A Consciência de Classe
Georg Lukács
Extraído de História e Consciência de Classe, Georg Lukács, Ed. PCUS, 1960
«Não se trata do que tal ou qual proletário ou mesmo o proletariado inteiro se represente em dado momento como alvo. Trata-se do que é o proletariado e do que, de conformidade com o seu ser, historicamente será compelido a fazer».
Marx, A Sagrada Família
Infelizmente, para a teoria e para a práxis do proletariado, a obra principal de Marx se interrompe no momento preciso em que aborda a determinação das classes. Pois o movimento que a ela se seguiu se tem limitado, neste ponto decisivo, a interpretar e a confrontar as ocasionais declarações de Marx e Engels, a elaborar e a aplicar, ele próprio, o método. A divisão da sociedade em classes deve ser definida, no espírito do marxismo, pelo lugar que elas ocupam no processo de produção. Que significa, pois, a consciência de classe? Desde já a questão se subdivide em uma série de questões parciais, estreitamente ligadas entre si:
1º) Que se pode entender (teoricamente) por consciência de classe?
2º) Qual a função da consciência de classe assim (praticamente) compreendida na luta de classes? Esta questão se relaciona à seguinte: trata-se, a questão da consciência de classe, de uma questão sociológica «geral» ou essa questão tem um significado para o proletariado que as demais classes, até hoje aparecidas na história, ignoraram? E finalmente: formam, a essência e a função da consciência de classe, uma unidade ou aí se pode distinguir gradações e camadas? Se se pode, qual é, então, sua significação prática na luta de classe do proletariado?
I
Em sua célebre exposição do materialismo histórico,[1] Engels parte do seguinte ponto: embora consista, a essência da história, em que «nada se produz sem desígnio consciente, sem fim desejado», a compreensão da história exige que se vá mais longe. De um lado, porque «as numerosas vontades individuais em ação na história produzem, na maioria das vezes, resultados inteiramente diferentes dos resultados desejados, e freqüentemente opostos a esses resultados desejados, e que, por conseguinte, os seus móveis, igualmente, não tem mais do que uma importância secundaria para o conjunto do resultado. Por outro lado, restaria saber que forças motrizes se ocultam, por seu turno, por trás desses móveis, quais são as causas históricas que, na cabeça dos homens atuantes, se transformam em tais móveis». A seqüência da exposição de Engels precisa o problema: são essas forças motrizes que devem ser definidas, isto é, as forças que «põem em movimento povos inteiros e por sua vez, em cada povo, classes inteiras; e isso... através de uma ação durável e que resulta em uma grande transformação histórica». A essência do marxismo científico consiste em reconhecer a independência das forças motrizes reais da história com relação à consciência (psicológica) que os homens têm dela.
No nível mais primitivo do conhecimento, essa independência se expressa, originariamente, no fato de que os homens vêem uma espécie de natureza nessas forças, e que nelas, e nas leis que as unem, distinguem leis Naturais «eternas». «A reflexão sobre as formas da vida humana», diz Marx a propósito do pensamento burguês, «e, portanto, sua análise científica, toma, em geral, um caminho que é o oposto ao da evolução real. Essa reflexão começa de súbito, e, por conseguinte, pelos resultados acabados do processo de evolução. As formas... já possuem a estabilidade das formas naturais da vida social, antes que os homens procurem levar em conta não o caráter histórico dessas formas que de preferência lhes parecem já imutáveis — mas do seu conteúdo». [2] Marx opõe a esse dogmatismo — cujas expressões foram, de um lado, a teoria do Estado da Filosofia clássica alemã, e, de outro, a Economia de Smith e de Ricardo — um criticismo, uma teoria da teoria, uma consciência de classe. Sob muitos aspectos, é esse criticismo uma crítica histórica que dissolve, antes de tudo, nas configurações sociais, o caráter fixo, natural, subtraído ao devir; que revela a origem histórica dessas configurações, e que, conseqüentemente, e sob todos os pontos de vista, estão submetidas ao devir histórico e também predestinadas ao declínio histórico. A história, por conseguinte, não ataca unicamente o interior do domínio da validade dessas formas (o que implicaria ser a história apenas a mudança dos conteúdos, dos homens, das situações, etc., segundo princípios sociais eternamente válidos); e tampouco essas formas são o alvo a que toda a história se propõe, cuja realização aboliria toda a história, ao ter esta cumprido sua missão. Ao contrário, a história é, antes de mais nada, a história dessas formas, de sua transformação, enquanto formas da reunião dos homens em sociedade, formas que, a partir das relações econômicas objetivas, dominam todas as relações dos homens entre si (e, por conseguinte, também as relações dos homens com eles próprios, com a natureza, etc.).
