recebeu forte contestação no campo católico. (65) Sua elaboração não se confronta com os textos do NT que constituem as únicas fontes e pontos de partida para qualquer reflexão acerca da fé pascal. Não cai Schlette na psicologização da escola de Tübingen com Strauss à sua frente? Ele aplica um esquema desenvolvido em confronto com a teologia do AT para um fenômeno novo e sem paralelos na história. Com isso ele força situações e não corresponde à falta de qualquer patos e à despreocupação descritiva das fórmulas mais primitivas acerca da Ressurreição em lCor 15,3-5 e At 25.
III. CONCLUSÃO
A sumária exposição das principais tendências acerca da fé na Ressurreição deixa entrever que a frase Jesus ressuscitou não é simples. Não se trata num primeiro momento de negar ou afirmar a Ressurreição. Trata-se antes de tudo de saber o que se entende por Ressurreição, como as fontes neotestamentárias a interpretam e como a tradição refletiu sobre esses dados. Não é sinal de ortodoxia repetir velhas fórmulas sem o esforço de auscultar o presente e as perguntas que este coloca. Há heresias que se fazem no zelo em manter a tradição intocável. A verdade cristã só permanece viva e não uma coisa museal se for traduzida nas várias linguagens de nosso tempo. Só assim, diz-nos a Gaudium et Spes (n. 44), «a verdade revelada pode ser percebida sempre mais profundamente, melhor entendida e proposta de modo mais adequado». É nesse sentido que tentaremos encaminhar algumas reflexões de ordem sistemática acerca da verdade central de nossa fé. Antes porém, a título de orientação, convém referir, sumariamente, o atual estado da exegese sobre os textos que falam da Ressurreição.
Notas
1 Cf. Seidensticker, P., Die Auferstehung Jesus in der Botschaft der Evangelisten (Stuttgarter Bibelstudien 26), Stuttgart 2 1968, 91.
2 Vejam-se as informações em Dietzfelbinger, W., Movimentos de restauração na Igreja protestante alemã, em Concilium 51 (1970) 89-97.
3 Cf, L'Osservatore Romano de 2,4,8,9,12 de abril de 1970. Veja-se um resumo das principais conferências em Rosa, G., Il cristiano di oggi dí fronte alia risurrezione di Cristo, em La Civiltà Cattolica 121 (1970) 365-377.
4 Da parte protestante fizeram um estudo de visão de conjunto Geyer, H. G., Die Auferstehung Jesu Christi. Ein Überblick üter die Diskussion in der gegenwätigen Theologie, em Me Bedeutung der Auferstehungsbotschaft jür den Glauben an Jesus Christus por W. Marxsen, U. Wilkens, G. Delling e H G Geyer. GütersIoh 7 1968, 91-117; Diskussion um Kreuz und Auferstehung. Zur gegenwärtigen n Auseinandersetzung in Theologie und Gemeinde, publicado Por e. Klappert. WuPDertal 11968, onde estão reunidos os melhores estudos protestantes desde Bultmann, Barth, Bornkamm, von Campenhausen, Pannenberg e outros, esp. 9-52, 298-300.
5 Da parte católica destacam-se Ebert, H., Pie Krise des Osterglaubens. Zur Diskussion über die Auferstehung Jesu, em HochIand 60 (1968) 305-331, - relatório anônimo em Herderkorrespondez 22 (1968) 322-328 e Léon-Dufour X no Bulletín d'exégèse du N.T. em Recherches de Sciences Religieuses 57 (1969) 583-622. Da imensa bibliografia que existe sobre o tema ressaltamos epenas alguns títulos mais significativos: Grass, H., Ostergeschehen und Osterberichte, Göttingen 2 1962; Kremer, J., Pie Osterbotschaft der vier Evangelien, Stuttgart 1968: Id., Das älteste Zeugnis von der Auferstehung Christi, Stuttgart 2 1967; Vários (Grelot, Delorme, Léon-Dufour) La Résurrection du Christ et l'exégèse moderne, Cerf, Paris 1969; Benoit, P., Passion Résurrection du Seigneur (Lire Ia Bible 6), Cerf, Paris 1966; Mussner, Auferstehung Jesu, München 1969; Lehmann, K., Auferweckt am dritten nach der Schrift, Freiburg-Basel-Wien 1968; Ponthot, J., Les traditions evangéliques sur Ia Résurrection du Christ. Perspectives théologiques et problèmes d'historicité, em Lumen Vitae 20 (1965) 649-673 e 21 (1966) 99-118; G., La Résurrection signe du monde nouveau, Cerf, Paris 1970; y mundo (vários autores) em Teologia y Vida 11 (1970) 75-99; Léon-Dufour, X., Présence de Jésus ressuscité em Études, abril 1970. 593-614; Schilier, H., Über die Auferstehung Jesu Christi, Einsiedeln 1968, todo o número 60 (1970) da revista Concilium e outros tantos estudos que serão citados oportunamente.
6 Neues Testament und Mythologie, em Kerygma und Mythos 1, 4 1960, 44; veja urna valoração crítica por parte da exegese católica em Kremer, J., Das älteste Zeugnis von der Auferstehung Christi, op. cit., 98-114.
7 ld. ibid.
8 ld. ibid.
9 Id.. 47, Das Verhältnis der urchristlichen Christusbotschaft zum historischen Jesus, Heldelberg 1962, 27;
10 Kerygma und Mythos, op. eit, 46.
11 Theologie des Neuen Testamentes, 5 1965, 305.
11 Theologie des Neuen Testamentes. op. cit., 305.
12 Marxsen, W., 11 Die Auferstehung Jesu aIs historisches und alo theologisches Problem, em Die Bedeutung der Auferstehungsbotschaft, op. cit., 13.
13 Kerygma und Mythos, op. eit, 44; Theologie des Neuen Testamentes, 48.
14 Cf. o livro de Greshake, G., Historie wird Geschichte. Bedeutung und Sinn der Unterscheidung von Historie und Geschichte in der Theologie R. Bultmanns, Essen 1963.
15 BuItmann, R., Moderne Bibelauslegung und Existenzphilosophie, em Jesus Christus und die Mythologie, Hamburgo 3 1967, 50-68; veja-se também Hasenhüttl, Der Glaubensvollzug. Eine Begegnung mit R. Bultmann aus katholischem Glaubensverständnis, Essen 1963.
11 Bultmann, R., Die christliche Botschaft und die moderne Weltanschauung, em Jesus Christus und die Mythologie, op. cit., 37-49.
17 Cf. Scheid, E., Das Heilsgeschehen, Tod und Auferstehung im Lichte Entmythologisierung BuItmanns, Rom 1954, 41ss.
18 Marxsen é professor de teologia bíblica e exegese do NT na faculdade protestante de Münster. Seu escrito principal acerca do tema é Auferstehung Jesu aIs historisches und aIs theologisches Problem, em Die Bedeutung der Auferstehungsbotschaft für den Glauben an Jesus Christus, op. 9-40 ou ainda por Gerd Mohn, Gütersloh 1967; ver ainda Das NT Buch der Kirche, GütersIoh 1966, 96-100.
19 Id., 19. ld,
20 Id., 20.
21 Id., 30: "Die Sache Jesu geht weiter"; cf. Schubert, K, em Kairos 11 (1969) 145-149.
22 ld. ibid.
23 ld., 33.
24 Id, 39.
25 ld, 11.38.
26 Cf. Grelot, P., La résurrection de Jésus et son arrière-plan biblique et juif, em La Résurrection du Christ et l'exégèse moderne, op. cit, 17-54, esp. 39ss; Schubert, K, Die Entwicklung der Auferstehungslehre von der nachexilischen bis zur frührabbinischen Zeit, em Biblische Zeitschrift (1962) 177-214; Id, Interpretament Auferstchung, em Wort und Wahrheit (1968) 78-80.
27 DahI, N. D., Eschatologie und Geschichte im Lichte der Qumrantexte, em Zeit und Geschichte, Tübingen 1964, 14; Kremer, J, Das älteste Zeugnis, op. cit., 128.
28 Cf. Michaelis, W., em ThWNT V,315ss esp. 359; Grass, H., Ostergeschehen und Osterberichte, op. cit., 186-232 esp. 186-189. Cf. o próprio Marxsen, W., Die Auferstehung Jesu, op. cit., 20.
29 Nisso insistiu fortemente Schubert no Simpósio Internacional em Roma: cf. Rosa, G., Il cristiano di oggi di fronte ala risurrezione di Cristo, em Civiltà Cattolica 121 (1970) 369.
30 Grundzüge der Christologie, GütersIoh 3 1969, 47-112; Id., Dogmatische Erwägungen zur Auferstehung, em Kerygma und Dogma fase. 2 (1968) 105-109.
31 Grundzüge, op. cit., 69-85.
32 Id., 71-73.
33 Id., 95.
34 Id., 96; cf. também Moltmann, J., Auferstehung und Jesu Christi, em Theologie der Hoffnung, München 1966, 125-209, na mesma linha que Pannenberg.
35 Rosa, G., Il cristiano di oggi, op. cit.. 370-371.
36 Cf. Schnackenburg, R., Christologie des Neuen Testamentes, em Mysterium Salutis III/1, EinsiedeIn-Zürich.KõIn 1970, 230-247: «A Ressurreição como ponto de partida e principio da Cristologia».
37 Cf. bibliografia citada já na nota 5.
38 Zur Geschichtlichkeit der Auferstehung Jesu, em ZKTh 88 (1966) 257-- vejam-se também as críticas movidas por Gaechter, P., Die Engelerscheinungen in den Auferstehungsberichten. Untersuchung einer Legende, em ZKTh 89 (1967) 191-202.
39 Id. 279.
40 Saclamentum Mundi I, Freiburg-Basel-Wien 1967, 413-416 e antes ainda no 1957, 1035-1038.
41 Herder, S. Paulo 1970, traduzido da oitava edição francesa. Em linha semelhante parece estar a obra de J. Comblin, A Ressurreição, Herder, S. Paulo 1965; Cf. ainda artigos mais antigos como Jansens, A., De valore soteriologico resurrectionis Christi, em EThL (1932) 225-233; Grotty, N., The Redemptive Role of Christ's Resurrection, em The Thomist (1962) 54-106. Excelentes perspectivas sistemáticas oferece Klappert, B., ao livro coletivo Diskussion um Kreuz und Auferstehung: Aspekte des Auferstehungogeschehew, op. cit, 10-52.
42 Jésus ressuscité dans Ia prédication apostolique, Paris 1949; ainda o verbete Auferstehung do LThK 1, 1957 1028-1035, finalmente em Sacramentum Mundi I, 405-413.
43 Sacramentum Mundi. op. cit, 408.
44 Do Cerf, Paris 1966 Veja-se também Sint, J, Die Auferstehung in der Verkündigung der Urgemeinde, em ZKTh 89 (1962) 129-151.
45 id, 5.
46 Cf. bibliografia na nota 5. Os artigos em revistas científicas são múltiplos nos vários idiomas. Segura perspectiva teológico-exegética oferece ainda M. Schmaus, Der Glaube der Kirche, München 1969, 453-486.
47 Trilling, W, Jesus y los problemas de su historicidad, Barcelona 1970, 169; Sehnackenburg, R., Haben wir die Bibel falsch ausgelegt? em Alte Fragen Neue Antworten? Neue Fragen alte Antworten? Würzburg 1967, 119-121; Schierse, F. J., Um die Wirkliehkeit der Auferstchung Jesu, em Stimmen der Zeit 92 (1967) 221-223.
48 Rahner, K, verbete Auferstehung no Sacramentum Mundi I, 420-425: Ratzinger, J, Einführung in das Christentum, München 1968, 249-257.
49 Kessler, H., Fragen um die Auferstehung Jesu, em Bibel una Kirche 22 (1967) 21.
50 Kolping, A., Auferstehung, em Handbuch theologischer Grundbegriffe 1. (publicado por H. Fries), Münehen 1962, 141.
51 Michiels, R., Notre foi dans le Seigneur ressuscité, em Collectanea me Mechliniensia 55 (1970) 227253, esp. 242-245; Léon-Dufour, X, Apparitions e du ressuscité et herméneutique, em La Résurrection du Christ et l'exégèse moderne, op. cit., 153-173.
52 Cf.. Brändle, M., Zum urchristlichen Verständnis der Auferstehung Jesu. Orientierung 6 (1967) 65-71.
Cf. principalmente Seidensticker, P., Die Auferstehung Jêsu in der Botschaft der Evangelisten, Stuttgart 2 53 1968, 38-58; Wilckens, U., Die Überlieferungsgeschichte der Auferstehung Jesu, em Die Bedeutung der Auferstehungebotschaft, op. cit, 41-64.
54 Krem er, J., Die Osterbotschaft der Evangelien, op. cit., 136; Id, Ist Jesus wirklich von den Toten auferstanden? em Stimmen der Zeit 94 (1969) 310-320.
55 Cf. Voegtle, A., Er ist auferstanden, er ist nicht hier, em Bibel und Leben 1966, 69-73.
56 Musste das Grab leer sein? em Orientierung 31 (1967) 108-112, aqui 112.
57 ld. 109.
58 Ebert, H., Die Kríse des OstergIaubens, em HochIand 60 (1968) 305-1. 325; Broer, Das leere Grab. Ein Versuch, em Fest der Auferstchung keute (publicado por Th. Bogler) Ars Liturgica, Maria Laach 1968, 42-51 esp. 48; Schenke, L., Auferstehungsverkündigung und leeres Grab. Eine traditionsgeschichtliche Untersuchung von Mk 16,1-8, Stuttgart 1968, 33ss.
59 Cf. George, A., Les récits d'apparitions aux Onze à partir de Luc 24, 36-53, em La Résurrection du Christ et l'exégèse moderne, op. cit, 55-74; Kehl M., Eucharistie und Auferstehung. Zur Deutung der Ostererscheinungen beim Mahl, em Geist und Leben 43 (1970) 90-125 esp, 113-125.
60 Cf os textos recolhidos e publicados por Seidensticker. P., Zeitgenoessische Texte zur Osterbotschaft der Evangelien, Stuttgart 1967, 55-65.
61 Epiphanie ata Geschichte, München 1966, 66-83.
62 Id 70-71.
63 Id., 71.
64 Id., 74-75.
65 Apreciaram a concepção de Schlette: Ratzinger, J., em ThR 63 (1967) 34-36; Voegtle, A., Epiphanie ais Geschichte, em Oberheinisches Pastoralblat jan. 1967, 9-14; Schubert, K., Interpretament Auferstehung, em Wort und Wahrheit 1968, 78-80; apoiou decididamente a Schlette: Brändle, M., Musste das Grab leer sein? op. cit., 108-109.
66 Veja a bibliografia já arrolada nos nn. 4 e 5.
67 Cf. Delling, G., Die Bedeutung der Auferstehung Jesu für den Glauben an Jesus Christus. Ein exegetischer Beitrag, em Die Bedeutung der Auferstehungsbotschaft, op. cit., 67-90; Seidensticker, P., Die Auferstehung Jesu, op. cit, 9-58; Kremer, J, Das älteste Zeugnis, op. cit, 25ss.
68 Kremer, J., Das älteste Zeugnis, op. cit., 25-30.
69 Seidensticker, P., Die Auferstehung Jesu, oP. cit., 17.
70 Além da obra de Kremer acima citada veja-se ainda: Mussner, F., «Schichten» in der paulinischen Theologie, dargetan an 1Kor 15, em Biblische Zeitschrift 9 (1965) 59-70; Gnilka, J.. Das chistologische Glaubensbekenntnis lKor 15,3-5, em Jesus Christus nach frühen Zeugnissen des Glaubens, München 1970, 44-60 com a vasta bibliografia aí citada; Winter, P., lCorinthians XV 3b-7, em NT 9 (1957) 142-150.
71 Cf. Lehman, K, Auferweckt am dritten Tag nach der Schrift, op. cit. 262-290: Gnilka, J., Das christologische Christusbekenntnis 1Kor 15,3-5, op: cit., 55; Metzger, M., A suggestion concerning the meaning of 1Cor 15,4b, em JThSt 8 (1957) 123; Dupont, J., Ressuscité «le troisième jour», em Bíblica 40 (1954) 742--761.
73 Kremer, J., Das älteste Zeugnis, op. cit., 71.
74 Cf. Goppelt, L., Das Osterkerygma heute, em Diskussion um Kreuz und Auferstehung, op. cit, 213. 74 Cf. Schnackenburg, R., Zar Aussgeweise Jesus ist (von Toten) auferstanden, em Biblische Zeitschrift 13 (1969) 1-17.
75 Cf. o texto em Seidensticker, P., Zeitgenoessiche Texte, op. cit, 59-62.
76 Cf. Delorme, J- Résurrecticn et tombeau de Jésus: Mare 16,1-8 dans la tradition évangélique, em La Résurrection du Christ et l'exégèse moderne, op. cit., 75-104 com a bibliografia aí citada; cf. ainda Lohfipk, G., Die Auferstehung Jesu und die historische Kritik, em Bibel und Leben 9 (1968) 37-53 ; Schenke, L., Auferstehungsverkündigung und leeres Grab, Stuttgart 1968.
77 What happened to the body of Jesus, em The Expository Times 81 307-310 esp. 310.
78 Especialmente Seidensticker, P., Die Auferstehung Jesu, op. cit., 77-83,90; Pannenberg, W., Grundzüge der Christologie, op. cit, 97-103; Fuller, D., The Ressurrection of Jesus and the Historical Method, em Journal of Bibel and Religion 34 (1966) 18-24.
79 Cf. Jeremias, J., Heilige Gräber in Jesu Umwelt, Göttingen 1958.
80 Cf. Schille, G., Das Leiden des Herrn: die evangelische Passionstraditíonen und íhr Sitz ím Leben, em Zeitschrift für Theologie und Kirche 52 (1955) 161 205; Delorme, J., Résurrection et tombeau de Jésus, op. cit., 125.129; Bode, E. L., A Liturgical Sitz im Leben for the Gospel Tradition of the Wornen's Easter Visit of the Tomb of Jesus?, em The Catholic Bíblical Quarterly 32 (1970) 237-242 afirmando a tese, como «very possible» (242).
81 A visita de Pedro e João ao sepulcro vazio em Jo 20,8 parece não ser uma reminiscência histórica mas uma construção teológica do autor do evangelho de João, no sentido de colocar o chefe do grupo joaneu junto do chefe da Igreja, Pedro: cf. Benoît, P., Passion et Résurrection die Seigneur, op. cit., 284-286.
82 Cf. Kremer, J, Die Osierbotschaft, op, cit., 25-28.
83 Cf. Grass, H., Ostergeschehen und Osterberichte, op. cit, 94-112; 186-232.
(84) Cf. Kremer, J, Das älteste Zeugnis, op. cit., 65-82.
85 Kremer, J, Die Osterbotschaft, op. cit, 3941.
86 Cf. Seidensticker, P., Zeitgenoessische Texte, op. cit, 43-50; Id., Die Auferstehung Jesu, op. cit., 43-66.
87 Cf. Dupont, J, Le repas d'Emmaus, em Lumière et Vie 31 (1957) 77-92; Orlett, An Influence of the Early Liturgy upon the Emmaus Account, em Catholich Biblical Quarterly 21 (1959) 212-219; Kehl, M., Eucharistie und Auferstehung. Zur Deutung der Ostererscheinungen beim Mahl, em Geist und Leben 43 (1970) 90-125, esp. 101-105.
88 Cf. especialmente Seidensticker, P., Die Auferstehung Jesu, op. cit., 77-83.
89 Já aludimos acima que a frase «ressuscitou ao terceiro dia» não contém uma reminiscência histórica mas é antes uma proposição dogmática. Cristo apareceu alguns dias após. A transfiguração de Cristo, colocada no tempo da vida terrestre de Cristo, contém traços claros de ser uma aparição do Ressuscitado reprojetada para o tempo antes de sua morte e ressurreição; agora como está, revela o processo de catequese da Igreja primitiva ainda em andamento onde elementos históricos de Cristo são retrabalhados com outros acontecidos depois da Páscoa do Senhor (anúncio da paixão com o convite a seguir a Cristo no caminho da cruz: Mc 8,31-38 par): cf. Seidensticker, P., Zeitgenoessische Texte, op. cit., 48-50.