Aqui, contudo, o pensamento burguês depara com uma barreira intransponível, posto que seu ponto de partida e seu objetivo são sempre, mesmo de modo inconsciente, a apologia da ordem de coisas existente ou, pelo menos, a demonstração de sua imutabilidade.[3] «Portanto, já houve, mas não há mais, história», diz Marx,[4] reportando-se á economia burguesa. E esta afirmação é válida para todas as tentativas do pensamento burguês por assenhorear-se, pelo pensamento, do processo histórico. (Aqui, outrossim, se encontra um dos limites, com freqüência assinalado, da filosofia hegeliana da história.) Desse modo, é dado ao pensamento burguês ver a história como tarefa, mas como tarefa insolúvel. Porque ou ela deve suprimir completamente o processo histórico e aprender, nas formas presentes de organização, as leis eternas da natureza, as quais, no passado — e por razões “misteriosas» e de maneira incompatível com os princípios da ciência racional aplicados à pesquisa de leis — só se realizaram imperfeitamente ou de maneira alguma se realizaram (Sociologia burguesa); ou ele deve eliminar do processo da história tudo o que tem um sentido, que visa a um fim, e ater-se á pura «individualidade» das épocas históricas e de seus agentes humanos ou sociais. Cabendo, assim, à ciência histórica pretender, com Ranke, que cada época histórica «está igualmente próxima a Deus», isto é, atingiu o mesmo grau de perfeição, e que de novo, e por razões opostas; não há evolução histórica. No primeiro caso, desaparece toda possibilidade de compreender a origem das configurações sociais.[5] Os objetos da história aparecem como objetos de leis naturais imutáveis, eternas. A história se fixa em um formalismo que carece de condições para explicar as configurações histórico-sociais em sua verdadeira essência como relações inter-humanas. E essas configurações são jogadas bem longe desta mais autêntica fonte de compreensão da história, que são as relações inter-humanas, e delas estão separadas por uma distância intransponível. Não se compreendeu, diz Marx, «que essas relações sociais são, do mesmo modo que o tecido, o linho, etc., produzidas pelos homens».[6] No segundo caso, a história se torna, em última instância, o reino irracional de potências cegas, que de tal modo se encarnam nos «espíritos dos povos» ou nos «grandes homens» que somente podem ser descritas de feitio pragmático e não concebidas racionalmente. Pode-se apenas submetê-las, como se se tratasse de uma espécie de obra de arte, a uma organização estética. Ou melhor, é preciso considerá-las, como ocorre na filosofia da história dos kantianos, como o material, em si desprovido de sentido, da realização de princípios intemporais, supra-históricos e éticos.
Marx resolve esse dilema demonstrando que não há verdadeiro dilema. O dilema simplesmente revela que o antagonismo próprio à ordem de produção capitalista se reflete nessas concepções opostas e exclusivas a propósito de um mesmo objeto. Porque é exatamente na pesquisa das leis «sociológicas» da história, na consideração formalista e racional da história, que se expressa, na sociedade burguesa, o abandono dos homens às forças produtivas. «O movimento da sociedade, que é o seu próprio movimento», diz Marx, «adquire, para eles, a forma de um movimento das coisas, ao controle das quais se submetem ao invés de controlá-las» [7]. Marx opõe a essa concepção, que encontrou sua mais clara e mais conseqüente expressão nas leis puramente naturais e racionais da Economia Política clássica, a crítica histórica da Economia Política, a dissolução, nas relações inter-humanas, de todas as objetividade reificadas da vida econômica e social. O capital (e, como ele, toda a forma objetivada da Economia Política) «não é, para Marx, uma coisa, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada pelas coisas» . [8] Entretanto, conduzindo essa «coisidade» das configurações sociais, inimiga do homem, as relações de homem a homem, abole-se, ao mesmo tempo, a falsa importância atribuída ao principio de explicação irracional e individualista, isto é, o outro aspecto do dilema. Porque ao abolir-se essa «coisidade», inimiga do homem, com que as configurações sociais e o seu movimento histórico se dissimulam, não se faz mais do que conduzi-la, como ao seu fundamento, às relações de homem a homem, sem para isso em nada abolir sua conformidade às leis e à sua objetividade, independentes da vontade humana, e, em particular, da vontade e do pensamento dos homens individuais. Essa objetividade, simplesmente, é a objetivação de si da sociedade humana em uma determinada etapa de sua evolução, e esta conformidade às leis somente é válida no quadro do meio histórico que ela produz e que, por seu turno, determina.
Tudo leva a crer que, ao suprimir-se este dilema, se tenha privado a consciência de todo papel decisivo no processo histórico. Certamente os reflexos conscientes das diversas etapas do desenvolvimento econômico permanecem um fato histórico de grande importância. Certamente, o materialismo dialético, que assim se formou, em nada contesta que os próprios homens cumpram e executem conscientemente seus atos históricos. Mas é, como assinalou Engels numa carta a Mehring,[9] uma falsa consciência. Também aqui o método dialético não nos permite ater a uma simples constatação da «falsidade» dessa consciência, à oposição fixa do verdadeiro e do falso. De preferência, exige que essa «falsa consciência» seja estudada concretamente como momento da totalidade histórica à que pertence, como etapa do processo histórico onde desempenha o seu papel.
É verdade que também ela, a ciência histórica burguesa, tem em mira estudos concretos, e acusa o materialismo histórico de violar a unicidade concreta dos acontecimentos históricos. O seu erro reside em crer encontrar o concreto em questão no indivíduo histórico empírico (quer se trate de um homem, de uma classe ou de um povo) e na sua consciência dada empiricamente (isto é, dada pela psicologia individual ou pela psicologia das massas). Mas ela está, exatamente, mais longe desse concreto quando crê haver encontrado o que há de mais concreto: a sociedade como totalidade concreta, a organização da produção em um determinado nível do desenvolvimento social e a divisão em classes que ela opera na sociedade. Desviando-se de tudo isso, toma como concreto alguma coisa de completamente abstrato. «Essas relações», diz Marx, «não são mais relações de indivíduo a indivíduo, mas de operário para capitalista, de rendeiro para proprietário fundiário, etc. Apagai essas relações e tereis aniquilado toda a sociedade, e o vosso Prometeu nada mais é que um fantasma sem braços nem pernas».[10]
Por estudo concreto, entende-se: um relato da sociedade como, totalidade. Porque somente neste relato é que a consciência, que os homens podem ter em cada momento de sua existência, aparece em suas relações essenciais. Por um lado, aparece como algo que, subjetivamente, se justifica, se compreende e Se deve compreender a partir da situação social e histórica, como alguma coisa de «justo»; e, ao mesmo tempo, aparece como alguma coisa que, objetivamente, é passageira com relação à essência do desenvolvimento social, que não se conhece nem se expressa adequadamente, e pois como «falsa consciência». Por outro lado, essa mesma consciência aparece sob essa mesma relação como carente subjetivamente dos alvos que a si mesma assinalou, ao mesmo tempo que aparece visando e atingindo os alvos objetivos do desenvolvimento social, desconhecidos dela e que ela não desejou. Essa determinação, duplamente dialética, da «falsa consciência» não mais permite tratá-la restringindo-se a descrever o que os homens pensaram, sentiram ou desejaram efetivamente sob determinadas condições históricas, nas determinadas situações de classe etc. O que ai está