90 Cf. Linding, H., Wanderungen der Tupi-Guarani und Eschatologie der Apapocuva-Guarani, em Mühlmann, W., Chiliasmus und Nativismus. Studien zur Psychologie, Soziologie und historischen Kazuistik der Umaturzbewegungen, Rerlin 2 1964, 19-40.
91 Veja-se o enorme material acumulado nos três tomos de E. Bloch, rinzip Hoffnung, Frankfurt 1959; Eliade, M., Dimensions religieuses du Renouvellement cosmique,) em Eranos Jahrbuch 1959, 241-275; cf. A Utopia em Concilium jan (1969) 130 45.
92 Aus dem Nachlass der Achtzigerjahre, em F. Nietzsche III. Darmstadt 1960, 422; cf. o histórico da idéia do Super-homem que tem origem cristã; depois foi secularizada por Jean Paul e aplicada a Napoleão em E. Beriz, Der dreifache Aspekt des Ubermenschen, em Eranos Jahrbuch 1959, 109-192.
93 Cf. Schnackenburg, R., Gotteslierrschaft und Reich, Freibury 2 1961 com a enorme bibliografia ai trabalhada esp. 1-48; cf. Brunner, P., Elemente einer dogmatischen Lehre von Gottes Basileia, em Die Zeit Jesu (Fest. para H. Schlier) Freiburg 1970, 228-256.
94 Jon, H., Gnosis und apatantiker Geist I, II, Goettingen 1934.
95 Cf. Bornkamm, G., Jesus von Nazareth, Stuttgart 1956, 59; Bultmann, R., Theologie des Neuen Teatamentes, Tübingen 5 1965, 3; Decker, J., Das Heil Gottes. Heil-und Sündenbegriffe in den Qumrantexten und im Neuen Testament, Goettingen 1964, 388-390; Boff, L., Jesus Cristo Libertador, Vozes, Petrópolis 2 1972, 62-75.
96 Cf. Fuller, R. H., Die Wunder Jesu in Exegese und Verkündigung, Düsseldorf 1967, 21; 121 etc.
97 Veja o excelente artigo de Mesters, C., Jesus Cristo Deus conosco, em Grande Sinal 24 (1970) 93-100 esp. 94-96.
98 Cf. Bultmann, R., Theologie des Neuen Testamentes, op. cit., 331.
99 Esse aspecto de futuro foi revelado de modo especial Por Moltmann, J., Theologie der Hoffnung, op. cit., 173-179; 184-204; Kreck, W., Die Zukunft des Gekommenen. Grundprobleme der Eschatologie, München 2 1966, 91ss e 203ss, Boff, L., Jesus Cristo Libertador, op. cit., 283-285
100 Kässemann, E., na Zeitschrift für Theologie und Kirche apreciando o livro de Bultmann, Theologie des NT, 59 (1962) 282; Grabner-Haider, A., Auferstehungsleiblichkeit, em Stimmen der Zeit 181 (1968) 217-222; Id., Ressurreição e Glorificação, em Concilium Janeiro (1969) 58-72.
101 Herrade Mehl-Koehnlein, L'homme s elon l'apôtre Paul, Neuchatel-Paris 1951, 31-37; Boff, L., Jesus Cristo Libertador, op . cit., 226-230.
102 Cf. Boff, L., O Evangelho do Cristo Cósmico. A realidade de um mito e o mito de uma realidade, Vozes, Petrópolis 1971.
103 Jeremias, J., Uwbekannte Jesusworte, Gütersloh 3 1963, 100-104.
104 Cf. Metz, J. B., Caro cardo salutis. Zum christlichen Verständnis des Leibes, em HochIand 55 (1962) 97-107 esp., 97.
105 Durrwell, F. X., A Ressurreição de Jesus, Herder, S. Paulo 1969, capítulos V-IX.
106 Dogmatische Fragen zur Osterfrömmigkeit, em Schriften zur Theologie, Einsiedeln 51967, 157172; ld., Auferstehung Christi, em LThK I, 1038-1041; ld., Sacramentum Mundi I, 403-405; 420-425. Cf. também von Balthasar, H. U., Mysterium Paschale, em Mysterium Salutis III/2, 133-319.
III- O Caminho da Exegese Critica sobre os Textos da Ressurreição
OS ESTUDOS exegético-críticos acerca dos textos da Ressurreição tornaram-se um mare magnum, a ponto de ser difícil para os próprios especialistas poder orientar-se. O que aqui apresentamos quer ser apenas uma indicação das pistas pelas quais caminha hoje a exegese tanto católica quanto protestante.(66) Isso nos ajudará a compreender melhor as várias interpretações acima arroladas e deverá servir de base para nossas reflexões de ordem sistemática.
1. Como era a pregação primitiva sobre a Ressurreição?
Os exegetas estão de acordo que a pregação primitiva da Igreja sobre a Ressurreição não deve ser buscada nos evangelhos nem em S. Paulo, mas sim nas fórmulas pré-paulinas e pré-sinóticas, que através dos métodos morfo-críticos descobrimos assimiladas em S. Paulo, nos evangelhos e especialmente nos Atos.(67) Nos discursos de Pedro nos Atos 2-5 e em Paulo lCor 3-5 encontramos essas fórmulas antigas. Paulo diz expressamente que «transmite aquilo que ele mesmo rece beu» (lCor 15,3). O próprio estilo literário de lCor 15,3-5 trai a antiguidade da fórmula que Paulo já encontrou fixa na comunidade de Jerusalém por volta do ano 35 quando de sua primeira viagem àquela cidade.(68) A estrutura formal rígida é a mesma nos Atos e em lCor 15,3-5: a) Cristo morreu... foi sepultado; b) foi ressuscitado (ou Deus o ressuscitou: At 2,4) ; c) segundo as Escrituras; d) apareceu a Kefas e depois aos doze (ou «E disso nós somos testemunhas»: At 2,32).
Nos discursos de Pedro nos Atos (2-5) a mensagem pascal é anunciada dentro de duas categorias de pensamento: uma apocalíptica e outra escatológica. Na apocalíptica, que florescia no judaísmo pós-exílico, havia a idéia do justo sofredor, humilhado e exaltado por Deus (cf. Sab 5,15s). Isso tornou-se um leit-motiv da cristologia antiga como em Lc 24,26 e Flp 2,611: «Ele se humilhou a si mesmo, por isso Deus também o exaltou». Nos discursos de Pedro encontramos semelhante explicação do acontecimento pascal: «Vós o matastes.. . contudo foi elevado à direita de Deus» (At 2,24.33). Mais adiante: «Deus o exaltou à sua destra como Autor (da vida) e Salvador» (5, 30.31; cf. 3,13-15). Com muita probabilidade esse esquema está ligado ao outro do ocultamento de Jesus (cf. At 3,21) como ao do profeta Henoc e Elias. Assim como Elias foi «arrebatado» ao céu (2Rs 2,9-11; lMac 2,58) da mesma forma Jesus (At 1,9-11.22; Mc 16,19; Lc 9,51; lTim 3,16; lTes 4,16.17 e Apc 13,5) . O emprego desta terminologia pôde certamente ser sugerido pelo fato do desaparecimento do corpo de Cristo (Mc 16,6; Mt 28,5; Lc 24,3.12; Jo 20,2) ao qual os textos dão certa importância. O Jesus de S. João fala a linguagem primitiva do anúncio pascal. A Ressurreição é entendida como elevação, glorificação e um ir para o Pai. Essa concepção está ligada ao tema do Messias, do Filho do Homem e do Servo Sofredor que é exaltado. Assim são nos Atos interpretados os salmos 110 (At 2,34s) e 2 (At 4,26). Os fatos pascais são vistos como a entronização do Messias-Rei como «Senhor e Cristo» (SI 2; At 2,36), sua elevação como «Senhor e Salvador» (5,31). A mensagem pascal é interpretada ainda por uma outra categoria de pensamento, a escatológica. Segundo esta, esperava-se para o final dos dias a ressurreição dos mortos. Os Apóstolos viram na Ressurreição de Jesus a realização de um fato escatológico. Se falam e anunciam a Ressurreição isso significa, nos moldes das categorias bíblicas, Ressurreição real e corporal. Vida sem corpo -- embora glorificado (Mc 13,43) -- é para um judeu impensável. Como as manifestações de Jesus mostravam um Jesus glorificado, no uso da terminología de ressurreição, fazia-se necessário deixar clara a identidade entre o crucificado e o glorificado. Os textos dos Atos (cf. 2,23; 3,15; 5,30) acentuam essa identidade bem como mais tarde, frente aos gregos, Lucas e João. Essa terminologia recalcou em grande parte a outra de origem apocalíptica. Isso por motivos óbvios, porque frente à negação do fato da Ressurreição se devia acentuar a realidade da transfiguração da existência terrestre de Jesus. Por aí vemos que os fenômenos das aparições, das falas de Jesus vivo após a crucificação e do sepulcro vazio não foram logo interpretados como Ressurreição da carne, mas como elevação e glorificação do justo sofredor. Esta interpretação parece ter sido a mais antiga. (69) Evidentemente ela pressupõe também o Cristo vivo e transfigurado e o sepulcro vazio. Mas a isso não se chamou ainda de Ressurreição. Mais tarde, devido às polêmicas e por motivos querigmáticos, os fenômenos acima referidos foram mais adequadamente interpretados como Ressurreição, no sentido de total transfiguração da realidade terrestre de Jesus. Por isso a Ressurreição é sempre referida à história de Jesus: à sua morte e sepultamento.
A interpretação dos fenômenos pascais como Ressurreição já vem testemunhada por Paulo em lCor15,3-5, como referimos acima.(70) A expressão: foi ressuscitado ao terceiro dia, pode ser uma reminiscência histórica. Mas é também uma expressão oriental para dizer: Cristo permaneceu só temporariamente na sepultura. Segundo a crença geral após esse espaço de tempo a vida se separaria definitivamente do cadáver. Quatro dias significaria permanência definitiva (cf. Didaqué 11,5). (71) A expressão «segundo as Escrituras» não precisa se referir a nenhuma passagem explícita. Apenas quer exprimir a unidade da ação salvífica: o Deus que agiu outrora no AT agiu agora maximamente ressuscitando a Cristo. A referência aos testemunhos não precisa ser cronológica. A aparição a Pedro aparece já na fórmula, uma das mais antigas de todo o NT: «Jesus Cristo ressuscitou verdadeiramente e apareceu a Simão» (Lc 24,34). A aparição a 500 irmãos de uma vez só não precisa ser tomada ao pé da letra.(72) Talvez essa aparição seja a mesma indicada por Mt 28,16ss no monte na Galiléia. A referência de uma aparição a Tiago fala em favor da credibilidade desse testemunho paulino, porque o grupo de Tiago (Gál 2,12) se distanciara desconfiado do evangelho de Paulo acerca da liberdade cristã frente ao culto da Lei do judaísmo bíblico.
As fórmulas de fé em lCor 15 e nos At 2-5 deixam entrever, por sua formulação rígida, que a Ressurreição não é nenhum produto da fé da comunidade primitiva, mas testemunho de um impacto que se lhes impôs. Não é nenhuma criação teológica de alguns entusiastas pela pessoa do Nazareno, mas testemunho de fenômenos acontecidos depois da crucificação e que os obrigava a exclamar: Jesus ressuscitou verdadeiramente. Esse pequeno credo proclama os magnalia Dei realizados em Jesus e corresponde ao credo do povo judeu no Dt 26,5-11. (73) O sepulcro vazio não é objeto de pregação, mas é antes suposto. As aparições são sempre atestadas como fundamento das duas possíveis interpretações seja como elevação-glorificação do justo de Deus seja como Ressurreição no sentido de uma ação de Deus transfigurando em vida nova de glória o Crucificado. (74)
2. Donde veio a convicção dos Apóstolos na Ressurreição de Jesus?
Ninguém viu a Ressurreição. O evangelho apócrifo de S. Pedro, descoberto em 1886 (surgiu por volta de 150 dC na Síria), narra o modo como Cristo ressuscitou diante dos vigias e dos anciãos judeus. Mas a Igreja não o reconheceu como canônico(73) porque certamente já a consciência cristã cedo percebeu que assim maciçamente não se pode falar da Ressurreição do Senhor. Possuímos apenas testemunhos que atestam duas coisas: o sepulcro está vazio e houve várias aparições do Senhor vivo a determinadas pessoas. Devemos portanto analisar as tradições que falam do sepulcro vazio e aquelas que referem aparições. Grande número de exegetas, independentemente de sua confissão religiosa, chegou à seguinte conclusão: primitivamente ambas as tradições circulavam autonomamente, uma ao lado da outra. (76) Em Marcos 16,1-8, onde se narra a descoberta do sepulcro vazio pelas mulheres, temos já trabalho redacional combinando as duas tradições. A ligação, porém, não se ajustou bem.
Os textos revelam tensões, ocasionadas pelos versos que tiram a unidade do relato. Se lermos Mc 16.1-5a.8, a homogeneidade do relato transparece límpida: As mulheres vão ao sepulcro; encontram-no vazio. Fogem. De medo nada contam a ninguém. A aparição do anjo com sua mensagem (5b-7) seria um acréscimo tirado da outra tradição que só conhece aparições e não o sepulcro vazio. Qual a função do relato do sepulcro vazio, testemunhado pelos quatro evangelistas? Qual o seu Sitz im Leben?
a) O sepulcro vazio não deu origem à fé na Ressurreição
Obviamente a tradição do sepulcro vazio se formou em Jerusalém. A pregação da Ressurreição de Jesus se teria tornado impossível na cidade santa se o povo pudesse mostrar o corpo de Jesus no sepulcro. Ademais a antropologia bíblica implica sempre o corpo em qualquer forma de vida, mesmo a pneumática. Os inimigos, seja nos tempos apostólicos, seja nas polêmicas rabínico-cristãs da literatura talmúdica, jamais negaram o sepulcro vazio. Interpretaram-no de modo diverso, como roubo por parte dos discípulos (Mt 28, 13) ou como quer recentemente D. Whitaker, roubo perpetrado por violadores de túmulos.(77) Exegetas tanto católicos quanto protestantes afirmam um núcleo central histórico, anterior aos evangelhos.(78) As mulheres encontraram o sepulcro vazio. Esse núcleo histórico foi tradicionado em ambientes cultuais. É sabido que os judeus veneravam os túmulos dos profetas.(79) Assim semelhantemente desde cedo os cristãos começaram a venerar os lugares onde se realizou o mistério cristão em Jerusalém. Dramatizavam-no em três momentos principais: uma recordação (anamnese) da última noite de Jesus, por ocasião do ágape fraternal; uma liturgia da sexta-feira santa na hora em que se celebravam as orações judias; e uma ação litúrgica na manhã de páscoa com uma visita ao sepulcro de Jesus.(80) Por isso os textos do relato do encontro do sepulcro vazio mostram um interesse especial pelo lugar: «Ele não está aqui. Vede o lugar onde o depositaram» (Me 16,6b). Essa tradição porém não se preocupou em dar exatamente os detalhes. Basta comparar os paralelos sinóticos e João para se observar as divergências (no número de mulheres; no número de anjos; divergências nos motivos por que as mulheres foram ao sepulcro; diferença de horário; diferença na mensagem do anjo; diferença na reação das mulheres frente ao sepulcro vazio). O relato contudo atém-se ao essencial: O Senhor vive e ressuscitou. O sepulcro está vazio. O fato do sepulcro vazio porém não é feito, em nenhum evangelista, prova da Ressurreição de Jesus. Em vez de provocar fé originou medo, espanto e tremor, de sorte que «elas fugiram do sepulcro» (Me 18,6; Mt 28,8; Lc 24,4).(81) O fato do sepulcro vazio foi imediatamente interpretado por Maria Madalena como roubo. (Jo 20, 2.13.15). Para os discípulos ele não passa de um diz-que-diz-que de mulheres (Lc 24,11.22-24.34). O sepulcro vazio por si só é um sinal ambíguo, sujeito a várias interpretações. Somente a partir das aparições sua ambigüidade é dilucidada e pode ser lido pela fé como um sinal da Ressurreição de Jesus, As aparições são concedidas a testemunhas escolhidas. O sepulcro vazio é um sinal que fala a todos e leva a refletir na possi bilidade da Ressurreição. É um convite à fé. Não leva ainda à fé.
Um problema à parte oferece a aparição dos anjos junto ao sepulcro. A interpretação tradicional vê de fato neles seres supraterrestres e verdadeiros anjos. Contudo, sem questionarmos a existência dos anjos, deve-se dizer que esta interpretação, mesmo dentro dos critérios bíblicos, não é a única possível. O anjo (mal'ak Jahwe) está no lugar de Javé, cuja transcendência o judeu reafirmava absolutamente, de sorte que em vez de dizer Javé dizia Anjo de Javé (Gên 22,11-14; Êx 3,26; Mt 1,20). Outra interpretação poderia ser a seguinte: as mulheres encontram o sepulcro vazio e logo atinam com a Ressurreição de Jesus. Esta idéia é interpretada como uma iluminação de Deus. Exprimem-na na linguagem literária da época como sendo uma mensagem do anjo (Deus). Outra interpretação possível, e que se coaduna melhor com a análise que expusemos acima, se articularia da seguinte forma: as mulheres vão ao sepulcro. Encontram-no vazio. Estão desapontadas e com medo. Nesse entretempo regressam os apóstolos da Galiléia, onde tiveram aparições do Senhor. O testemunho deles é unido ao das mulheres. A mensagem dos Apóstolos: «O Senhor ressuscitou verdadeiramente e apareceu a Simão» (Lc 24,34, talvez a fórmula mais antiga) é considerada como uma revelação de Deus e expressa na linguagem da época, colocando-a na boca de um anjo (Deus). A fé na Ressurreição não encontrou sua origem na descoberta do sepulcro vazio e no testemunho das mulheres mas nas aparições dos apóstolos. Por isso a preocupação de Mc 16,7 de fazer as mulheres irem a Pedro e aos discípulos e comunicarem-lhes a mensagem do anjo. Eles souberam do sepulcro vazio primeiro pelas mulheres. Por isso eles podem responder às calúnias dos judeus -- de que tinham raptado o corpo de Jesus -- que por si mesmos nada sabiam do sepulcro vazio. Mt 28,11-16 (o conluio dos vigias com o sumo sacerdote) revela uma clara tendência apologética de Mateus. Na forma de uma estória ele quer tornar ridícula a calúnia dos judeus acerca do roubo do corpo de Jesus.(82)
b) As aparições de Cristo, origem da fé na Ressurreição
A profissão de fé na Ressurreição de Jesus é a resposta às aparições. Só elas tiraram a ambigüidade do sepulcro vazio e deram origem à exclamação dos Apóstolos: Ele ressuscitou verdadeiramente! Os evangeIhos, ao nível redacional, transmitem-nos os seguintes dados: as aparições são descritas como uma presença real e carnal de Jesus. Ele come, caminha com os discípulos; deixa-se tocar, ouvir e dialoga com eles. Sua presença é tão real que pôde ser confundido com um viandante, com um jardineiro e com um pescador. Contudo, ao lado destas representações maciças, há afirmações que não se coordenam mais com aquilo que conhecemos do corpo: o Ressuscitado não está mais ligado ao espaço e ao tempo. Aparece e desaparece. Atravessa paredes. E nós nos perguntamos: quando isso acontece podemos falar ainda com propriedade de corpo?