é apenas o material, e, para dizer a verdade, muito importante, dos estudos históricos propriamente ditos. Estabelecendo-se a relação com a totalidade concreta, donde saem as determinações dialéticas, supera-se a mera descrição e alcança-se a categoria da possibilidade objetiva. E relacionando-se a consciência à totalidade da sociedade, descobrem-se os pensamentos e os sentimentos que os homens teriam tido, em uma situação vital determinada, se tivessem sido capazes de perceber perfeitamente essa situação e os interesses que daí decorrem tanto no que se refere à ação imediata como à estrutura, conforme a esses interesses, de toda a sociedade. Descobrem-se, pois, os pensamentos, etc., que são conformes à sua situação objetiva. Em nenhuma sociedade o número de tais situações é ilimitado. Mesmo se a sua tipologia está elaborada graças às pesquisas minuciosamente aprofundadas, tem-se por resultado alguns tipos fundamentais claramente distintos uns dos outros e cujo caráter essencial está determinado pela tipologia da posição dos homens no processo da produção. Pois a consciência de classe é a reação racional adequada que deve, dessa maneira, ser adjudicada a uma determinada situação típica no processo de produção.[11] Essa consciência não é nem a soma nem a média do que os indivíduos que formam a classe, tomados separadamente, pensam, sentem, etc. Entretanto, a ação historicamente decisiva da classe como totalidade está determinada, em última instância, por essa consciência e não pelo pensamento etc., do indivíduo. E essa ação não pode ser conhecida a não ser a partir dessa consciência.
Essa determinação fixa, desde logo, a distância que separa a consciência de classe e os pensamentos empíricos efetivos, os pensamentos psicologicamente descritíveis e explicáveis que os homens fazem de sua situação vital. Entretanto, não se deve permanecer na mera constatação dessa distância, ou limitar-se a fixar, de uma maneira geral e formal, as conexões que daí decorrem. É preciso, antes de mais nada, pesquisar: 1º) se essa distância é diferente segundo as diferentes classes, segundo as diferentes relações que mantêm com a totalidade econômica e social, de que são membros, e em que medida essa diferenciação é bastante grande para comportar diferenças qualitativas; 2º) o que significam praticamente essas diferentes relações entre totalidade econômica objetiva, consciência de classe adjudicada e pensamentos psicológicos reais dos homens sobre sua situação vital, para o desenvolvimento da sociedade; e qual é a função prática da consciência de classe.
Somente tais constatações tornam possível a utilização metódica da categoria da possibilidade objetiva. Porque cabe indagar, antes de tudo, em que medida a totalidade da economia de uma sociedade pode, nas condições em causa, ser percebida do interior de uma sociedade determinada, a partir de uma posição determinada no processo de produção. Porque, assim como se pode estar acima das limitações de fato que fazem os indivíduos, tomados um a um, sofrer as estreitezas e os preconceitos próprios à sua situação vital, do mesmo modo não se pode ir além do limite que lhes é imposto pela estrutura econômica da sociedade de sua época e pela posição que nela ocupam.[12] Pois a consciência de classe é, considerada abstrata e formalmente, ao mesmo tempo uma inconsciência de sua própria situação econômica histórica e social, determinada de conformidade com a classe.[13] Essa situação é dada como uma relação estrutural determinada, como uma relação de forma determinada, que parece dominar todos os objetos da vida. Por conseguinte, a «falsidade», a «ilusão», contidas em tal situação de fato, são a expressão mental da estrutura econômica objetiva, e não qualquer coisa de contrária. Assim, por exemplo, «o valor ou o preço da força de trabalho toma a aparência do preço ou do valor do próprio trabalho» e «cria a ilusão de que o trabalho é pago em sua totalidade... O inverso ocorre na escravidão, onde a parte do trabalho que é paga aparece como não o sendo» [14] Pois é tarefa de uma minuciosa análise histórica mostrar com clareza, graças à categoria da possibilidade objetiva, em que situação efetiva vem a ser possível desmascarar realmente a ilusão, e penetrar até à conexão real com a totalidade. Porque no caso em que a sociedade atual não possa, nas condições em causa, ser percebida em sua totalidade a partir de uma determinada situação de classe, no caso em que a reflexão conseqüente, mesmo indo até o fim e alcançando os interesses de classe — reflexão que pode adjudicar a uma classe — não se refira à totalidade da sociedade, tal classe só poderá desempenhar um papel subalterno e jamais poderá intervir na marcha da história como fator de progresso ou de conservação. Em geral, tais classes estão predestinadas à passividade, a uma oscilação inconseqüente entre as classes dominantes e as classes condutoras das revoluções, e suas eventuais explosões tomam necessariamente um caráter elementar, vazio e sem objetivo, e estão condenadas ao fracasso final, mesmo no caso de alguma vitória acidental.