Se considerarmos as aparições ao nível da história das tradições (das quais se originaram os evangelhos como os temos hoje), o problema se apresenta bem mais complexo. Aqui se verifica o seguinte fenômeno: de uma representação espiritualizante da Ressurreição como em lCor 15,5-8; At 3,15; 9,3; 26,16; Gá1 1,15 e Mt 28, passa-se para uma materialização cada vez mais crescente como em Lc e Jo, nos evangelhos apócrifos de Pedro e aos Hebreus.(83) A necessidade apologética obrigou os hagiógrafos a tais concretizações. Ademais as aparições, quanto mais recentes são os textos, tanto mais se concentram em Jerusalém e mais são aproximadas ao tema do sepulcro vazio. Um problema à parte é o das indefinidas tentativas de harmonização entre as aparições relatadas em lCor 15 . 5-8 e as narradas nos evangelhos.(84) Paulo refere cinco aparições do Senhor vivo. Mc 16,1-8 não conhece nenhuma aparição, mas diz claramente que Cristo se deixará ver na Galiléia (7b). O final de Mc (16,9-20) condensa as aparições relatadas nos outros evangelhos e, com boas razões, pode ser considerado um acréscimo posterior. Mt 28,16-20 conhece uma só aparição aos Onze, na Galiléia, «sobre o monte que Jesus lhes indicara». A aparição às mulheres, às portas do sepulcro vazio (28,8-10), é vista pelos exegetas como uma elaboração ulterior sobre o texto de Mc 16,7: as palavras do Ressuscitado são notavelmente semelhantes às do anjo.(85) Lc refere duas aparições, uma aos discípulos no caminho de Emaús e outra aos Onze e a seus discípulos em Jerusalém (24,13-35; 36-53). Jo 20 refere três manifestações do Senhor, todas elas em Jerusalém. Jo 21, considerado como um apêndice posterior ao Evangelho, refere outra aparição no lago de Genesaré, na Galiléia. Contudo a interpretação desse capítulo é mais coerente se admitirmos que seja a reelaboração de uma tradição pré-pascal acerca do chamamento dos discípulos (Lc 5,1-11), agora recontada à luz da novidade da Ressurreição com a clara intenção de relacionar o ministério de Pedro com o poder do Cristo ressuscitado. Os relatos revelam duas tendências fundamentais: Mc e Mt concentram seu interesse na Galiléia enquanto Lc e Jo em Jerusalém, com a preocupação de ressaltar a realidade corporal de Jesus e a identidade do Cristo ressuscitado com Jesus de Nazaré. A harmonização, feita geralmente pela exegese católica, afirmando que primeiro Cristo teria aparecido em Jerusalém e depois na Galiléia, está sendo abandonada. As dificuldades dos textos, da maneira das aparições e o melhor conhecimento das tradições e do trabalho redacional dos hagiógrafos, induzem a concluir pelo seguinte: as aparições na Galiléia têm mais fundamento histórico; as de Jerusalém seriam elaboração de caráter mais teológico das vivências na Galiléia, com a intenção de relevar o significado histórico-salvífico da cidade e da comunidade primitiva aí formada. «A salvação vem de Sião» (SI 13,7; 109,2; Is 2,3; cf. Rom 11,26). Is 62,11 diz: «Eis que o salvador vem para ti, filha de Sião». A história da salvação atinge em Jerusalém seu termo e sua plenitude. Lc tanto no evangelho quanto nos At frisa esse motivo teológico ligado à cidade: páscoa e pentecostes se realizam aí. O Ressuscitado será anunciado, começando em Jerusalém até os confins do orbe (Lc 24,47; At 1,8). Essa tendência é mais acentuada ainda no evangelho de S. João: o Cristo joaneu age de preferência em Jerusalém por ocasião das festas do povo. A tradição da Galiléia interpretara a páscoa de Jesus não tanto como Ressurreição da carne mas como a elevação, glorificação e manifestação do Filho do Homem (cf. Dan 7,13ss), agora sentado à direita de Deus, utilizando a linguagem do mundo apocalíptico. Mt 28,16-20, representante da tradição da Galiléia, apresenta o Cristo ressuscitado constituído em Poder como Filho do Homem, transmitindo esse mesmo poder à sua Igreja enviando-a à missão. O Reino imperecível (Dan 7,14) é «traduzido» pela presença constante de Cristo na Igreja (Mt 28,19). A Ressurreição é vista como a Parusia do Filho do Homem agora presente na comunidade (cf, 2Pdr 1,16ss). (86)
A pregação e a catequese da Páscoa de Cristo, elaboradas no horizonte da compreensão dos leitores e ouvintes gregos, obrigaram a uma tradução desta interpretação, na linha da Ressurreição da carne. O querigma fundamental agora na tradição do tipo de Jerusalém (Lc e Jo) soa da seguinte forma: «Eu estava morto. Mas eis que agora vivo pelos séculos dos séculos. Eu tenho as chaves da morte e do inferno»
(Apc 1,18; cf Rom 6,10). O problema que surge reside em salvaguardar a realidade da Ressurreição. Cristo vive realmente e não é um «espírito» (Lc 24, 39) ou um «anjo» (At 23,8-9). Daí a preocupação em relevar a identidade do Ressuscitado com Jesus de Nazaré, descrever e tocar suas chagas (Lc 24,39; cf. Jo 20,20.25-29) e acentuar que ele comeu e bebeu com seus discípulos (At 10,41) ou que ele comeu diante deles (Lc 24,43). Os relatos de vivências do Ressuscitado por pessoas privadas, como Maria Madalena (Jo 20,14-18; cf. Mt, 28,9-10) ou dos jovens de Emaús (Lc 24,13-35), são cercados de motivos teológicos e apologéticos dentro do esquema literário das legendas para deixar claro aos leitores a realidade do Senhor vivo e presente na comunidade. Exemplo clássico de tal preocupação é o relato dos jovens de Emaús.(87) O modo como os dois jovens chegaram à fé no Ressuscitado é apresentado como modelo para os leitores: deixar-se instruir pelas Escrituras que falam de Cristo e deixar que os olhos se abram pela «fração do pão», isto é, pela Eucaristia. É o caminho pelo qual nós ainda hoje chegamos à fé na novidade pascal, pela palavra e pelo sacramento. O relato de Emaús (Lc 24,13-35) segue um estilo literário típico de Lucas, utilizado também nos Atos (8,26-39) ao narrar a conversão do camareiro etíope por Filipe. Em ambas as narrações encontram-se os seguintes paralelos: o Ressuscitado ou Filipe inspirado pelo Espírito explica o AT e o relaciona a Cristo. No final o camareiro ou os dois jovens externam um pedido. O ponto culminante do relato reside na recepção de um dos sacramentos que na Igreja primitiva eram fundamentalmente dois, a Eucaristia e o Batismo. Assim a fé na Ressurreição, para os tempos pós-apostólicos, se baseia na pregação e nos sacramentos da Igreja, que testemunham e tornam presente e visível o Cristo Ressuscitado. Mesmo que não houvesse sepulcro vazio e aparições, seria ainda possível e válida a fé na Ressurreição. Por causa da Igreja. Esse é o sentido último intencionado pelo relato da dúvida de Tomé em Jo 20 com a conclusão: «Felizes os que não vêem e apesar disso crêem» (20,29).
3. Tentativa de reconstrução dos acontecimentos pascais
Do exposto acima, dois fatos resultam claros e indiscutíveis: o sepulcro vazio e as apariçoes aos discípulos. Esses porém foram tradicionados e revestidos de várias tendências, conforme as necessidades do momento: necessidades de ordem teológica, apologética, catequética e cúltica. Reconstruir por isso os acontecimentos pascais constitui uma tarefa arriscada com resultados muito fragmentários e questionáveis. Contudo a fé que não se baseia num mito mas numa história sempre mostrará interesse pelo «como foi» a fim de eruir mais profundidade para «o que isso significa para mim». Os relatos da Ressurreição, como os temos agora, teriam como pano de fundo histórico os seguintes pontos: (88)
a) A prisão de Jesus que fez realizar o que ele prevenira: «todos irão escandalizar-se de mim» (Mc 14,27; Mt 26,31). Os discípulos fogem (Mc 14,50; Mt 26,56).
b) Eles o revêem ressuscitado primeiramente na Galiléia (Mc 14,28; Mt 26,32; Mc 16,7; Mt 28,7.16-20). Muito possivelmente, o relato dos jovens de Emaús está subordinado ao regresso dos discípulos à Galiléia, após o fracasso de Jesus em Jerusalém.
c) Um dia depois do sábado as mulheres têm as primeiras vivências pascais. O nome e o número das mulheres variam nos quatro evangelhos. Só Maria Madalena ocorre em todos eles. Elas vão ao sepulcro levar aromas (Lc 24,1; Mc 16,1). Nada sabem da sepultura selada (Mt 27,66). Encontram o sepulcro aberto e sem o corpo de Jesus (Jo 20,1; Mc 16,4; Mt 28,2; Lc 24,2). Fogem com medo e vão informar os apóstolos (Mt 28,8; Lc 24,9ss.23; Jo 20,2ss; Mc 16,7).
d) Um fato determinante para a fé na Ressurreição deu-se algum tempo depois (cf. «depois de seis dias»: Mc 9,2; Mt 17,1 ou «uns oito dias depois»: Lc 9,28) (89) na Galiléia (Mc 16,7; Mt 28,7.16-20; cf. Mc 14,28; Mt 26,32). Cristo ressuscitado se deixa ver aos seus discípulos. Esses interpretam as aparições como encontros com Jesus de Nazaré agora elevado junto a Deus em vida eterna e em glória. Sobre as circunstâncias especiais de lugar, de modo e de número de discípulos pouco se pode, no atual estado da pesquisa, determinar exata e historicamente. Em todos os casos os discípulos viram nos acontecimentos pascais um fato escatológico, como realização plena e acabada da história de Jesus agora manifestado Messias e Filho do Homem e de toda a História da Salvação. Anunciar Jesus como o Salvador e Juiz universal e seu reinado sobre todas as coisas constitui a missão dos Apóstolos e da Igreja. Essa reconstrução é certamente precária. Porém ela contém os dados históricos fundamentais a partir dos quais emergiu a fé na Ressurreição de Jesus como escândalo para muitos (cf. lCor 1,23; At 17,32; 23, 6-9) e esperança e certeza de vida eterna para outros tantos (cf. lCor 15,50ss). Resta saber o que significa para a teologia e para a existência humana de fé, hoje, a Ressurreição de Jesus.
IV- Reflexões de Ordem Sistemática: o Emergir do Novo Adão
COMO anunciar e viver a fé na Ressurreição de Jesus hoje dentro de nossa compreensão da existência? Se a Ressurreição é a verdade fundamental do Cristianismo e o motivo de nossa esperança onde situá-la dentro de nosso horizonte? Para que problemática nossa, hoje, a fé na Ressurreição seria uma luz e um ponto de orientação? Deve haver sempre uma correlação entre as verdades da fé e as experiências da vida. Sem isso a fé não se legitima e corre o risco de transformar-se numa ideologia religiosa.
1. Nosso horizonte de compreensão e fé na Ressurreição
O homem essencialmente é homo viator; está em busca de si mesmo. Quer realizar-se em todas as suas dimensões. Não só na alma. Mas no homem todo, unidade radical corpo-alma. O pensar utópico é uma das constantes em todas as culturas, desde as mais primitivas, como entre nossos índios Tupiguaranis e Apapocuva-guaranis(90), até nossos dias como num Teilhard de Chardin ou A. HuxIey.(91) O homem quer superar todas as alienações que o afligem como a dor, a frustração, o ódio, o pecado e a morte. Quer plenitude e vida eterna. O princípio-esperança é uma estrutura existencial do ser-homem. «Quem me livrará deste corpo de morte?» (Rom. 7,24). Todos os homens sonham com a situação descrita pelo Apocalipse «onde a morte não existirá mais, nem mais luto, nem prantos, nem fadiga, porque tudo isto já passou» (21,4). O homem de hoje se coloca mais que em outras gerações perguntas radicais acerca de seu futuro. A pergunta que mais lhe interessa não é tanto Quem é o homem? mas Que será do homem? Que futuro lhe está destinado? Nietzsche sonhou com o Super-Homem, com um corpo de César e alma de Cristo(92), um santo de uma espécie nunca dantes existente, capaz de dominar com suma responsabilidade o mundo por ele mesmo criado. A ânsia de realização pessoal e cósmica do homem é sempre frustrada pela morte. Ela é uma barreira para todas as utopias. Que resposta dá o Cristianismo a semelhante questionamento? É aqui que a fé na Ressurreição, como o futuro absoluto do homem, ganha ressonância especial, como a teve outrora, no tempo de Jesus. A teologia judaica pós-exílica elaborou a utopia do Reino de Deus (nos seus vários modelos: político, profético e sacerdotal) como a transformação radical dos fundamentos deste mundo e irrupção do novo céu e da nova terra, uma realidade totalmente reconciliada com Deus e consigo mesma.(93) O tempo de Cristo se caracteriza por essa efervescência e expectativa messiânico-escatológica (cf. Le 3,15). O mundo helênico da mesma forma era pervadido por doutrinas de libertação. A gnose prometia redenção para a existência alienada do homem perdido no mundo. Coube a Hans Jonas mostrar em suas minuciosas pesquisas o quanto o mundo gnóstico se assemelha por sua temática e preocupações com o moderno existencialismo. (94) Num contexto assim foi anunciada a novidade absoluta do triunfo da vida sobre a morte, e como são verdadeiras aquelas palavras do Cântico dos Cânticos: «Tão forte como a morte é o amor» (8,6). Não só o evangelho da Ressurreição se situa num tal horizonte de compreensão mas principalmente a mensagem toda de Jesus, da qual a Ressurreição constitui o dado central.
2. A Ressurreição de Jesus: uma utopia humana realizada
Um homem se levanta na Galiléia. Jesus de Nazaré, que mais tarde se revelou como sendo o próprio Deus em condição humana, ergue sua voz e anuncia: «Esgotou-se o prazo. O romper da nova ordem está próximo e esta será trazida por Deus. Revolucionai-vos em vosso modo de pensar e agir. Crede nessa alviçareira notícia» (cf. Mc 1,15; Mt 4,17). Com isso Cristo assume um elemento de utopia presente em todos os homens: a superação deste mundo alienado, levada a efeito por Deus. Reino de Deus, palavra que ocorre 122 vezes nos evangelhos e 90 vezes na boca de Cristo, significa uma revolução total e estrutural dos fundamentos desse mundo, introduzida por Deus. Reino de Deus não significa tanto algo de interior ou espiritual ou mesmo que vem de cima ou que se deva esperar fora deste mundo ou depois da morte. Em seu sentido pleno Reino de Deus é a liqüidação do pecado com todas as suas conseqüências no homem, na sociedade e no cosmos, a transfiguração total deste mundo no sentido de Deus.(95) Os milagres de Jesus, mais que provar sua divindade, visam mostrar o reino presente em nosso meio.(96) Cristo mesmo diz: «Se eu com a mão de Deus expulso demônios, sem dúvida o reino de Deus chegou até vós» (Lc 11,20). É um enfermo curado, então se manifesta aí a presença do reino de Deus (Lc 10,9). Por isso grita ele: «Bemaventurados vós pobres, porque a vós pertence o reino de Deus. Bem-aventurados vós que tendes fome, porque sereis saciados. Bem-aventurados os que agora chorais porque ireis rir» (Lc 6,20-21), Cristo mesmo já é a presença do novo homem na nova ordem. Aos seus olhos doenças são curadas (Mt 8,1617; Mc 6, 56). Aplacam-se tempestades (Mt 8,23-27) e o mar é posto a serviço do homem-rei (Lc 5,4-7), a fome é vencida (Mc 6,30-40), pecados são perdoados (Mc 2,5; Lc 7,48) e existe misericórdia para os lábeis (Jo 8,1-11), mortos ressuscitam e o luto se transfigura em alegria fraterna (Lc 7,11-17; Mc 5,4143).(97) Ao se levantar na Galiléia anunciando a nova do reino, Cristo lê na sinagoga um tópico de Isaías, que diz: «Para evangelizar os pobres, Ele me enviou, a pregar aos cativos a liberdade, aos cegos a recuperação da vista, para pôr em liberdade os oprimidos e para anunciar um ano de graça do Senhor». E comenta Jesus: «Hoje se cumpre essa escritura que acabais de ouvir» (Lc 4,18-19.21). S. João Batista no cárcere, em dúvida se Cristo era o Enviado de Deus para trazer o Reino da total libertação dos homens e de seu mundo, manda seus discípulos a ele para perguntar-lhe: «És tu aquele que há de vir ou devemos esperar por outro?» A resposta não podia ser outra, pois que constitui o conteúdo de sua mensagem: «Cegos vêem, coxos caminham, leprosos são purificados, surdos ouvem, mortos são ressuscitados e a boa noticia da libertação é anunciada aos pobres» (Mt 11,5). Aqui está o sinal da reviravolta total e estrutural. Aquele que conseguir introduzir isso será o libertador da humanidade. E Cristo se apresenta como o salvador do mundo. Como transparece, Reino de Deus não pode ser privatizado para uma zona do homem como seja sua alma, os bens espirituais ou a Igreja. Reino de Deus abarca toda a realidade humana e cósmica que deve ser transfigurada e liberta de todo o sinal de alienação. Se o mundo permanecer como está, não pode ser a pátria do Reino de Deus. Deve ser transformado em suas estruturas totais. Daí o Logion do Jesus joaneu: «Meu reino não é deste mundo» (Jo 18,36), isto é, não é das estruturas ambíguas e pecadoras deste mundo, mas de Deus em sentido objetivo de: é Deus que irá intervir e sanar em sua raiz a realidade total, elevando este mundo em novo céu e nova terra. Já Santo Agostinho comentava: Meu reino não é deste mundo mas está neste mundo. Elemento essencial do reino é a aniquilação da morte como o maior inimigo do homem em sua ânsia de realização e vida plena. São João traduz a temática jesuânica de reino dos céus exatamente como vida eterna.
A rejeição, por parte dos judeus, de Jesus e de sua mensagem frustrou a realização cósmica do reino de Deus. Deus, porém, que triunfa na fraqueza e na infidelidade dos homens, realizou o reino de Deus na pessoa de Jesus. Já dizia Orígenes: Cristo é a auto-basiléia tou Theou, isto é, o reino de Deus realizado em sua pessoa. Nele foram vencidos a morte, o ódio e todas as alienações que estigmatizam a existência humana, Nele se revelou o homem novo (homo revelatus), o novo céu e a nova terra. Paulo bem o compreendeu quando feliz exclama: «ó morte, onde está a tua vitória? Onde está o espantalho com que amedrontavas os homens ... A morte foi tragada pela vitória» (cf. lCor 15,55a.b). Cristo ressuscitou, não para a vida biológica que tinha antes, mas para a vida eterna. O Bios está sempre sob o signo da morte, a Zoé (vida eterna) se situa no horizonte do Pneuma de Deus indestrutível e imortal.(98) Ressurreição se define então como a escatologização da realidade humana. A introdução do homem como totalidade corpo-alma no reino de Deus. A presença da Zoé eterna dentro do Bios finito e humano. A realização total das potencialidades que Deus colocou dentro da existência humana. Com isso se realizou uma utopia que dilacerava o coração humano. Em Jesus Cristo recebemos a resposta definitiva de Deus: não a morte mas a vida é a última palavra que Ele, Deus, pronunciou sobre o destino humano. Para o cristão não mais uma utopia mas uma topia: a vida eterna possui um lugar dentro de nosso mundo, sagrado para a morte, Jesus Cristo ressuscitado. O nosso futuro está aberto, e o fim da história do pecado-graça tem um fim bom, já garantido e atingido. Com isso entrou para a história da consciência humana aquilo que o mundo antigo todo não conhecia, o sorriso da esperança. O mundo antigo conhece sim as gargalhadas de Pan ou de Dionísio embriagado. Retratou o sorriso triste de quem vive sob a Moira. Mas não conhece o sorriso de quem já venceu a morte e goza das primícias da vida eterna. «Porque Jesus ressuscitou dos mortos como primícias dos que morrem» (lCor 15,20). «Ele é o primogénito entre muitos irmãos» (Rom 8,29). O que é presente atual para ele será para nós futuro próximo. (99)
A Ressurreição não é um fato privado da vida de Jesus. É a realização em sua existência da mensagem de global libertação que ele pregou e prometeu. Ele é a nova humanidade, o novo Adão «no qual todos somos vivificados» (lCor 15,22). «O Reino já está presente em mistério aqui na terra. Chegando o Senhor ele se consumará», anuncia-nos o Vaticano II (GS n. 39).
3. A novidade do homem novo
A novidade do novo homem, irrompida com o evento-ressurreição, reside, como já acenamos, na plenificação de todos os dinamismos latentes dentro da realidade humana de Jesus. Deus não substitui o velho por um novo, mas faz do velho, novo. Como veremos, no próximo capítulo, a capacidade de abertura, de comunicação e comunhão, próprios do homemcorpo, foram pela ressurreição totalmente realizados.(100) Por isso o Ressuscitado possui uma presença, não mais limitada ao espaço e tempo palestinense, mas se estende à totalidade da realidade. Paulo exprime tal verdade dizendo que o Cristo ressuscitado vive agora na forma de Espírito (cf. 2Cor 3,17; lCor 6,17; 15, 45; Rom 8,9) e seu corpo sárquico (fraco e limitado pelo espaço e pelo tempo) foi transformado em corpo pneumático-espiritual (cf. lCor 15,44).(101) Afirmando que Cristo é Espírito, Paulo não pensa ainda em termos de Terceira Pessoa da Santíssima Trindade mas, dentro da compreensão judaica, quer fazer entender as reais dimensões da realidade da ressurreição: assim como o Espírito enche todas as coisas (SI 139,7; Gên 1,2) da mesma forma, agora, o Ressuscitado. Ele é o Kyrios, o Cristo cósmico (cf. Col 1,15-20; Ef 1,10) e o pleroma (Ef 1,23; Col 2,9), isto é, aquele elemento pelo qual a totalidade do mundo atinge sua plenitude e o termo de sua perfeição. Esse tema foi com inusitada paixão desenvolvido por Teilhard de Chardin, embora estivesse bem presente no pensamento paulino e em suas comunidades. (102) A fé da comunidade primitiva numa «ubiqüidade cósmica» do Ressuscitado foi expressa num ágrafon do evangelho de S. Tomé (grego) : «Diz Jesus: onde dois estive rem, não estão sem Deus. Onde alguém está só, eu digo: Eu estou junto dele. Levanta a pedra e tu me encontrarás dentro dela. Racha a lenha e eu estarei lá».(103) A promessa feita pelo Ressuscitado: «Eu estarei convosco todos os dias até a plenitude dos tempos» (Mt 28,20; cf. 18,20; Jo 14,23) aqui recebe uma concretização no meio do mundo secular do trabalho. Esse pode parecer sem sentido, e não raro é perigoso e pesado. Para o fiel ele esconde uma glória misteriosa: coloca em comunhão com o Ressuscitado. Ele está presente por tudo e sempre junto dos seus, pouco importa o que façam. O Ressuscitado, existindo em forma pneumática, está livre das cadeias do espaço e do tempo, é total comunhão e presença primeiro em todo o cosmos, de forma mais intensa na Igreja, que é seu corpo (cf. Col 1,18) ; de maneira mais densa ainda quando a comunidade reza e salmodia em seu nome; de maneira especial nas ações litúrgicas e de modo particularíssimo no sacramento da Santíssima Eucaristia (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 7). Com isso viemos a saber que o fim dos caminhos de Deus reside no homem-corpo, totalmente transfigurado e feito total abertura e comunicação.(104)
4. Conclusão
Muitos outros aspectos de ordem sistemática deveriam ser aqui abordados, como fizeram Durrwel(105) ou K. Rahner(106) em sucessivos ensaios, como por exemplo o aspecto soteriológico da Ressurreição, já ressaltado nas primeiras fórmulas cristológicas de Ressurreição (lCor 15,3; Rom 4,25; Lc 24,30ss; At 10,43; lCor 15,17), o aspecto futurístico-escatológico, o querigmático e o antropológico, cujas linhas mestras delineamos acima, o sacramental e o eclesiológico. Essa múltipla dimensionalidade está presente nos relatos da Ressurreição, que devem ser hermeneuticamente relidos a partir de nossa existência de fé hoje. Em cada aspecto nota-se uma tônica de fundo: a Ressurreição significa a verdade e a realização da pregação de Jesus. Ele veio pregar o Reino de Deus, que, fundamentalmente, se traduz por vida eterna não mais ameaçada pela morte. A Ressurreição veio mostrar que isso não é uma utopia humana mas uma realidade dentro do velho éon. O futuro já está presente como esperança que é um já agora embora não ainda totalmente realizado. Isso funda um modelo novo de vida para o qual as realidades futuras já se configuram no presente, enchem de um dinamismo novo o homem de fé e lhe permitem ousar tudo porque já sabe que o f im está garantido e este será feliz porque se chama Vida Eterna. Vejamos, porém, como a fé na ressurreição de Cristo se articula com nosso próprio futuro e com a nossa própria ressurreição.
V- A Nossa Ressurreição na Morte
A DESPEITO da luz nova trazida pelo clarão do Cristo ressuscitado para o problema da morte humana ela se apresenta como um fenômeno de extrema riqueza antropológica e teológica.(1) Em sua abordagem transparecem com nitidez os reais pressupostos, ainda que inconscientes e até explicitamente negados, implicados em cada modelo de teologia e de antropologia. A compreensão da morte não é sem importância para entender a vida humana, o valor ou o desvalor da situação terrestre, como situar a antropologia teológica em função da pastoral e da catequese sobre o sentido da vida, o destino dos mortos, sobre o significado do juízo, do purgatório, da ressurreição e de nossas orações «pelas santas almas benditas».(2) Esse tema não se apresenta como um entre tantos da teologia. Nem como um capítulo importante da escatologia. Mas como um nó que enfeixa a problemática geral da antropologia no seu sentido mais vasto.
Nossas reflexões querem ser de ordem teológico-especulativa e partem do dado fundamental da fé: o homem é destinado à ressurreição para participar, com a totalidade de sua realidade complexa, na vida eterna de Deus. Essa proposição da fé, assim formulada, apresenta-se sem qualquer mediação antropológica prévia. Apesar disso afirmamo-la por causa da ressurreição de Cristo que é o primogênito dentre os mortos e o primeiro entre muitos irmãos. E aqui começa o questionamento: a ressurreição é puro dom gratuito de Deus, como que vindo de fora e surpreendendo nossa própria realidade? Ou ela realiza um estatuto antropológico do homem, gratuitamente criado nele por Deus, de tal forma que a ressurreição vem ao encontro de um profundo anseio do homem, sem cuja realização a vida, vista teologicamente, não atingiria seu sentido pleno para o qual foi criada? Em outras palavras, colocando o problema em termos de morte-imortalidade-ressurreição: a ressurreição pressupõe a imortalidade da alma (ou do homem) ou a imortalidade da alma pressupõe a ressurreição? Ressuscitamos porque somos imortais ou somos imortais porque ressuscitamos?
I. MORTE E RESSURREIÇÃO E SUA LEITURA NAS ANTROPOLOGIAS BÍBLICA E GREGA
1. A solução conciliadora da teologia católica clássica
De antemão podemos avançar o seguinte dado que parece inquestionável: Não pertence ao querigma fundamental do Novo Testamento o tema da imortalidade da alma.(3) O Novo Testamento conhece e professa sua fé na ressurreição, dos mortos. A filosofia grega, nomeadamente o platonismo, sob cuja influência esteve a jovem Igreja missionária no mundo helênico, conhece a imortalidade da alma. Mas não conhece nem pode imaginar uma ressurreição. A reflexão na teologia cristã conciliando os aut-aut com um et-et formulou a seguinte proposição: a alma é imortal. Depois da morte do justo, separada do corpo, ela é julgada por Deus e goza de sua presença até o fim do mundo quando será novamente reunida ao corpo agora ressuscitado para com ele gozar eternamente da comunhão com Deus. A doutrina da imortalidade da alma dos gregos foi completada com a outra bíblica da ressurreição dos mortos. Com isso se afirma:
a) a morte não é total: atinge apenas o corpo do homem;
b) a ressurreição também não é total: atinge tão somente o corpo;
c) o homem é fundamentalmente um composto de duas substâncias em si incompletas: corpo e alma. Tomás de Aquino dirá: serão dois princípios que unidos formam o homem uno. A alma é a forma do corpo e mantém uma relação essencial com a matéria. Separada retém da mesma forma essa relação transcendental de tal modo que sempre tende a reunir-se ao corpo. Separada do corpo vive um estado contrário à sua natureza e por isso violento.(4) Essa tendência não fundamenta ainda a ressurreição do corpo, como alguns querem, mas apenas sua revivificação. Semelhante combinação efetuada dos padres até os escolásticos abandonou, na verdade, tanto o pensar platônico quanto o bíblico. A filosofia platônica não conhece a valorização do corpo nem aceita que a alma, finalmente livre, possa voltar ao corpo-cárcere (soma-sema em grego: Platão, Górgias 47,493 A). Por outro lado, o semita não conhece uma alma sem corpo, nem possui palavra correspondente para isso. Se ela sobreviver à morte sê-lo-á sempre em forma corporal. Por outro lado Platão concebe a morte como ascensão para a liberdade e total espontaneidade da alma. Para a Bíblia a morte significa uma descensio ad inferos (xeol) onde reina sombra e vida imperfeita.
Essa concepção dualista (mitigada porém em Tomás de Aquino) pervadiu toda a antropologia católica(5) com não poucas conseqüências querigmáticas. A práxis eclesial pregou muito mais a imortalidade da alma que a ressurreição dos mortos. Anunciou com mais freqüência um axioma filosófico que uma verdade revelada, que para a Igreja primitiva era indiscutivelmente o centro de todo o anúncio cristão. Esse platonismo depurado entrou nas formulações dogmáticas como a de Bento XII (Benedictus Deus de 29 de janeiro de 1336) e a bula Apostolici regiminis de 19 de dezembro de 1513 do quinto Concilio do Latrão. Bento XII diz que as almas de todos os santos e de todos os que morreram com o batismo e não têm nada a pagar no purgatório «vão imediatamente após sua morte» para o céu para estar com Cristo e mesmo antes da «reassunção de seus corpos vêem a essência divina, com visão intuitiva, inclusive facial, sem a mediação de qualquer outra criatura» (DS 1000). Leão X no Concílio de Latrão canoniza a doutrina platônica da imortalidade da alma contra Pietro Pomponazzi, neo-aristotélico averroísta, com a seguinte afirmação: «Condenamos e reprovamos todos os que afirmam que a alma intelectiva seja mortal ou a mesma em todos os homens» DS 1440; cf. 2766, 3771). Não é aqui o lugar de fazermos a hermenêutica de tais afirmações, situá-las dentro das coordenadas da opção antropológica grega e ressaltar o fato de que só dentro do sistema podem ser entendidas corretamente e ganham sua validade teológica. Se o Concílio de Latrão se movesse dentro do horizonte da antropologia semita poderia fazer a afirmação que fez? Certamente em vez de falar em imortalidade da alma, canonizaria a imortalidade da pessoa humana total e não de uma parte dela. Essa interpretação parece, segundo as mais recentes pesquisas(6), revestir de fato a intenção conciliar. M. Schmaus, no seu recente manual de dogmática, diz: «Não há nenhuma declaração do Magistério que defina obrigatoriamente a morte como separação do corpo e da alma. As declarações oficiais querem garantir a continuidade da vida do homem para além da morte mas não afirmam expressa e formalmente que esta vida deva ser entendida exclusivamente como imortalidade da alma espiritual. Quando os textos do Magistério (especialmente a declaração de Bento XII: DS 1000) afirmam a imortalidade da alma espiritual utilizam uma formulação emprestada do modelo grego de pensar, através do qual era explicada a sobrevivência do homem para além da morte».(6a) Em todos os casos, nota-se aqui a emergência de duas antropologias diferentes.
2. A morte no pensar platônico e no pensar semita
Porque são duas antropologias diferentes, distintas apresentam-se também as concepções da morte. Basta que tracemos um paralelo, já usado outrora pelos filósofos pagãos contra os cristãos, para darmo-nos conta dessa verdade: a morte de Sócrates com a de Cristo. Platão com maestria inimitável traça no Fédon a figura soberana de Sócrates frente à morte. A morte é «a separação do corpo e da alma». (7) Esta anseia libertar-se do cárcere para estar em si mesma e poder contemplar as idéias eternas. Disso se segue que «o filósofo autêntico é o que se exercita no morrer e para quem nada é menos terrível do que a morte». (8) «Os que filosofam estão em contínua agonia de morrer» (9), «purificando o contacto da alma com o corpo na esperança de que Deus mesmo venha romper as ataduras que os unem». (10) E narra então como Sócrates «tomou o cálice (de sicuta) em seus lábios, e o bebeu com uma tranqüilidade e uma doçura maravilhosas». (11) «Este é o fim de nosso amigo, do homem, podemos dizer o melhor dos homens que tivemos conhecido nesse tempo, o mais sábio, o mais justo de todos os homens».(12)
Em contraposição a Sócrates, temos a morte de Jesus.(13) Ele prevê um fim trágico: «sua alma está triste até à morte» (Lc 26,38). Lucas caracteriza ainda mais: «e cheio de angústia orava com mais instância. E seu suor tornou-se como grossas gotas de sangue, que corriam até à terra» (Lc 22,44). Ele estremece, sente-se só e abandonado pelos seus (Mt 26,40): «Pai, se puderes afasta de mim este cálice» (Mc 14,36). A morte é inimiga do homem a quem tudo está submetido. O autor da epístola aos Hebreus, com tons existencialistas, nota que Jesus «elevou orações e súplicas com grande clamor e lágrimas Àquele que o podia salvar da morte» (5,7). À diferença de Sócrates, não morre sereno, mas quase às raias do desespero: «dando um grande grito, expirou» (Mc 15,37). Para o semita a morte não é libertação, «formoso risco» (14), como diz elegantemente Platão, mas a grande potência do mal, que entrou por causa do pecado (Rom 5,12), «o último inimigo a ser reduzido ao nada por Deus» (lCor 15,26).
Essa contraposição releva a diferença profunda entre as duas antropologias e correspondentes concepções da morte. Para o grego platônico o homem não morre totalmente, sua alma é imortal. Para o semita o homem todo inteiro morre ou assume uma forma imperfeita de vida no Seol; porém, para a fé neotestarnentária, ele ressuscita todo inteiro. Isso deveremos ver mais minuciosamente.
3. A experiência da ressurreição de Cristo como novo horizonte para a antropologia
O Novo Testamento jamais prega em seu anúncio central a imortalidade da alma, mas a ressurreição dos mortos como o grande futuro do homem para o após-morte. Essa mensagem não é fruto de uma especulação de ordem antropológica, mas de uma experiência vivida que os levou a exclamar radiantes: «O Senhor ressuscitou verdadeiramente e apareceu a Simão» (Lc 24,34). (15) Esse fato porém trouxe-lhes um enriquecimento antropológico novo: a morte foi vencida e seu poder até agora inquebrantável se revelou ser um espantalho: «ó morte, onde está a tua vitória? A morte foi tragada na vitória» (lCor 15,55). Convém notar muito bem, e nisso nos distanciamos de Willi Marxsen e Heinz Robert SchIette: não foi por causa das categorias antropológicas semitas que os fenômenos das aparições e do sepulcro vazio puderam ser interpretados como ressurreição. A ressurreição foi um impacto que surpreendeu os apóstolos e os dominou. De repente «o que ouvimos, o que com nossos olhos vimos, o que contemplamos e o que nossas mãos palparam tocando», o crucificado, morto e sepultado estava diante deles. Não simplesmente revivificado, como alguém que assumira seu cadáver, mas totalmente transfigurado, glorioso e repleto de Deus. Essa experiência originária, que de início foi interpretada dentro das categorias do pensar apocalíptico como elevação do justo sofredor junto de Deus, foi posteriormente inserida dentro das categorias antropológicas tradicionais do judaísmo.(16) A antropologia semita serviu de material de representação para comunicar aos fiéis a novidade da ressurreição do Senhor. Com isso não se quer dizer que o modelo antropológico semita tenha sido canonizado ou que seja melhor e mais adequado do que qualquer outro antigo ou moderno. Apenas serviu de material representativo com o qual a experiência de ressurreição pôde ser expressa, e assim ter chegado até nós. A novidade antropológica conquistada a partir da ressurreição de Cristo é a seguinte: se Cristo ressuscitou, então nós também haveremos de ressuscitar; Ele é o primeiro e «todos somos vivificados nele» (lCor 15,20.22; Rom 8,29; Col 1,18). Sua ressurreição não emerge como um fato isolado, mas se dimensiona universalmente a toda a humanidade, porque Ele é o novo Adão (Rom 5,14).
a) Categorias antropológicas semitas e Ressurreição
Como o Novo Testamento concretiza essa novidade? Que categorias antropológicas servem de meio de comunicação? Há unanimidade entre os exegetas em afirmar que a ressurreição foi expressa não nas categorias gregas de corpo e alma mas nas semíticas de carne-corpo-espírito.(17) Precisamos deixar isso bem claro. Porque nem sempre quando um semita usa a palavra corpo ou espírito deve-se entender a mesma coisa, como corpo e espírito, dentro do modelo grego de antropologia. A mesma palavra corpo para um e para outro significa bem outra realidade. Para nós, ocidentais e herdeiros da cultura grega, impõe-se especial atenção, porque em nosso sistema lingüístico as palavras corpo e espírito possuem um significado bem determinado, diverso daquele dos semitas ou do capítulo 15 da primeira epístola de S. Paulo aos Coríntios. Nesta epístola Paulo coloca-se diretamente a pergunta: «Como ressuscitam os mortos? Com que corpo voltam à vida?» E responde: «ressuscita-se um corpo espiritual» (lCor 15,35.44). Que significa essa expressão? Corpo não exclui o espírito? Para o nosso pensar, e também para o grego, espírito se contrapõe ao corpo, porque corpo é material e espírito é imaterial. Por que Paulo une duas coisas contraditórias? Porque para ele, bem como para todo pensar semita, espírito não se contrapõe a corpo. (18) Como veremos pormenorizadamente logo abaixo corpo significa o homem todo inteiro (interior e exterior: 2Cor 4,16; Rom 7,22; corpo e alma) enquanto é comunhão; corpo é o termo mais próximo ao nosso conceito de personalidade. Nesse sentido o homem não tem corpo mas é corpo. O homem-corpo pode transformar-se em carne pelo pecado. Carne significa a situação humana rebelde contra Deus (Rom 2,28-29). «A carne é fraca» (Mc 14,38), e «suas tendências são a morte» (Rom 8,6) que entrou por causa do pecado (Rom 8, 12). Paulo chega a falar em corpo da carne (Col 2, 11), isto é, a personalidade humana (corpo) organizada contra Deus (carne; cf. ainda corpo de pecado [Rom 6,6], ou carne do pecado [Rom 8,3], ou ainda em corpo de morte [Rom 7,24]; corpo de humilhação e de desonra [Flp 3,21; lCor 15,43]). A carne não pode herdar o reino de Deus (lCor 15,50) enquanto que o corpo é para o Senhor (lCor 6,13). Por isso Paulo nunca fala em ressurreição da carne, mas do corpo que deve ser mudado (lCor 15,51) e transformado (Rom 6,6; 8;23; Flp 3,21) em corpo espiritual. Espírito, por seu turno, indica o princípio pelo qual o homem se ordena a Deus. Deus mesmo é espírito (ruah), poder e força de vida e de ressurreição: «o espírito é que dá a vida e a carne para nada serve» (Jo 6,63). Espírito se opõe, não ao corpo, mas à carne: «as tendências da carne são a morte, mas as do espírito são vida e paz» (Rom 8,6). Se Paulo diz que o homem pela ressurreição transformou-se em corpo espiritual, isto significa: a personalidade humana, a partir de agora, é totalmente comunhão, abertura, comunicação com Deus, com os outros e com o mundo. O «corpo de carne» sofredor, sujeito às tentações e ao pecado, é totalmente libertado e feito corpo-espiritual. A ressurreição operou esta transformação. Portanto a verdadeira libertação não reside no abandono do corpo, mas na sua assunção e total orientação para Deus, de tal forma que o homem se torne repleto da realidade divina através da ressurreição. Numa palavra: com a expressão corpo espiritual, Paulo quer dizer o seguinte: pela ressurreição o homem todo inteiro foi radicalmente repleto da realidade divina e libertado de suas alienações como fraqueza, dor, impossibilidade de amor e de comunicação, pecado e morte. O homem não abandonou nada de seu estatuto antropológico, apenas foi totalmente libertado e penetrado da realidade divina. Isso se chama ressurreição, que deve ser fundamentalmente distinguida de revivificação. (19) O homem ressuscita não para a vida biológica, mas para a vida eterna, não mais ameaçada pela morte. A ressurreição se define então como a escatologização da realidade humana. A introdução do homem como totalidade corpo-alma no reino de Deus.