A vocação de uma classe à dominação significa que é possível, a partir de seus interesses de classe; de sua consciência de classe, organizar o conjunto da sociedade de conformidade com esses interesses. A questão que, em última instância, decide toda luta de classes, é: que classe dispõe, no momento desejado, dessa capacidade e dessa consciência de classe? Isso não pode eliminar o papel da violência na história nem garantir uma vitória automática dos interesses chamados a dominar e que são os portadores dos interesses do desenvolvimento social. Ao contrário: em primeiro lugar, as próprias condições indispensáveis à afirmação dos interesses de classe são, com freqüência, criadas por intermédio da violência mais brutal (por exemplo, a acumulação primitiva de capital); em segundo lugar, é exatamente nas questões da violência, nas situações em que as classes se enfrentam na luta pela existência, que os problemas da consciência de classe constituem os momentos finalmente decisivos. Quando o importante marxista húngaro Erwin Szabó se insurge contra a concepção de Engels, que considerava a Grande Guerra Camponesa como um movimento reacionário em sua essência, e opõe a esta concepção o argumento segundo o qual a revolta camponesa somente foi batida pela força bruta, que o seu fracasso não se fundamentava na sua natureza econômica e social, na consciência de classe dos Camponeses, ele não vê que a causa final da superioridade dos príncipes e da fraqueza dos camponeses, e pois a possibilidade de violência, por parte dos príncipes, deve ser buscada nesses problemas de consciência de classe. De que, aliás, facilmente se pode alguém convencer mediante o estudo estratégico, ainda o mais superficial, da guerra dos camponeses.
Contudo, mesmo as classes capazes de dominação não devem ser postas no mesmo plano no que concerne à estrutura interna de sua consciência de classe. O que importa aqui é saber em que medida estão elas em condições de se tornarem conscientes das ações que devem executar, e efetivamente executam, para conquistar e para organizar sua posição dominante. Pois o que importa é a seguinte questão: que ponto a classe em questão cumpre «conscientemente», até que ponto «inconscientemente», até que ponto com uma consciência «justa», e até que ponto com uma consciência «falsa», as tarefas que lhe são impostas pela história? Essas não são distinções meramente acadêmicas. Porque, independentemente dos problemas da cultura, onde as dissonâncias resultantes dessas questões são de uma importância decisiva, o destino de uma classe depende de sua capacidade, em todas as suas decisões práticas, de ver com clareza, e de resolver os problemas que a evolução histórica lhe impõe. Vê-se de outra vez, e de maneira bastante clara, que, no que se refere à consciência de classe, não se trata do pensamento dos indivíduos, ainda os mais evoluídos, nem muito menos de conhecimento científico. Hoje está inteiramente esclarecido que a economia fundada na escravidão devia, em razão de seus limites, causar a ruína da sociedade antiga. Mas também está claro que na antigüidade nem a classe dominante nem as que se insurgiam contra ela de maneira revolucionária ou reformista podiam, nas condições em causa, alcançar a concepção segundo a qual o declínio dessa sociedade era inevitável e sem esperança de salvação. Esses problemas surgiram praticamente. E tal situação se manifesta com uma evidência ainda maior na burguesia de hoje, que, de início, sustentou a luta contra a sociedade absolutista e feudal com conhecimento das interdependências econômicas, mas que necessariamente viria a tornar-se totalmente sem condições de levar até o fim esta ciência, que originariamente era sua; esta ciência que lhe era inteiramente própria; e que viria necessariamente a esgotar-se, inclusive teoricamente, diante da teoria das crises. E, neste caso, de nada lhe serve que a solução teórica lhe seja cientificamente adequada. Porque, aceitar, ainda que teoricamente, essa solução, eqüivaleria a não mais considerar os fenômenos da sociedade do ponto de vista da burguesia. E nenhuma classe é capaz de tal coisa, a não ser que renunciasse voluntariamente