Essa certeza desdramatiza a morte, pois ela não é a última palavra que Deus pronunciou sobre o destino humano. Aqui encontramos também o ponto de convergência entre a concepção platônica e cristã de morte: ambos através de caminhos diversos conseguem a mesma serenidade e confiança frente ao mesmo mistério. Sócrates suspira pela morte como condição para a imortalidade da alma. O cristão, a partir de uma ótica diferente, encara com serena alegria a morte, pois desde que Cristo ressuscitou não há mais a segunda morte; a primeira morte se transformou em passagem para a glorificação do Pai (Jo 13,1).
b) Quando se dará a Ressurreição?
A vida cristã é um estar-com-Cristo, expressão que ocorre 196 vezes no Novo Testamento para exprimir a mais íntima união do fiel com Cristo ressuscitado e pneumático. Isso implica que «aqueles que se revestiram de Cristo são nova criatura» (2Cor 5,17; Gál 3,27). As forças do século futuro já estão agindo dentro do coração do mundo (cf. Hbr 6,5). O batismo, segundo a teologia paulina, nos faz participar da morte e ressurreição de Cristo (Rom 6,1-11; Col 2,12). Mais ainda: Deus não só nos «co-ressuscitou, senão que nos sentou nos céus em Cristo Jesus» (Ef 2,6). Porém essa vida nova com Cristo em Deus permanece escondida e só será visível na parusia (Col 3,1-4), que para Paulo era iminente. No início de sua pregação fala de fato da ressurreição dos mortos em termos de futuro próximo (lTes 4,1517). Ele mesmo espera poder presenciar ao arrebatamento dos vivos nas nuvens, ao encontro do Senhor (v. 17). Depois, devido aos perigos de morte porque passou (lCor 15, 32; 2Cor 1,8-10; 4,712), começa a contar com um possível desenlace. Então coloca-se a questão da existência do homem no intervalo entre a morte e a pa rusia. (21) Paulo argumenta da seguinte forma: nossa habitação terrestre é o corpo mortal. Se esta habitação desmoronar (morrer), não nos preocupemos porque temos nos céus uma habitação eterna, isto é, um corpo celeste. Na parusia os mortos que estão no Senhor (cf. Flp 1,23) serão revestidos deste corpo celeste e os que ainda não morreram serão sobrevestidos de tal forma que a nossa mortalidade seja absorvida pela vida (cf. 2Cor 5,1-5). Ele prefere estar entre os vivos e ser sobrevestido a estar entre os mortos já vestidos. Apesar disso «quiséramos exilar-nos do corpo, e tomar morada junto do Senhor» (2Cor 5,8). Como é a vida junto do Senhor, exilado do corpo, não fica muito claro no pensamento de Paulo. Certo é que se apresenta mais desejável que a vida no corpo longe dele (2Cor 5,6-8; Flp 1,23).(23) Paulo parece não ver ele mesmo nitidamente como deva ser a vida dos mortos em relação ao Senhor ressuscitado. Em todos os casos, confessa : «conformemente aguardo e espero, em nada serei confundido; antes, estou inteiramente seguro, como sempre, também agora, de que Cristo será glorificado em meu corpo, ou pela vida ou pela morte. Pois para mim a vida é Cristo, e a morte lucro» (Flp 1,20-22). Ele afirma por um lado que a ressurreição, conforme a doutrina comum dos judeus, se realizará no fim do mundo com a parusia do Senhor, por outro acentua que o essencial já se realizou nessa vida terrestre pela fé, esperança e batismo; este já nos fez morrer, ressuscitar e estar com Cristo nos céus (Rom 6,1-11; Col 2,12; Ef 2,6). Já agora somos possuidores daquele Espírito que ressuscitou a Jesus dos mortos. «Ele dará também a vida aos nossos corpos mortais» (lCor 6,14).
A mesma dialética entre o presente e o futuro surge no evangelho de S. João. Por um lado afirma-se a ressurreição para o último dia, como os judeus criam (Jo 11,24; 6,39-40.44.54), por outro precisa-se que quem crer em Jesus já possui a vida (5,24; 6, 40.47), passou da morte para a vida e já não morre mais (11,26; 5,24-25). A escatologia já agora emerge como uma realidade presente, porém ainda não perfeita e acabada: «agora nós somos filhos de Deus, embora ainda não se haja manifestado o que havemos de ser. Sabemos que, quando Ele aparecer, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal qual Ele é» (1Jo 3,2). Como transparece, tanto em Paulo como em João, verifica-se o deslocamento dos acentos, do futuro para o presente, sem contudo absorver totalmente o futuro no presente. A união com o Ressuscitado aqui na terra é tão íntima que significa uma verdadeira libertação da morte. A sobrevivência da alma, tal como a reflexão da teologia posterior tentou eruir destes textos de ressurreição parece não ser afirmada por eles. Falam simplesmente em ressurreição que afeta o homem todo. A ressurreição é obra do Espírito que já agora possuímos. Ele manterá a continuidade entre a vida e a morte: «quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor» (Rom 14,8). Benoit (23) aventa a idéia de que a morada celeste que nós já agora possuímos no céu não seja individual. Antes, tratar-se-ia do corpo do Senhor ressuscitado. Na terra já estamos inseridos nesse corpo. A morte nos faria participar mais profundamente lamente desse corpo. A total transfiguração do homem individual, porém, vii-ia no final do mundo juntamente com toda a criação (Rom 8,23).
O conceito de ressurreição, como sublinha fortemente Marcello Bordoni, num brilhante trabalho sobre as dimensões antropológicas da morte, não possui tanto, para o Novo Testamento, um caráter cósmico-apocalíptico de repristinação corpórea do homem, devido a uma exigência antropológica. Antes possui um caráter religioso concernente às relações do homem com Deus por Cristo, agora totalmente realizadas como amizade, amor e radical reconciliação. A ressurreição corpórea a se realizar no fim dos tempos seria a plenitude daquilo que na terra já começou e se prolongou para além da morte como um estar-com-Cristo. (24) Contudo, urge observar que lCor 15,35-55 não permite semelhante espiritualização do conceito de ressurreição. Os textos abordam ex professo e data opera o problema da realidade terrestre do homem em relação à ressurreição. A solução que Paulo aí formula, embora ele mesmo quiçá não tenha visto todas suas conseqüências se articula na seguinte proposição: «é preciso que este corpo corruptível (a pessoa) se revista de incorrupção, e que este ser mortal (pessoa) se revista de imortalidade» (lCor 15,53). Assim a ressurreição é apresentada como a transfiguração total do homem, de situação terrestre em situação celeste. Deus não substitui o velho pelo novo. Mas faz do velho novo. A ressurreição criou um horizonte antropológico novo para o cristão: não se fala jamais em imortalidade da alma, mas em ressurreição na forma de estar-com-Cristo. Porque estamos em Cristo, já agora a morte é uma das formas de estarmos com Ele (2Cor 5,8; Flp 1,23) ; é uma passagem (Jo 5,24) semelhante à morte de Cristo, passagem deste mundo para o Pai (Jo 13,1) como glorificação (Jo 17,1-2), concernindo o homem todo e não parte dele.
II. RELEITURA DA RESSURREIÇÃO DENTRO DA ANTROPOLOGIA DE HOJE
A fé na ressurreição de Cristo e sua relevância para nós foi pelo Novo Testamento expressa com as possibilidades que a antropologia semita oferecia. Devemos reconhecer com J. Ratzinger que esta mediação se apresenta extremamente arrojada e generosa (25), traduzindo de forma muito adequada a experiência que os Apóstolos tiveram de Jesus como ressuscitado. Como vamos nós, que não somos mais semitas, nem em antropologia nos filiamos às coordenadas de interpretação deles, expressar essa mesma convicção? A ressurreição é para nós certeza alegre e esperança alviçareira a abrir-nos um futuro desanuviado e absoluto porque cremos: o futuro de Cristo é o futuro da humanidade. Ao vivermos nossa fé na ressurreição de Cristo e dos demais homens, que instrumentos antropológicos utilizamos para a nossa própria compreensão e para fazer-nos entender por aqueles que nos pedem as razões de nossa esperança (lPdr 3,15) ? Há algum entrosamento entre ressurreição e a antropologia, como hoje a concebemos?(26) Paulo encontrou na expressão acima analisada corpo espiritual, típica de seu horizonte de compreensão antropológica, semelhante inserção. Nós hoje aonde nos situaremos?
1. Observação metodológica: a tipicidade do pensar teológico
Antes de abordarmos essa questão, impõe-se uma reflexão sobre a metodologia teológica. Teologia é uma reflexão crítica, sobre a experiência cristã de Deus, do homem e do mundo. Portanto, teologia é retrabalhar questionando e refletindo a fé cristã. O positivismo dogmático, que se preocupa simplesmente em re-
construir e sistematizar as declarações oficiais do passado e também do presente com os conceitos nelas implicados e o biblicismo que procede com o mesmo método sem o cuidado de repensar seus dados frente à e dentro da experiência da fé como é sentida hoje constituem os dois grandes perigos da teologia.(27) O perigo não é menor àquele tipo de teologia que, sem ficar ela mesma como teologia, no diálogo com outras ciências humanas, perde sua identidade e se torna serva de outras ciências. Desta forma a teologia não repensa mais sua própria experiência, mas a de outro horizonte e assim se perde como teologia ou se afirma como ideologia. Com propriedade, ponderava Heidegger: «Somente tempos que não mais crêem na verdadeira grandeza da missão da teologia chegam a ter a perversa idéia de que se possa ganhar e até substituir a teologia através de uma pretensa renovação dela com o auxílio da filosofia (nós diríamos das ciências humanas) e assim articulá-la ao gosto das necessidades do tempo». (28) Hoje o dialogante principal da teologia não é mais a filosofia no sentido clássico, mas as ciências humanas. E como estas conheceram nos últimos anos um vertiginoso progresso, o perigo para a teologia de perder sua identidade se torna proporcionalmente maior. A interdisciplinaridade na abordagem dos problemas também teológicos não significa nem exige a perda da identidade de cada ciência. O teólogo verá com olhos de teólogo e a partir da experiência da fé a relevância teológica dos dados sociológicos, antropológicos, psicológicos, etc. Ele não será (não exclui que também o seja) um antropólogo, mas lerá com seus olhos de teólogo a contribuição que a antropologia traz na decifração do mistério humano, donde partem e para onde devem convergir todas as ciências, se não quiserem transformar-se em ideologias. Para o nosso tema isso significa: como a luz da fé na ressurreição e o horizonte antropológico novo, aberto por essa experiência, podem iluminar os dados antropológicos conhecidos e recebidos de outras ciências? De que forma a ressurreição se articula com o princípio-esperança experimentado no homem? Pode a antropologia ver na ressurreição uma relevância para si mesma, no sentido de que a fé articula e explicita aquilo que implícita e latentemente está implicado e já visualizado atematicamente na própria antropologia? Uma teologia que reflete seus próprios conteúdos (e se dá conta em que horizonte hermenêutico são projetados) e a partir daí procura situar-se frente à vasta experiência humana, hoje em dia analisada por tantas ciências, não pode eximir-se de responder ou de preocupar-se com semelhante questionamento. Trata-se de reler a fé na ressurreição dentro de uma outra experiência do mundo e do homem que o teólogo, filho de seu tempo, também faz.
2. A personalidade como unidade de dimensões plurais
A descoberta marcante que causou a grande virada antropológica do pensar moderno se verificou com a tematização e a reflexão sistemática sobre a subjetividade humana. O homem se entende por excelência como personalidade. Ele não é um ser entre outros seres no mundo. Ele é o único que na ordem do mundo existe. Os objetos não existem embora sejam. Existência quer dizer a capacidade que o ser tem de sair de si e regressar para si (reflexão) e de objetivar e distanciar-se do mundo. Mais: o homem não se define tanto por aquilo que recebeu, mas por aquilo que se tornou e de forma responsável quis. Daí que personalidade não é sinônimo pura e simplesmente de pessoa, que é o ontologicamente dado e recebido. Mas é formalmente o exercício livre do ser-pessoa.(29) Personalização é um processo que se efetua na história sob a base dos dados da pessoa e da natureza: o existir-no-mundo, em-comunhão-com-outros, com a carga hereditária, cultural e psicológica que herdou e independe dele, etc.
Geneticamente o homem procede da evolução animal, mas deixou atrás de si o animal e o ambiente circunstante típico do animal. Está em busca de seu lugar na natureza e ainda não o encontrou. Resume em si todas as camadas do ser e por ele passa o eixo da evolução ascendente. Mas possui um princípio ou dimensão que continuamente contesta o Bios. (30) Como espírito não está amarrado aos condicionamentos biológicos, mas liberta-se pela liberdade e espontaneidade e quando impossibilitado sublima-os. É um ser-carência: não possui, biologicamente, nenhum órgão especializado. Contudo faz desta desvantagem biológica sua arma principal: cria instrumentos para modificar o mundo circunstante e assim elabora culturas e o mundo de segunda mão. (31) Carrega em si um mundo inconsciente pessoal e coletivo, onde se acumulam todas as experiências bem sucedidas e frustradas da raça e do processo evolutivo anterior. Leva dentro de si também as experiências que fez no encontro com o Numinoso e o Divino, aquele mistério tremendum et fascinosum experimentado com a fascinação do fenômeno Deus. (32) Sua vida consciente revela no compreender, no querer, no sentir e na experiência fundamental do amor e da esperança uma transcendência a todos os atos concretos, experiência essa que se verifica em cada ato. Seu horizonte natural é o
ser total e o correspondente à sua radical abertura não é o mundo mas Deus. (33) Historicamente através do mito, do logos e do saber científico mostrou a capacidade de sempre elaborar novas sínteses, conservando a mesma identidade humana.(34) Sociologicamente é um ser criador de culturas e sistemas de convivência. Mas não se identifica jamais com eles totalmente nem se esgota em semelhantes concretizações. Há nele uma possibilidade permanente de dinamismo contestatório do realizado e alcançado em vista de um futuro melhor. (35)
Em tudo o homem revela um caráter excêntrico e assintótico. É contudo na reIação com o mistério absoluto que descobre seu próprio mistério e as verdadeiras dimensões de sua dignidade. Deus se insere não como um alheio dentro do sua experiência. Mas é sua máxima profundidade. Todas as ciências verificam o fenômeno: o homem é um ser aberto à totalidade da realidade. Ele é abertura. Para quem e para que está aberto? Para o mundo? Mas ele se mostra maior que o mundo; modifica-o constantemente em paisagem humana e fraterna; ele não é a resposta adequada ao seu perguntar. Para a cultura? Mas ele cria sempre novas e as utopias constituem o fermento permanente da contestação criadora. A abertura do homem se orienta para um vis-à-vis, para uma meta que lhe seja correspondente. A linguagem cunhou a palavra Deus para significar a meta total e absoluta da busca insaciável do homem. Deus, nesse sentido, possui um significado antropológico imponderável. (36) Estar aberto para o mundo significa portanto estar aberto para Deus. A situação assintótica e excêntrica do homem como um-ser-a-caminho-de-Deus é decifrada, pelas religiões, como um-ser-que-procede-de-Deus e por isso dentro da história um homo viator em busca do Absoluto, porque vem dele.
Formalizando o que acabamos de expor, podemos dizer: o homem é um ser em tensão constante entre uma abertura realizada e uma abertura absoluta. Ele está dimensionalizado para a totalidade e contudo sempre preso nas estreitezas da situação concreta. O homem se experimenta feito e simultaneamente sempre ainda por fazer; ele é finito e infinito. Essa experiência profunda foi expressa pela filosofia platônica por corpo e alma. Corpo é o homem feito e dado; alma é seu princípio dinâmico com um tropismo insaciável para o infinito. A tragicidade desta concepção consistiu na entificação e objetivação de corpo e alma como duas coisas no homem. A experiência porém nos convence que o homem é a unidade de todas as suas dimensões: é o mesmo homem que guarda a sua identidade e unidade de eu em cada uma das dimensões referidas acima. Podemos reter a terminologia corpo-alma, porque entrou para nossa linguagem e para o inconsciente de toda nossa cultura. Contudo, urge perguntar: o que está atrás dessa expressão?
3. O homem unidade corpo-alma
Atrás da expressão corpo e alma está a experiência radical da unidade fundamental do homem. Isso porém não quer criar uma identificação pura e simples das várias dimensões humanas. Mas afirma-se que, por exemplo, o corpo não é um objeto ou algo no homem. É o homem todo inteiro, porque a corporalidade faz parte da própria subjetividade humana: «na realidade eu jamais encontro em mim um espírito puro e concreto. Mas sempre, em todo o lugar e em cada momento um espírito encarnado... Pertence à essência do espírito humano como espírito sua corporalidade e com isso sua relação para com o mundo».(37) O estar-no-mundo do homem não é um acidente, mas exprime sua realidade essencial. Daí que podemos dizer com Gabriel Marcel: corpo e alma não exprimem o que o homem tem mas aquilo que ele é.(38) Em sua totalidade o homem é corporal. Em sua totalidade é também espiritual. Os mais sublimes atos espirituais e místicos vêm por isso marcados pela corporalidade. Da mesma forma as mais primitivas ações corporais são penetradas pelo espírito. Porque no homem só existem um espírito corporalizado e um corpo espiritualizado, podemos dizer com razão: quanto mais o espírito é espírito mais se manifesta e penetra a matéria. Quanto mais o corpo é corpo tanto mais se exprime espiritualmente. A unidade corpo-alma no homem é uma das evidências de todas as ciências antropológicas hoje, até da biologia(39), mas especialmente da psicologia das profundezas. Quando o homem diz eu, exprime a unidade total de sua realidade corpo-alma e de todas as dimensões de sua existência. Corpo e alma não são portanto duas coisas no homem, mas, como a tradição tomista o viu com muita nitidez, dois princípios, apenas metafisicamente separáveis e distinguíveis do único ser humano. Alma é a subjetividade do ser humano concreto, o que inclui também a dimensão corpo. Corpo é o próprio espírito se realizando dentro da matéria. Não é apenas um instrumento do espírito. É o espírito mesmo em sua excarnação e expressão no espaço e no tempo materiais. Nesse sentido podemos dizer que a alma é visível. Quando olhamos um rosto humano, não vemos apenas olhos, boca, nariz e o jogo dos músculos. Surpreendemos simultaneamente traços finos ou rudes, brutalidade ou humor, felicidade ou angústia, sabedoria ou estulticie, resignação ou confiança. O que se vê, pois, não é pura e simplesmente corpo, mas corpo vivificado e penetrado pela alma. Espírito humano é sempre espírito encarnado; não se esconde por detrás do corpo: no gesto, no olhar, numa palavra e mesmo no silêncio pode estar toda a profundidade e o mistério da alma. Com isso, repetimos, não se afirma um nivelamento das plúrimas dimensões da realidade humana, mas sua unidade plural que não significa uniformidade nem unicidade. Essas dimensões do homem se estendem não só às relações com sua própria subjetividade ou às relações eu-tu; elas envolvem o mundo e as coisas (40), de sorte que só na totalidade dos relacionamentos o homem experimenta sua verdadeira espiritualidade e corporalidade.
4. Aproximação bíblica: o homem, unidade de situações existenciais
Embora não se devam passar por alto as diferenças de concepções antropológicas de nosso tempo com as da Bíblia, podemos contudo notar, em sua intuição fundamental, notável semelhança e parentesco. Nossa visão antropológica, parece-nos, está mais próxima à da Bíblia que a da tradição grega, da qual a teologia ocidental se fez herdeira.
A Bíblia vê o homem numa grande unidade.(41) Ele é todo inteiro em cada uma de suas concretizações fundamentais. As Escrituras não possuem um termo para alma sem corpo, nem para corpo sem alma. Cada conceito que elas se fazem do homem compreende o homem todo inteiro. Existem as seguintes situações existenciais que são de modo particular refletidas no Antigo e Novo Testamento:
a) O homem-carne (em hebraico basar, em grego sarx): é o homem em sua existência terrestre empírica, gerada em contacto com duas carnes que se fazem uma (Gên 2,24). Homem-carne é o homem biológico dos órgãos e dos sentidos que está em contacto com a terra. É um ser-carência, sujeito aos sofrimentos e à morte, às tentações e ao pecado (cf. Rom 7). Fala-se em homem-carne quando o homem quiser se realizar só nessa dimensão terrestre, sem sair de si para os outros e para o Grande Outro. É o homem fechado sobre si mesmo em seu orgulho e autocontemplação. Uma existência carnal é para a Bíblia uma existência inautêntica. «Tudo isso é carne» (cf. Gál 5,18-21; lCor 1,26; 2Cor 10,5; Rom 8,6ss; 10,3).(42)
b) O homem-corpo (em hebraico basar, em grego soma): designa o homem todo inteiro enquanto é pessoa-em-comunhão-com-outros (cf. Rom 12,1; lCor 7,4; 9,27; 13,1; Flp 1,20). Em muitas passagens «corpo» pode ser traduzido simplesmente por «eu» (p. ex. a fórmula de consagração na missa: «Isto é o meu corpo (eu) que será entregue por vós»: lCor 13,3; 9,27; Flp 1,30; Rom 12,1). Pertence à pessoa o ser para outra pessoa; por isso homem-corpo designa o homem em seu relacionamento social e político. Porque significa a pessoa humana em sua totalidade não se pode pensar em sobrevivência do homem sem incluir o corpo. Não há igualmente ressurreição sem corpo. (43)
c) O homem alma (em hebraico nefesh, em grego psiqué): aqui não se pensa em alma enquanto se distingue do corpo. Mas no homem todo inteiro como ser vivente. Alma para a Escritura é sinônimo de vida. Por isso o texto de Mc 8,36 deve ser entendido assim: «Que aproveita ao homem ganhar o mundo se vier a perder sua vida (alma) ? Pois que dará o homem em troca de sua vida (alma) ?» O homem não tem vida. É vida. Por isso após a diluição da vida (alma) biológica, permanece ainda o homem-vida, embora sob outra forma. Homem-alma pode significar ainda a pessoa em sua vida consciente como eu. Por isso pode substituir o pronome pessoal (Gên 2,7; 12,5; 46,22; Êx 13,8-9). Daí que homem-alma e homem-corpo são equivalentes. Corpo e alma não se opõem mas exprimem o homem inteiro.(44)
d) O homem-espírito (em hebraico ruah, em grego pneuma): designa o homem-corpo-alma enquanto sua existência se abre para Deus, para valores absolutos e se entende a partir deles. Como espírito o homem extrapola os limites de sua existência como carne-corpo-alma para se comunicar com a esfera divina. Por isso é um sinal da transcendência e da destinação divina do homem. Para o Novo Testamento viver no espírito é viver uma existência humana nova no horizonte das possibilidades reveladas pela Ressurreição de Jesus, o Senhor. Pela Ressurreição o Senhor é o Espírito (2Cor 3,17; cf. At 2,32s), isto é, Jesus Ressuscitado vive uma existência humana (por isso também corporal) totalmente determinada e repleta de Deus e em total comunhão com a realidade. Daí que Paulo chama o ressuscitado de homem-corpo espiritual (lCor 15,44). Pela Ressurreição o homem-carne (indigente e inautêntico) é transfigurado em homem-corpo espiritual. Por ela o homem-corpo é totalmente atualizado em suas possibilidades de comunicação não só para com os outros mas com toda a realidade.
e) Conclusão: O homem, pois, na antropologia biblica forma uma unidade: todo ele inteiro é carne, corpo, alma e espírito. Pode viver duas opções fundamentais: como homem-carne e como homem-espírito. Como homem-carne contenta-se consigo mesmo e fecha-se em seu próprio horizonte. Como homem-espírito abre-se para Deus, de quem recebe a existência e a imortalidade. Ele é desafiado a viver uma destas possibilidades existenciais. O Antigo Testamento é a história do ir-e-vir do homem oscilando entre uma e outra opção. Só aquele que sair de si como Abraão que abandona tudo, como Moisés que com seu povo deixa as panelas do Egito e se abrir para o desconhecido de uma aventura, encontra a terra prometida. «Se o grão de trigo não cai na terra ficará só; mas, se morrer, dará muito fruto» (Jo 12,24). «Quem quiser salvar sua vida perdê-la-á; e quem perder sua vida por mim achá-la-á» (Mt 16,25). Por aqui se vê que para a Bíblia tudo no homem é de alguma forma corporal. Pertence ao ser-hornem a corporalidade. Pode significar fraqueza mas também transcendência; pode designar fechamento sobre si mesma (carne), mas também abertura e comunhão (corpo) e radical referência para com Deus (espírito). O corporal é um sacramento do encontro com Deus. Em Jesus Cristo se mostrou que o corpo constitui o fim dos caminhos de Deus e do homem. (46) Em Cristo «habita a plenitude da divindade em forma corporal» (Col 2,9).
5. A consciência histórica da Igreja: o homem é uma unidade imortal
Essa concepção unitária existencial do homem foi interpretada pelo Cristianismo encarnado dentro da cultura e língua gregas, de diversas formas. (47) A primeira delas foi pela fórmula natureza-graça. Natureza é o homem como criação, diverso de Deus, em suas potencialidades e com sua sede de infinito. Graça é a situação do homem inteiro inserido no amor de Deus e polarizado na resposta que encontra na comunhão com Deus, em total liberdade e gratuidade. A graça pressupõe a natureza, não no sentido de ser um andar sobreposto ao outro mas de exprimir a mesma realidade a partir de uma ótica diferente: a natureza exprime o homem inteiro enquanto se distingue de Deus e está frente a frente a Ele ou até separado dele por uma segunda natureza (como dizia Pascal) rebelde que ele foi criando ao longo de sua própria história cultural. Graça significa essa mesma natureza histórica, redimida de sua situação encurvada e rebelde, penetrada pelo amor de Deus, não mais num frente a frente com Deus mas num diálogo de amor gratuito, de mútua interpenetração divinizante, de sorte que podemos dizer: a divinização do homem humaniza a Deus e a humanização de Deus diviniza o homem. Essas duas situações existenciais -- natureza-graça -- da mesma e única realidade humana corresponderiam ao que hebraicamente a Bíblia diria do homem como carne e como espírito. Nunca existiu uma natureza humana histórica sem a ordenação à graça. Não existe graça senão graça de uma natureza. O homem concreto constitui essa unidade natureza-graça. Por outra fórmula exprimiu a consciência do Cristianismo histórico, a unidade existencial do homem retratada na Bíblia: corpo-alma. A tradição agostiniana, assumindo as categorias de pensar da filosofia órfica, pitagórico-platônica, interpretou o homem constituído de duas realidades diferentes, corpo e alma. O homem tem um corpo mortal e uma alma imortal, como que castigada a viver no corpo. Santo Tomás de Aquino, assumindo e transformando as categorias da filosofia aristotélica (matéria e forma), formula uma concepção que afirma a radical unidade plural do homem, em consonância com o modelo bíblico. O homem não é constituído pela adição de duas essências díspares corpo-alma. O homem é totalmente corpo e totalmente alma. Corpo e alma ou espírito e matéria não são dois elementos no homem, mas dois princípios que constituem o homem inteiro. O corpo é a realidade do espírito presente e se exprimindo.(48) O espírito é subjetividade do corpo dando-se conta de si mesmo. O magistério da Igreja defendeu sempre a unidade essencial e a totalidade do homem. No Concilio de Vienne (1313) utilizando conceitos tomistas estabeleceu-se que a alma racional é a forma do corpo. Com isso se queria dizer que o espírito da matéria emerge na forma de corpo e que o corpo é a realização e expressão do espírito.(49) No quinto Concílio do Latrão (1513) contra o filósofo neoaristotélico Pomponazzi (1464-1525) que afirmava ser o espírito não algo de pessoal mas de universal, em comum, reafirmou-se que o espírito é a forma singular e individual de cada corpo, fundando uma unidade pessoal. A essa alma que pertence ao corpo o Concílio atribui o caráter de imortalidade. Como J. B. Metz comenta: «A imortalidade é atribuída à alma, porque o homem individual em sua concreção histórica é imortal».(50) A morte biológica não pode portanto significar a diluição total da realidade humana. Já o Novo Testamento entende a morte como uma outra forma de estar-com-Cristo (Flp 1,23).
6. O homem-corpo, nó de relações com todo o universo
Concebido sempre como corpo vivo e por isso como momento essencial da alma, o homem-corpo apresenta-se como um centro ou nó de relações que de círcu lo em círculo abarca todo o universo. (51) Esse centro é personalizado, isto é, com característicos físico-psíquicos irrepetíveis e próprios a cada subjetividade. Embora particularizado pessoalmente pode universalizar-se: os sentidos, os meios de comunicação permitem-lhe estabelecer uma comunhão com todas as coisas: «o nosso corpo se estende até às estrelas». (52) A personalidade (não a pessoa) é criada na história pessoal e se desenvolve nessa comunhão com os outros homens, com o mundo hominizado e com todo o universo. É o campo onde exerce sua liberdade e vai moldando sua história pessoal responsável. Em sua situação terrestre o homem-corpo-nó-de-relações está sujeito às coordenadas do espaço e do tempo. Essas coordenadas possibilitam a comunicação e a comunhão; mas também a limitam: o espaço e o tempo nos separam e a presença é sucessiva e não simultânea a todas as coisas. Os símbolos e códigos de comunicação ao mesmo tempo que comunicam impedem a comunicação porque apresentam-se inevitavelmente ambíguos. Não obstante essa indigência, a personalidade é essencialmente comunhão para fora e o simples fato de o homem ser corpo vivo o coloca necessariamente numa situação de abertura, contacto e relação com o mundo circunstante humano e cósmico.
7. A morte como evento biológico e como evento pessoal
À luz desta concepção unitária do homem corpo-alma, que significa a morte? A definição clássica da morte como separação da alma do corpo caracteriza-se por uma grave indigência antropológica, porque apresenta a morte como algo que afeta somente a «corporalidade humana», deixando a «alma» totalmente intacta. (53) Essa descrição considera a morte como um fato biológico: quando as energias biológicas do homem atingirem o ponto zero, então entra a morte. Ademais essa concepção sugere que a morte é algo que sobrevém extrinsecamente à vida: ambas, morte e vida, se opõem; não existe entre eIas nenhuma interiorização recíproca. Por isso que, na definição clássica, morte é um evento que acontece no fim da vida biológica somente. Contudo, na visão antropológica acima exposta, a morte surge como um evento não tanto biológico mas como um fenômeno especificamente humano. A morte atinge a totalidade do homem e não seu corpo somente. Se o corpo é atingido e ele faz parte essencial e constitutiva da alma, então também a alma é envolvida no círculo da morte. Ademais a morte humana não é algo que entra como um ladrão no fim da vida: ela está presente na vida do homem, em cada momento e sempre a partir do instante em que o homem emergiu no mundo.(54) As forças vão se desgastando e o homem vai morrendo em prestações até acabar de morrer. A vida humana é essencialmente mortal, ou como dizia Santo Agostinho: no homem há uma morte vital.(55) A morte não existe. O que existe é o homem moribundo, como um-ser-para-a-morte. Ela não vem de fora, mas cresce e se madura dentro da vida do homem mortal. Desta forma a experiência da vida coincide com a experiência da morte. Preparar-se para a morte significa preparar-se para uma vida verdadeiramente autêntica e plena. Daí que a escatologia não é isolada da vida e projetada para um futuro distante. Mas é um evento de cada instante da vida mortal: a morte acontece continuamente e cada instante pode ser o último.
8. A morte como cisão
O último instante da morte vital ou da vida mortal tem o caráter de uma cisão, não do corpo e da alma (porque estes não são duas coisas que podem ser separadas, mas apenas dois princípios metafísicos), mas entre um tipo de corporalidade limitado, biológico, restrito a um pedaço do mundo, isto é, ao «corpo» e outro tipo de corporalidade e relação com a matéria ilimitado, aberto e pan-cósmico. Com a morte o homem-alma não perde sua corporalidade, porque esta lhe é essencial, mas adquire outro tipo de corporalidade mais aperfeiçoado e universal. O homem-corpo como nó de relações para com a totalidade do universo pode agora, finalmente, pela primeira vez na morte, realizar a totalidade que já na situação terrestre podia vislumbrar e sentir parcialmente. O homem-alma na morte é introduzido na unidade radical do mundo; não deixa a matéria, nem pode deixá-la. porque o espírito humano se relaciona essencialmente com ela. Antes pelo contrário penetra-a muito mais profundamente numa relação cósmica total, desce ao coração da terra (cf. Mt 12,40). A morte é semelhante ao nascimento. Ao nascer a criança abandona a matriz nutritora que aos poucos se foi tornando sufocante. Passa pela crise mais penosa de sua vida fetal, ao termo da qual irrompe para um mundo novo e numa nova relação com ele: é empurrada de todos os lados, apertada, quase sufocada e ejetada para fora, sem saber que após essa passagem a espera o ar livre, o espaço, a luz e o amor.(56) Ao morrer, o homem atravessa semelhante crise biológica como ao nascer: enfraquece-se, vai perdendo o ar, agoniza e é como que arrancado do corpo. Não experimenta ainda o que vai irromper em horizontes mais vastos que o fazem comungar de forma essencial, profunda e perfeita com a totalidade deste mundo. (57) A placenta do recém-nascido na morte não é mais constituída pelos estreitos limites do homem-corpo, mas pela globalidade do universo total. A cisão assume ainda um outro aspecto: marca o termo da vida terrestre do homem, não apenas no seu sentido cronológico, mas principalmente humano. A morte estabelece um termo ao processo de personalização dentro das coordenadas deste mundo biológico e espácio-temporal. A teologia dirá: o último instante de vida e a morte instauram o fim do status vitae peregrinantis e o encontro pessoal com Deus.
Se a morte significa um aperfeiçoamento do homem por causa de sua relação mais íntima com o universo, então ela possibilita também a plenitude do conhecer, do sentir, do amar, enfim, da consciência. Como M. Blondel bem o viu, nossa vontade em seu dinamismo interior não se esgota e satisfaz plenamente em nenhum ato concreto: ela não quer só isto e aquilo (volonté voulue) mas a totalidade (volonté voulante).(58) A morte significa o nascimento do verdadeiro e pleno querer. O homem conquista enfim sua liberdade, desinibida dos condicionamentos exteriores, da própria carga arquetípica inconsciente, do superego social, das próprias neuroses ou mecanismos coatores. A personalidade, com aquilo que ela em sua história terrestre construiu, pode exercer sua liberdade no vastíssimo campo operacional do universo. Joseph Maréchal e Henri Bergson(59) relevaram a mesma estrutura do querer também no conhecer, sentir e recordar. Reina um dinamismo insaciável no homem que o leva a jamais esgotar sua capacidade de conhecer, sentir e recordar. Nenhum ato concreto apresenta-se adequado ao impulso interior. A morte abre a possibilidade para a total reflexão e a imersão no infinito horizonte do ser. A sensibilidade humana, em vida terrestre limitada pela seleção natural dos objetos sensíveis, liberta-se enfim destas peias e pode desabrochar numa capacidade inimaginável de percepções. A morte é o momento da intuição profunda do cerne do universo e da total presença no mundo e na vida. Gabriel Marcel(60) chamou a atenção para o dinamismo imanente do amor humano. Ele define-se como doação e entrega, de tal sorte que no amor só se possui o que se dá. Na condição terrestre o amor jamais pode ser total doação, devido à autoconservação congênita do ser viajor. Morte implica total entrega de nosso modo terrestre de existência. Esse fato possibilita à personalidade entregar-se totalmente na mais pura liberdade. Na morte o homem entra na radical comunhão com toda a realidade da matéria. Os filósofos E. Bloch e G. Mareel(61) tematizaram principalmente a dimensão esperança no homem, que não deve ser confundida com a virtude; é um verdadeiro, princípio no homem que dá conta do extraordinário dinamismo de sua ação histórica, de sua capacidade utópica e de sua orientação para o futuro. Não o que é emerge como verdadeiro, mas aquilo que virá. O homem jamais é uma síntese completa; seu futuro que vive como dimensão não pode ser manipulado e totalmente revertido num ato concreto. E contudo pertence à própria essência humana. A morte criaria a possibilidade para o ser e o será se tornarem um é pleno: um futuro realizado. A morte como cisão se revela especialmente no momento em que a curva da vida biológica se cruza com a curva da vida pessoal. A primeira curva é constituída pelo homem exterior, que nasce, cresce, amadurece, envelhece e biologicamente vai morrendo em cada momento até acabar de morrer. A outra curva é vivida pelo homem interior: à medida que vai envelhecendo biologicamente, cresce nele um núcleo interior e pessoal, a personalidade. A doença, as frustrações e as outras energias do homem exterior podem até servir de trampolim para um maior crescimento e amadurecimento da personalidade. Inversamente da curva biológica que vai decrescendo, a curva da personalidade vai crescendo e se abrindo cada vez mais para a liberdade, o amor e a integração até acabar de nascer. A morte entra quando ambas as curvas se cruzam e cortam. O pleno desenvolvimento do homem interior (personalidade) exige até a morte do homem exterior (vida biológica) para que possa se desenvolver adiante. É por isso que a morte para os santos e os homens de grande individualização da personalidade é vista como irmã, como a passagem necessária para um outro nível de vida pessoal e livre em maior plenitude. Como os cristãos antigos a morte surge então como o vere dies natalis: como o verdadeiro nascimento onde o homem realiza plenamente seu ser autêntico para sempre. No decurso da vida, os atos de nossa liberdade pessoal possuem um caráter preparatório e nos educam para a verdadeira liberdade. «Morrendo, -- dizia Franklin -- acabamos de nascer».(02)
9. A morte como decisão
Se o momento da morte constitui por excelência o instante no qual o homem chega a uma inteira maturação espiritual e a inteligência, a vontade, o sentir e a liberdade podem ser exercidos sem qualquer empecilho e em conformidade com seu dinamismo nativo, então deu-se, pela primeira vez, a possibilidade de uma decisão totalmente livre que exprima a totalidade do homem frente a Deus, a Cristo, aos outros homens e ao universo. O momento da morte rompe com todos os determinismos; o verdadeiro ser do homem escolhe as relações com a totalidade que o constituirão como personalidade aberta para todos os seres. Imerso no espaço e tempo terrestre o homem era incapaz de exprimir-se totalmente num ato definitivo. Todas as suas decisões eram verdadeiras, mas precárias e mutáveis.(63) Devido à sua ambigüidade constitucional, nenhuma delas podia surgir com caráter definitivo que implicasse por si só céu ou inferno. Na morte (nem antes nem depois), isto é, no momento da passagem do homem terrestre para o homem pancósmico, livre de todos os condicionamentos exteriores, na posse plena de si como história pessoal e com todas as suas capacidades e relações, dá-se uma decisão radical que implica no eterno destino do homem. Nesse momento de total consciência e lucidez o homem conhece o que significa Deus, Cristo e sua autocomunicação, qual é a destinação do homem, suas relações de abertura para com a totalidade dos seres. Agora, então, em conformidade com sua personalidade que ele se criou ao longo da vida, totalizando todas as decisões tomadas, pode decidir-se para a abertura total que implica salvação ou para um fechamento sobre si mesmo que exclui comunhão com Deus, Cristo e a totalidade da criação. Morte significa um penetrar no coração da matéria e da unidade do cosmos. Aqui se realiza um encontro pessoal com Deus e com o Cristo ressuscitado que tudo enche com sua presença, o Cristo cósmico. Agora, numa chance otimal, pode o homem decidir-se igualmente numa forma otimal, totalmente livre de coações exteriores e definitiva. Nesse encontro com Deus e com a totalidade acontece o juizo e também o purgatório como processo de purificação radical.(64) Diante de Deus e de Cristo, o homem descobre sua ambigüidade, passa por uma crise derradeira, cujo desfecho é um ato ou de total entrega e amor ou de fechamento e opção para uma história sem outros e sem ninguém. Essa decisão produz uma cisão definitiva entre o tempo e a eternidade e o homem passa da vida terrestre para a vida em comunhão íntima e facial de Deus ou de total frustração de sua personalidade, chamada também de inferno.
10- A morte como fenômeno natural e como conseqüência do pecado
As reflexões feitas até aqui evidenciaram que a morte pertence ao próprio conceito de vida terrestre. Esta é sempre vida mortal ou morte vital. Muito antes que tivesse emergido, na evolução, o homem mortal, já mirravam as plantas e morriam os animais. Esta constatação tem sua importância porque a Bíblia e a teologia apresentam a morte como conseqüência do pecado do homem. Paulo o diz claramente: «Através, do pecado a morte invadiu o mundo» (Rom. 5,12; cf. Gên, 3). O segundo Concílio de Orange (529) bem como o Concílio de Trento (1546) o relevam com igual clareza: a morte é o preço do pecado (DS 372 e 1511). Como se há de entender isso? Parece que a sentença bíblica e conciliar se opõe ao que temos exposto até o momento. Uma reflexão mais atenta ao sentido desta afirmação nos fará compreender a validade das duas posições, uma que afirma a morte como fenômeno natural e outra que sustenta a morte como conseqüência do pecado. A teologia clássica, à deriva de Santo Agostinho, sempre ensinou que a morte é um fenômeno natural enquanto a vida biológica vai se desgastando até o homem terminar seus dias. Não podemos dizer: o homem não pode morrer (non posse mori). Constitucionalmente ele é um ser mortal. Contudo, em virtude de sua orientação originária para Deus e na sua situação matinal, o homem primitivo (Adão) estava destinado à imortalidade. Ele podia não morrer (posse non mori). «Quando, a fé nos ensina isso», como muito bem diz Karl Rahner no seu célebre ensaio sobre o Sentido teológico da morte, «não nos diz que o homem paradisíaco, pelo fato de não haver pecado, teria prolongado indefinidamente a vida terrena. Podemos dizer, sem qualquer reparo, que é evidente que o homem teria terminado sua vida temporal. Teria certamente permanecido em sua forma corporal, porém sua vida teria chegado a um ponto de consumação e plena madureza a partir de dentro... Adão teria tido uma certa morte» (38- 39.48). Isso quer dizer: haveria uma cisão entre a vida terrestre e a vida celeste, entre o tempo e a eternidade. Haveria uma passagem. Haveria, então, morte, no sentido explicado acima. Mas essa morte estaria integrada na vida. Devido à harmonia total do homem, ela não seria sentida como perda, nem vivida como um assalto nem sofrida como um despojamento. Seria passagem natural, como natural é a passagem da criança do seio materno para o mundo, da meninice para a idade adulta. Alcançada a madureza interior e esgotadas as possibilidades para o homem corpo-espírito no mundo terrestre, a morte o introduziria para o mundo celeste. Adão morreria como o Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry: sem dor, sem angústia e sem solidão.
Contudo, devido ao pecado original que afeta todos os homens e também devido ao pecado pessoal, a morte perdeu sua harmonia com a vida. É sentida como um elemento alienador e roubador da existência. É medo, angústia e solidão. A morte concreta e histórica, assim como é vivida (viver a morte e morrer a vida são sinônimos) resulta do pecado. Por um lado, como termo da vida é natural. Por outro, no modo alienador como é sofrida, é desnatural e dramática.
A morte implica uma derradeira solidão. Por isso o homem a teme e foge dela, como foge do vácuo. Ela simboliza e sela nossa situação de pecado que é solidão do homem que rompeu a comunhão com Deus e com os outros. Cristo assumiu esta última solidão humana. A fé nos diz que ele desceu aos infernos, i. é, ultrapassou os umbrais do radical vazio existencial, para que nenhum mortal pudesse, de ora em diante, sentir-se só.
O homem pode integrar a morte na vida. Abraçá-la como total despojamento e derradeiro ato de amor como entrega confiante. O santo e o místico, como a história nos mostra, podem de tal modo integrar paradisiacamente a morte no contexto da vida, que não vêem mais nela a ladra traiçoeira da vida, mas a irmã que nos liberta e nos introduz na casa da Vida e do Amor. Então o homem é livre e libertado como um São Francisco. A morte não lhe fará nenhum mal porque é passagem para uma vida mais plena.
III. A RESSURREIÇÃO DO HOMEM NA MORTE
Até aqui não inserimos ainda em nossas reflexões o pensamento da ressurreição, que para a fé cristã não é revivificação de um cadáver, mas a total realização das capacidades do homem-corpo-alma, a superação de todas as alienações que estigmatizam a existência desde o sofrimento, a morte e também o pecado e, por fim, a plena glorificação como divinização do homem pela realidade divina. A ressurreição é a realização da utopia do reino de Deus para a situação humana. Daí que para o cristianismo não há mais lugar para uma utopia, mas somente para uma topia: já agora, pelo menos em Jesus Cristo, a utopia de um mundo de total plenitude divino-humano encontrou um topos (lugar).
1. Como se articula a antropologia com a Ressurreição?
Como se articula e relaciona nossa fé na ressurreição com o esboço antropológico acima exposto? Há elementos intrínsecos na antropologia que se ordenam a uma possível ressurreição? Parece-nos que podemos afirmar positivamente as duas perguntas e fazê-las proposições: a ressurreição vem responder a um anseio profundo e ontológico do homem por um lado, e por outro, a antropologia revela uma estrutura tal que pode articular-se dentro da fé na ressurreição. Ressaltamos acima o caráter excêntrico da existência humana, seu ser e contínuo poder-ser, o fato de um princípio-esperança no homem, causador do pensar utópico e contestatório dentro da história. O homem não é só um ser, mas principalmente um poder-ser. Existe no homem-ser um homem latente que quer se revelar em sua plenitude total: o homo revelatus. Os cristãos vimos em Jesus o homo revelatus para quem o futuro todo se transformou em presente e se realizou nele a escatologia. Ele é o novo Adão e a nova humanidade. A ressurreição é a resposta ao princípio-esperança do homem. Ela realiza a utopia de total realização do homem da qual sonhava o Apocalipse «onde a morte não existirá mais, nem haverá mais luto, nem pranto, nem fadiga, porque tudo isto já passou», porque todos serão povo de Deus e Deus mesmo estará com eles (21,4). Por outro lado a interpretação da morte, que a antropologia moderna elaborou, se coordena bem com o conceito cristão de ressurreição. A morte significa a plenificação da personalidade do homem e de suas capacidades estendidas à dimensão, do cosmos total. O homem-corpo , como um nó de relações com todo o universo, pode agora realizar-se perfeitamente como comunhão. Ora, pela ressurreição o homem-corpo atinge sua última realidade, porque vem glorificado por Deus. Na ordem concreta não existe destino natural do homem que não seja simultaneamente seu destino sobrenatural. Se a morte é o momento de total redimensionalização das possibilidades contidas dentro da existência humana, então está implicada com isso também sua realização na ordem sobrenatural. Tal fato nos sugere dizer: a ressurreição acontece já na morte.(63) Como a morte significa o fim do mundo para a pessoa, nada repugna que também se realiza aí a ressurreição do homem. Depois da morte o homem entra num modo de ser que abole as coordenadas do tempo e passa para a atmosfera de Deus, que é a eternidade. Já a partir deste ponto de vista se pode dizer que não é compreensível afirmar qualquer tipo de «espera» de uma suposta ressurreição no final dos tempos. Esse final dos tempos cronológico não existe na eternidade. Por isso a «espera» pela ressurreição final é uma representação mental inadequada ao modo de existir da eternidade.
Pela ressurreição o homem-nó-de-relações-com-o-universo é desdobrado totalmente e transfigurado à semelhança de Cristo e como ele possui uma ubiqüidade cósmica. Tudo aquilo que alimentou e tentou desenvolver ao longo de sua existência ganha agora sua melhor florescência. Sua capacidade de comunhão e abertura encontra sua perfeita adequação. Contudo há também uma ressurreição para a morte (segunda), a do homem que se negou à comunicação com os outros e com Deus, ao que se enrolou sobre si mesmo a ponto de constituir seu mundozinho fechado. Sua ressurreição é para a absoluta frustração. Nele se desdobram definitivamente as tendências de negação que nutriu e deixou campear em sua existência. Pela ressurreição o homem se abre ou se fecha radicalmente para aquilo que em vida se abriu ou fechou. Por isso a ressurreição não pode ser definida como algo de meramente mecânico ou automático: ela inclui um aspecto decisional e implica as duas possíveis opções dentro do campo da liberdade humana.
2. A ressurreição da identidade corporal e não material do homem
Pela ressurreição tudo no homem é transfigurado ou frustrado, o corpo e a alma. Convém observar: corpo não é sinônimo de cadáver que fica neste mundo após a morte e que se decompõe. Corpo não é um agregado acidental ao homem-alma mas «uma dimensão indiscernível de mim mesmo», o modo concreto como o espírito se encarna na matéria, acede ao mundo e se auto-realiza. O espírito percebe-se encarnado. Percebe-se contudo não totalmente identificado com a matéria porque pode relacionar-se para além do corpo e com a totalidade dos corpos, nem totalmente distinto dela porque é sempre espírito encarnado. A personalidade é essencialmente também material. Por isso a personalidade que ao longo da existência vai se formando dentro do mundo no contexto de suas múltiplas relações vai também criando sua expressão material. O corpo de ressurreição possuirá a mesma identidade pessoal e não material com aquele que éramos na existência espácio-temporal. Não podemos confundir identidade corporal com identidade material (da matéria do corpo). A biologia nos ensina que a matéria do corpo se transmuda de sete em sete anos. E entretanto temos a mesma identidade corporal. Agora como adultos somos diferentes, materialmente, do que quando éramos crianças. E apesar disso somos o mesmo homem corporal. Pela ressurreição seremos muito mais diversos ainda e não obstante idênticos pessoalmente a ponto de podermos dizer: eu sou eu espírito-corpo. O que ressuscita é nosso eu pessoal, aquilo que criamos em interioridade dentro da vida terrestre, eu esse que sempre inclui também relação para com o mundo e por isso corpo. Diríamos mais: na ressurreição cada qual ganhará o corpo que merece, que corresponde ao seu eu e que o exprime total e adequadamente. Na terra, nosso estar-no-mundo nem sempre é bem expresso pelo corpo. Ele pode expressar deficientemente nossa interioridade e constituir um empecilho à sua realização na matéria. Ele vem marcado até as suas últimas fibras pela história do pecado e por isso pode materialmente desaparecer e voltar ao pó. Agora pela ressurreição o homem é desobstaculizado e irrompe (se for para a vida eterna) a perfeita e cabal adequação espírito-corpo-mundo, sem as limitações espácio-temporais e as alienações da história do pecado. Cada qual a seu modo se exprimirá na totalidade da matéria e do mundo porque o homem assumiu uma relacionalidade pan-cósmica. O homem, nó de relações de toda ordem, vem transfigurado e totalmente realizado por Deus e em Deus.
Nessa linha de reflexão podemos dizer: a Assunção de Maria, antes de ser algo de exclusivo dela, é um exemplo daquilo que acontece com todos os que já estão com o Senhor (cf. 2Cor 5,610). A Constituição Apostólica Munificentissimus Deus, de 1950, exprime a esperança de «que a fé na Assunção corporal de Maria ao céu possa tornar mais forte e mais ativa a fé na nossa própria ressurreição». (66) Embora o documento não tenha a intenção de colocar Maria assunta como exemplar de nossa própria ressurreição na morte, «podemos achar nessa verdade talvez um convite a tentarmos elaborar o sentido da escatologia em geral a partir da verdade concreta e definida da Assunção,». (67) A Constituição Lumen Gentium, propõe de fato «a Mãe de Deus, já glorificada no céu em corpo e alma, como imagem e primícia da Igreja, que há de atingir a sua perfeição no mundo futuro» (n. 68). Comentando a relação entre Maria e a Igreja, opina um teólogo: «Maria não é a personificação dum estado futuro da Igreja gloriosa, mas sim a expressão pessoal do estado presente da Igreja celestial... Maria elevada ao céu exemplifica a vida redimida nos moldes em que ela é já participada pelos santos na glória. Nós que estamos ainda 'prisioneiros do corpo', vemos já à nossa frente o que será a vida nova. Este estado final foi atingido em Cristo não só Por Maria, mas também por aqueles que estão já com o Senhor». (68) Maria não é, pois, uma exceção, mas um exemplar. No entretanto aqui conviria repetirmos a reflexão que fizemos acima quando nos referíamos à diferença entre o corpo glorificado do Senhor e o nosso. O mesmo valeria para o corpo transfigurado da Virgem. Seu corpo, à diferença do nosso, não vinha marcado pela história do pecado. Como Imaculada, seu corpo era o sacramento de Deus e da interioridade graciosa de seu espírito. Ele foi o receptáculo da encarnação do Verbo. Embora vivesse no velho mundo, era presença do novo céu e da nova terra. Por isso, parece-nos, por esses motivos teológicos, podermos afirmar que o corpo carnal da Virgem foi transfigurado e não teria passado pelas vicissitudes do cadáver humano que carrega em si a história do pecado pessoal e do mundo e por isso volta ao pó da terra. Nela como em Cristo apareceu o homo matinalis, para quem a morte era passagem transfiguradora para o definitivo e o divinamente realizador. À diferença da declaração dogmática da Imaculada Conceição, a Constituição Apostólica Munificentissimus Deus em nenhum lugar afirma a exclusividade da assunção de Maria. Isso nos permite ver esse dogma com uma brecha de penetração para estendermos a mesma graça aos que morrem no Senhor. E realmente, M. Schmaus, teólogo dos mais eclesiais e moderados, diz em seu recente manual de dogmática A fé da Igreja: «Não há nenhuma verdade da revelação que se oponha à tese de que o homem, logo na morte, ganhe uma nova existência corporal enquanto seu corpo terrestre é levado à sepultura, cremado ou entregue à decomposição. Semelhante transformação imediata não pode ser provada com absoluta certeza. Mas existem argumentos que tornam essa tese provável». (69) (NE)
Esses argumentos foram aduzidos acima. Fundam uma real probabilidade que é muito mais que uma mera possibilidade. É essa probabilidade fundamentada por argumentos da antropologia e da Escritura que amparam a utilização pastoral de semelhante tese, que para muitos cristãos é motivo de alegria serena, de libertação e de renovado engajamento pela causa cristã entre os homens. O mesmo Schmaus argumentava: «Se respondermos que a ressurreição só acontece no fim dos tempos, então essa verdade de fé se torna cada vez mais vazia e perde sempre mais sua força vital. Se devemos esperar milhões ou bilhões de anos, então essa fé vai se diluindo cada vez mais no horizonte da consciência humana. Ninguém pode se representar conscientemente tal espaço imenso de tempo».(70)
3. O homem ressuscita também na consumação do mundo
Contudo, essa ressurreição na morte não é totalmente plena: só o homem no seu núcleo pessoal participa da glorificação. O homem, porém, possui uma ligação essencial com o cosmos. Este, na morte do homem, não foi ainda totalmente transfigurado. Só podemos falar em radical ressurreição quando sua pátria, o cosmos, também for transformada. Por isso, apesar do caráter de plenitude pessoal que a ressurreição na morte possa assumir e apesar da transformação do nó-de-relações-com-o-universo ter de alguma forma atingido também o próprio cosmos, podemos falar ainda em ressurreição na consumação do mundo. Só então Deus e Cristo serão tudo em todas as coisas (Col 3,11; lCor 15,28), de modo especial no homem essencialmente relacionado com o universo.
VI- Conclusão
PAULO chamava o homem ressuscitado de corpo-espiritual. Com isso entendia o homem todo inteiro alma-corpo, mas totalmente realizado e repleto de Deus. Como chamaríamos nós ao homem ressuscitado? Utilizando-nos de uma categoria da antropologia baseada no princípio-esperança, talvez pudéssemos dizer: homo revelatus. Com a ressurreição se revelou realizado o verdadeiro homem que estava crescendo dentro da situação terrestre, aquele que Deus realmente quis quando o colocou dentro do processo evolutivo. O homem verdadeiro, em sua radical potência, é só o homem escatológico. Pela ressurreição o poder-ser do homem-ser se realizou exaustivamente; ele saiu totalmente de sua latência; nele, pois, se revelou o desígnio de Deus sobre a natureza humana, de fazê-Ia participar de sua divindade com toda a realidade dela, corpo-espírito-aberta-para-a-total idade. O homo revelatus participa da ubiqüidade cósmica de Deus e de Cristo; possui uma presença total: nasce assim o homo cosmicus.
Agora, na presente condição espácio-temporal, existe o homo revelatus em sua latência: está ainda preso às categorias deste mundo e vive na condição de simul iustus et peccator. A morte liberta-o e lhe possibilita uma penetração mais profunda no coração do cosmos. Pela ressurreição na morte ele participa do Cristo ressuscitado e cósmico. Na consumação do mundo-universo, ele mesmo se potencializará ainda mais porque o cosmos lhe pertence essencialmente.
No termo da vida terrestre, o homem deixa atrás de si um cadáver. É como um casulo que possibilitou o emergir radiante da crisálida e da borboleta, agora não mais presa pelos estanques limites do casulo, mas aberta ao horizonte vasto de toda a realidade. À pergunta fundamental de toda a antropologia -- que será do homem? que podemos esperar? -- a fé responde jubilosa: vida eterna do homem-corpo-espírito em comunhão íntima com Deus, com os outros e com todo o cosmos. «Passa certamente a figura deste mundo deformada pelo pecado», nos adverte o Vaticano II, «mas aprendemos que Deus prepara morada nova e nova terra. Nela habita a justiça e sua felicidade irá satisfazer e superar todos os desejos da paz que sobem nos corações dos homens. Então, vencida a morte, os filhos de Deus ressuscitarão em Cristo... e toda aquela criação que Deus fez para o homem será libertada da servidão da vaidade... O Reino já está presente em mistério aqui na terra. Chegando o Senhor, ele se consumará» (GS, n. 39/318.320).
Como soam consoladoras as palavras do prefácio na missa dos mortos (I) que resumem toda a teologia exposta neste estudo: «Em Cristo brilhou para nós a esperança da feliz ressurreição. E aos que a certeza da morte entristece, a promessa da imortalidade consola. Ó Pai, para os que crêem em vós, a vida não é tirada, mas transformada, e desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível».
Notas
1 Sobre o tema me refiro apenas a literatura essencial: Rahner, K., Zur Theologie des Todes, Freiburg I.B. 1958; Boros L., Mysterium mortis. Der Mensch ia der letzten Entscheidung, Olten-Freiburg i.B. 1962; Id., Erlöstes Dasein, Mainz 1966, 89-108; Troisfontaines, R., Je ne meurs pas... Paris 1960; Martelet, R. P., Victoire sur Ia mort, éléments d'anthropologie chrétienne, Paris 1962; Volk, H., Das christliche Verständnis des Todes, Regensburg 1957; Gleason, R. W., The World to come, N. York 1958; Id., Toward a Theology of Death, em: Thougth Fordham Univ. Quart. 32 (1957) 39-68; Lepp, L, La mort et ses Mystères. Paris 1966; Jankélévitch, V., La mort, Paris 1966; Bordoni, M., Dimensioni antropologische della morte, Roma 1969, certamente o livro que melhor informa sobre a atual problemática filosófico-teológica juntamente com o de La Peña, J. R., El hombre y su muerte. Antropologia teológica actual. Ed. Aldecoa, Burgos 1971; Bolado, A., Filosofia y Teologia de Ia muerte, em: Selectiones de Libros 3 (1966) 12ss; A vida depois da morte, documentação em: Concilium 26 (1967) ; José-Maria González-Ruiz, A caminho de uma desmitologização da «alma separada», em: Conciliam, janeiro 1969, 73-85; no mesmo a., 86-99 o estudo de Piet Schoonenberg, Creio na vida eterna; Schillebeeckx, E., Leven ondanks de dood ia heden en toekomst (Vida apesar da morte no presente e no futuro, em: Tijdschrift voor Theologie 10 (1970) 418-452.
2 Cf. Lochet, L., Comme annoncer le mystère de Ia mort aux hommes de notre temps, em: Christus 9 (1962) 183ss; Boros, L., Meditationen über Tod, Gericht,
3 Cf. Jeremias, J., Ades, em: ThWNT I,146-150; Tremel, Y., L'homme entre Ia mort et Ia résurrection d'après le Nouveau Testament, em: Lumière et Vie 24 (1955) 33-37; Ménoud, P. H., La signification de Ia mort, em: L'homme devant Ia mort, Neuchâtel 1952, 163ss; ld., Le sort des trépassés, Neuchâtel 1966; Grelot, P., La théologie de Ia mort dans I'Écriture Sainte, em : La Vie Spirituelle, Supp. 77 (1966) 143ss; Culmann, O., Immortalité de Fame ou résurrection des morts? em: Des sources de I'Evangile à Ia formation de la théologie chrétienne, Neuchâtel 1969, 149-171; de Ia Cuesta, I. F., El estado de muerte: inmortalidad o resurrección? em: Liturgia (Burgos) 429-444; Bordoni, M., La morte nella prospettiva biblica, em: Dimensioni antropologische della morte, op. cit., 123-169 com rica bibliografia.
4 Cf. Pala, G., La risurrezione dei corpi nella teologia moderna, Roma 1963, 47-66 esp. 56.
5 Cf. o estado da questão da pesquisa histórica e atual em: Francis Fiorenza e J. B. Metz, Der Mensch aIs Einheit von Leib und Seele, em: Mysterium Salutis II, 1967, 584-632, esp. 602ss.
6 ld, 617: «A imortalidade é atribuída à alma, porque o homem individual em sua concreção histórica é imortal».
6a Schmaus, M., Der Glaube der Kirche II, Munique 1970, 744.
7 Cf. Platonis Opera, ediç. de I. Burnet, Oxford 1961, 67 d.
8 Id., 67 e.
9 Id., 64 b.
10 ld., 67 a.
11 Id., 117 e.
12 Id., 118; cf. também de Ia Cuesta, El estado de muerte, op. cit., 431.
13 Cf. com a bibliografia aí citada: Boff, L., O sentido da morte de Cristo, em: Jesus Cristo Libertador, op. cit., 113-133.
14 Fédon, op. cit., 114 d.
15 Para a problemática atual e a exegese crítica sobre os textos de ressurreição veja o capítulo precedente e todo o número da Revista Concilium 60 (1970).
16 Elo Cf. Seidensticker, Ph., Die Auferstehung Jesu in der Botschaft der Evangelisten, Stuttgart 1968, 31-58.
17 Cf. Carrez, M., L'hermenéutique paulinienne de Ia résurrection, em: La résurrection du Christ et l'exégèse rnoderne, Paris 1969, 55-74; Grass, H., Ostergeschehen und Osterberichte, Goettingen 1962, 146-173; GrabnerHaider, A., Auferstehungsleiblichkeit, em: Stimmen der Zeit 181 (1968) 217-222.
18 Sobre essa problemática veja: Gelin, A., L'homme selon Ia Bible, Paris 19 68, 9-16; Kümmel, W. C., Das Bild des Menschen im Neuen Testament. Zurique 1948, 20.40; Herrade Mehl Koehnlein, L'homme selon l'apôtre Paul, Neuchâtel 1951, 31-37.
19 Cf. Hengstenberg, H. - E,, Der Leib und die letzten Dinge, Regensburg 1955, 151ss; 249ss.
20. Cf. Deissmann, A., Die neutestainentliche Formel 'in Christo Jesu',Marburg 1892; Dupont, J., Syn Christó, l'union avec le Christ suivant int Paul, Brugges 1952; Hoffmann, P., Die Toten in Christus. Eine religionsgeschichtliche und exegetische Untersuchung zur paulinischen Eschatologie, Muenster 1966, 301-320; Bordoni, M., Dimensioni antropologische della morte, pp. cit., 210-234.
21 Benoit, P., Ressurreição no fim dos ou logo , depois da morte? em: Concilium 60 (1970) 1289-1298; Carrez, M., Com que corpo ressuscitarão os mortos? em: Concilium op. cit., 1280-1288.
22 Cf. Feuillet, A., La demeure céleste et la destinem des chrétiens. Exégèse de 2Cor 5,1-10 et contribuition à Fétude des fondements de l'eschatologie pauIinienne, em: RSR 44 (1956) 161-192; 360-402.
23 Benoit, P., Ressurreição no fim dos tempos...? op. cit., 1298
passagem deste mundo para o Pai (Jo 13,1) como glorificação (Jo 17,1-2), concernindo o homem todo e não parte dele.
24 Le dimensioni antropologische della morte, op. cit., 233-234.
25 Ratzinger, J., Einführung in das Christentum. Munique 1969, 297.
26 A literatura antropológica moderna é multidão. Referiremos aqui obras que já fazem trabalho sistemático, lato é, intetizam as grandes linhas da reflexão. Para o nosso problema alio significativas: Hengstenberg, H.-E., Der Lei und die letzten Dinge, Regensburg 1955; WenzI, A., Unsterblichkeit ihre metaphysische und anthropologischc Bedeutung, Berna 1951; van Peursen, C. A., Leib, Seele, Geist, Gerd Mohn 1959; Vários, Geist und Leib in der menschlichen Existenz. Freiburg-Munique 1961, trabalhos e discussões entre cientistas e teólogos; 14itiimgruber, K., Atom und Seele. Ein Beitrag zur Erörterung des Leib-Secle-Problems, Freiburg 1958; Gödan, II., Die Unzuständlichkeit der Seele. Stuttgart 1961; L'âme et le corps. Recherches et Debats 35, Paria 1961; Maler, W., Das Problem der Leiblichkeit bei Jean-Paul Sartre und Maurice Merlau-Ponty, Tübingen 1964; Metz, J. B J. , Caro cardo salutis. Zum christlichen Verständnis des Leibes, em: Hochland 55 (1962) 97.107; Mouroux, J.. Sens chrétien de l'homme, Paris 1945; Vários, A redescoberta do homem. Do mito à antropologia crítica, Petrópolis 1970; Harada, H., Fenomenologia do corpo. Situação como existência corporal, em: Vozes 65 (1971) 21-28; Boff, L., Teologia do corpo. o homem-corpo é imortal, em: Vozes 65 (1971) 61-68.
27 Cf. Rahner, K., Philosophie und Philosophieren in der Theologie, em Schriften zur Theologie VIII, EinsiedeIn 1967, 66-87, esp. 69.
28 Einführung in die Metaphysik, Tübingen 1953, 6.
29 Cf. para uma orientação Libânio, J. B., Modernos conceitos de pessoa e Personalidade de Jesus, em: REB 31 (1971) 47-64; Boff, L., O destino do Homem e do Mundo, CRB, Rio de Janeiro 1972, 43-47.
30 Cf. Scheler, M., Die StelIung des Menscheti im Kosmos, Berna 6 1862, 36ss.
31 Essa perspectiva foi desenvolvida por toda urna corrente de antropologia especialmente por Gehlen, A., Der Mensch. Seine Natur und seine StelIung in der Welt, Frankfurt-Bonn 81966; Id., Anthropologische Forschung, Hamburg 1961; Portmann, A., Zoologie und das neue Bild des Menschen, Hamburg 1956; Buytendijk, F. J. J., Mensch und Tier, Hamburg 1958; Plessner, H., Die Stufen des Organischen und der Mensch, 1928. Veja também a elaboração teológica de W. Pannenberg, que sem abandonar o horizonte próprio da teologia e sem fazê-la serva de outras ciências conseguiu um aprofundamento antropológico-teológico digno de nota: Was ist der Mensch? Die Anthropologie der Gegenwart ira Lichte der Theologie, Göttingen 1968, esp. 5-13; de forma semelhante para a filosofia, sem tornáIa com isso urna sucursal de outras ciências humanas; Rothacker, E., Philosophische Anthropologie, Bonn 1966; Rombach H., Die Frage nach dem Menschen. Aufriss einer philosophischen Anthropologie, Freiburg 1966, de Ia Pefia, J. R., El hombre y su muerte, op. cit. (nota 1) 69-116.
32 Cf. Strauss, C. - L., La pensée sauvage, Paris 1962; Neumann, E., Ursprungsgeschichte des Buwusstseins, Munique 1964.
33 É a antropologia de Rahner e de seus discípulos elaborada sob a inspiração do método transcendental: Hörer des Wortes, München 1963; Metz, J. B., Christliche Anthropozentrik, München 1962; na filosofia italiana característico dessa orientação é M. F. Sciacca, Acta et Être, Aubier 1958; ld., L'uomo questo squilibrato. Bocca, Roma 1956; uma tentativa de sistematização do pensamento antropológico de Sciacca veja: Boff, L., A filosofia da integralidade de M. F. Sciacca, em: Vozes 1964 em quatro artigos sucessivos.
34 Cf. Jaspers, K., Psychologie der Weltanschauungen. Hermeneutik des Daseins ira Sinne einer existentiellen Anthropologie, 1919; Id., Vom Ursprung und Ziel der Geschichte, Hamburg 1955, 14ss.
35 Behrendt, R. F., Der Mensch im Licht der Soziologie, Berlin 1962; Bloch, E., Prinzip Hoffnung, 2 vol., Frankfurt 1959.
36 Cf. Pannenberg, W., Was ist der Mensch? em: Disputation zwischen Christen und Marxisten, München 1966, 179-194, esp. 182ss; Id., Die Frage nacht Gott, em: Grundfragen systematischer Theologie, Goettingen 1967, 361-386.
37 Rahner, K., num simpósio sobre Geist und Leib in der menschlichen Eristenz da Görres-Gesellschaft, Freiburg, München 1961, 196-198.
38 Marcel, G., Étre et Avoir, Paris 1935, 225; Id., Le mystère de l'être, Paris 1951, 91-118.
39 Cf. Portmann, A., Biologie und Geist, Freiburg 1963, 112-113.
40 Este aspecto foi especialmente analisado por Merleau-Ponty, M., Phénoménologie de Ia perception, Paris 1945, 293ss; cf. Sartre, J. P., L'être et le néant, Paris 1943, 418-427; 365-427; van Peursen, C. A., Leib, Seele, Geist op. cit., 127-147.
41 Cf. a principal literatura recente sobre o tema: Dussel, E. D., El humanismo semita, B Aires 1969; Gelin, A., L'homme selon Ia Bible, Paris 1968; Pidoux, G., L'homme dans l'Ancien Testament, Neuchâtel-Paris 1953; Dubarle, A. A., La conception de l'homme dans VAT, em: Sacra Pagina I. Paris 1959, 522-536; Kürnmel, W., Das Bild des Menschen im AT. Zurique 1948.
42 Cf. Carne no ThWNT VII, Stuttgart 1964, 98-151 (E. Schwelzer-R. Meyer) ; Scharbert, J., Fleisch, Geist und Seele im Pentateuch, Stuttgart 1966; Pidoux, G., L'homme, op. cit., 9-23; Dussel, E. D., El humanismo semita, op. cit., 28-30.
43 Cf. Robinson, J. A. T., The body. London 1965; Gelin, A., L'homme selon Ia Bible, op. cit., 9-16.
44 Cf. Lys, D., Nèphès. Histoire de l'âme dava Ia Révélation d'Israel ou sein des Religions procheorientales, Paris 1959; Schmid, J., Der Begriff Seele im NT, em: Einsicht und Glaube (publ. por J. Ratzinger e H. Fries) Friburgo 1962, 112-131; cf. também Kümmel, W., Das Bild des Menschen im NT, op. cit., 11-12.
45 Cf. Bieder, W., Pneuma, em: ThWNT VI (1959) 357-373, esp. 357-360; Mehl-Koehnlein, H., L'homme selon l'apôtre Paul, Neuchâtel-Paris 1951, 31-38; Grabner-Haider, A., AuferstehungsIeiblichkeit, em: Stimmen der Zeit 181 (1968) 217-222, esp. 221.
46 Cf. Metz, J.-B., Caro cardo salutis, op. cit., 7.
47 Cf. um excelente histórico em: Mysterium Salutis II, op. cit., 602-614.
41 Cf. Rahner, K., Der Leib als Symbol de.q Menschen, em: Schriften zur Theologie IV, EinsiedeIn 1967, 304-311 aqui 305.
49 Cf. Lang, A., Der Bedeutungswandel der Begriffe «fides» und «haeresis» und die dogmatische Wertung der Konzilsentscheidungen von Vienne und Trient (Festgabe f. F. Seppelt) Munique 1953, 133-146; Fiorenza, P. FMetz, J-B., Der Mensch aIs Einheit, op. cit., 616-617.
50 Metz, J. B., Der Mensch, aIs Einheit. op. cit., 617. Cf. em: Geist und Leib, in der menschlichen Existenz (CoIeção Ciência e Teologia, 4) Friburgo 1961, 196-198.
51 Esse terna é central no pensamento de A. de Saint Exupéry: veja por exemplo, em: Citadelle, Oeuvres, Gallimard 1959, 958-962 et passim.
52 Cf. Pousset, E., La résurrection, em: NRTh 91 (1969) 1031, mas também 1031-33.
53 Veja as críticas articuladas por K. Rahner, Sentido teológico de ta muerte, Barcelon 1965, 15-35; Boros, L., Mysterium mortis, op. cit., 83-90; Troisfontaines, R., Je ne meurs pas, op. cit., 71-96.
54 Conhecida é a frase de Heidegger: «Quando o homem começa a viver já é suficientemente velho para morrer»: Sein und Zeit, Tübingen 1953, 329.
55 Confessiones 1,6: «dicam mortalem vitam an morten vitalem nescio».
56 Cf. Troisfontaine, R., Je ne meurs pas, op. cit., 109.
57 Boros, L., Mysterium mortis, op. cit., 88; Id., ErIöstes Desein, op. cit., 92-93.
59 Blondel, M., Exigences philosophiques du christianisme, Paris 1950; Boros, L., Mysterium mortis, op. cit., 37-42.
60 Maréchal, J., Le point de départ de Ia métaphysique, Louvain-Paris 1922/26 esp. Cahicr V; Bergson, H., La perception du changement, Paris 1959, 1365-1392 reelaborado em Boros, op. cit., 43-52.
60 Marcel, G., Présence et immortalité, Paris 1959; Troisfontaines, R., De l'existence à l'etre. La philosophie de G. Mareei (vol. III), Paris 1953.
61 Elaborado principalmente por E. Bloch, Prinzip Hoffnung, 2 vol. Frankfurt 1959; Moltmann, J., Theologie der Hoffnung, München 1966; Alves, A. R., A Theology of Human Hope, Washington 1969. Orientador é também o volume coletivo Diskussion über die Theologie der Hoffnung, München 1967.
62 Troisfontaines, R., Je ne meurs pas, op. cit., 118-119.
63 Cf. Bordoni M , L'ipotesi dell'ultima decisione, em: Le dimensioni antropologische della *morte, op. cit., 85-122. Num outro ensaio, em breve, queremos retornar a esse tema, também no meti aspecto histórico e de sua segurança pastoral. Aqui restringir-nos-emos à intuição central; as obra de Boros e de Troisfontaines popularizaram a idéia, inclusive sua espiritualidade.
64 Cf. Boros, L., Mysterium um mortis, op. cit., 138-150; Id., Erlöstes Dasein, op. cit., 97-100; Boff L., Purgatório: processo de pleno amadurecimento, em Vozes maio 1972, 67-70.
65 Teólogos que se situam positivamente frente a semelhante questão: Troisfontaines, R., op. cit., 248; Boros, op. cit., 205-207; Id., Wann geschieht die Auferstehung? em: Aus der Hoffnung leben, Olten, Freiburg 1968, 31-38; Rahner, K., Zum Sinn des neuen Dogmas (Assunção de Maria) em: Schweitzer Rundschau 50 (1951) 590; Betz. 0.. Die Eschatologie in der Glaubensunterweisung, Würzburg 1965, 96-101; 108; A fé para adultos. O Novo Catecismo, S. Paulo 543-545; veja porém as modificações da comissão cardinalícia, Suplemento, S. Paulo 1970, 74-76; Schoonenberg, P., Creio na vida eterna, em: Concilium, jan. 1969, 86--99; Benoit, P., op. cit., em: Concilium, 60 (1970) 1289-1298 e outros; veja-se especialmente de Ia Peña El hombre y su muerte, op. cit., 379-385.
69 AAS 42 (1950) 770.
67 Flanagan, D., Escatologia e Assunção, em: Concilium, jan. 1969, 125. Também Schmaus, M., Der Glaube der Kirche, 11, 745.
68 Id., 127-129; Cf. Betz, O., Die Eschatologie in der Glaubenswnterweigung, op. cit., 96-101.
69 Schmaus, M., Der Glaube der Kirche, vol. II, Munique 1970, 744.
70 Id., 743.
Sobre o autor
Genézio Darci Boff (Frei Leonardo Boff), nascido em 1938,catarinense de 56 anos, está afastado da Igreja. Seus livros, contrários aos dogmas da Igreja Católica por tratarem de temas polêmicos, lhe renderam o afastamento da Igreja Católica. O ex-frei Leonardo Boff pediu seu próprio desligamento da Ordem dos Franciscanos. Não foi punido e jamais deixou de viver de acordo com sua ideologia. Fez seus estudos filosófico-teológicos em Curitiba e Petrópolis. Especializou-se em Teologia Sistemática nas Universidades de Munique, Oxford e Worzburg. É o coordenador responsável pelas publicações teológicas da Editora Vozes, Redator das revistas Concilium e REB, autor de obras como A Igreja como Sacramento no horizonte da experiência do mundo, Paderborn 1971, O Evangelho do Cristo Cósmico, Vozes 1971 e Jesus Cristo Libertador, Vozes 1972. Em 1974 era Professor no Instituto Filosófico-Teológico Franciscano de Petrópolis e do CEFEPAL da mesma cidade.
Boff é contrário à hegemonia da Igreja Católica Apostólica Romana e aposta na teoria do multicatolicismo, como a quebra da "hierarquia da Igreja" e a libertação dos povos. Para o polêmico frei Leonardo Boff, a Igreja nâo exerce o verdadeiro sentido intimista do cristianismo, por não permitir a reformulação de seus conceitos a partir de experiências populares. Isso seria evidenciado pela abertura às religiões africanas e indígenas, muito discriminadas no atual contexto. A sociedade entende que a umbanda esteja ligada à feitiçaria e seja semelhante à macumba e que igrejas "tribais", como Santo Daime, utilizam práticas não-ortodoxas, como cantilenas indígenas e ingestão de alucinógenos. O principal ponto de choque entre Boff e a Igreja se resume no celibato clerical. Em várias entrevistas à imprensa nacional, Leonardo Boff admitiu ter sido fiel à castidade. Atualmente casado, Boff se dedica à pregação ecológica. Um de seus livros, o "Ecologia: Grito da Terra, Grito dos Pobres", tenta unir a religião com o ambientalismo, defende dogmas do budismo e ataca os papas que "teriam contribuído" com um genocídio dos índios. Polêmico, sensato e ao mesmo tempo agressivo, Boff participa da Conferência Continental das Américas, onde está sendo colocada em discussão a Carta da Terra. O evento acontece em Cuiabá e reúne ambientalistas, ecologistas e jornalistas de vários países da América do Sul. Entenda o posicionamento de Leonardo Boff diante da religiâo e da preservação ambiental. A Carta da Terra pode ser melhor compreendida no site http://www.cartadaterra.org.br/