à sua dominação. É, pois, objetiva a barreira que faz da consciência de classe da burguesia uma «falsa» consciência. É a conseqüência objetiva da estrutura econômica da sociedade e não algo de arbitrário, de subjetivo ou de psicológico. Porque a consciência de classe da burguesia, mesmo no caso de poder refletir, com a maior clareza possível, todos os problemas de organização dessa dominação, da revolução capitalista e de sua penetração no conjunto da produção, deve obscurecer-se necessariamente a partir do instante em que surgem, no interior da experiência burguesa, problemas cujas soluções se encontram para além do capitalismo. A descoberta, por ela, das «leis naturais» da Economia, que representa uma consciência clara em comparação com a Idade Média feudal ou com o período de transição do mercantilismo, se converte, de maneira imanente e dialética, em uma «lei natural que repousa na ausência de consciência dos que dela fazem parte». [15]
A partir dos pontos de vista indicados aqui, não se pode dar uma tipologia histórica e sistemática dos possíveis graus da consciência de classe. Daí ser necessário, em primeiro lugar, estudar com exatidão qual o momento do processo de conjunto da produção que atinge, da maneira mais imediata e mais vital, os interesses de cada classe. E, em segundo lugar, em que medida há interesse de cada classe de colocar-se acima dessa imediaticidade, de perceber o momento imediatamente importante como simples momento da totalidade, e assim superá-lo, e finalmente de que natureza é a totalidade assim atingida, em que medida é a percepção verdadeira da totalidade real da produção, Porque, está claro, a consciência de classe toma uma forma qualitativa e estruturalmente diferente, segundo, por exemplo, permaneça limitada aos interesses do consumo separado da produção (Lumpenproletariat romano) ou represente a formação categorial dos interesses da circulação (capital mercantil, etc). Sem poder, contudo, entrar aqui na tipologia sistemática dessas possíveis tomadas de posição, pode-se, a partir do que tem sido indicado até agora, constatar que os diferentes casos de «falsa» consciência se diferenciam entre si qualitativa e estruturalmente de um modo que influencia, decisivamente, o papel social das classes.
II
Do que precede resulta, para as épocas pré-capitalistas e para o comportamento, no capitalismo, de numerosas camadas sociais cuja vida tem fundamentos econômicos précapitalistas, que a consciência de classe de que são portadoras não é capaz, em razão de sua própria natureza, de tomar uma forma plenamente clara e de influenciar conscientemente os acontecimentos históricos.
Antes de tudo, porque é da essência de toda sociedade précapitalista jamais poder fazer aparecer, em plena luz (econômica), os interesses de classe. A organização da sociedade dividida em castas, em estamentos,[16] etc., é feita de tal maneira que, na estrutura econômica objetiva da sociedade, os elementos econômicos aparecem unidos inextrincavelmente aos elementos políticos, religiosos, etc. Somente com a dominação da burguesia, cuja vitória significa a supressão da organização em estamentos, é que se torna possível uma ordem social em que a estratificação da sociedade tende à pura e exclusiva estratificação em classes. (Não muda absolutamente nada da justeza fundamental dessa constatação o fato de que, em mais de um país, os vestígios da organização feudal em estamentos tenham subsistido no seio do capitalismo).
Essa situação tem, de fato, o seu fundamento na profunda diferença existente entre a organização econômica do capitalismo e a das sociedades pré-capitalistas. A diferença mais frisante, e que agora mais nos importa, é que toda sociedade précapitalista forma uma unidade incomparavelmente menos coerente, do ponto de vista econômico, do que a sociedade capitalista, que ali, a autonomia das partes é muito maior, sendo mais limitadas e menos desenvolvidas, do que no capitalismo, as suas interdependências econômicas. Quanto mais fraco é o papel da circulação das mercadorias na vida da sociedade em seu conjunto, e quanto mais cada uma das partes da sociedade vive praticamente em autarcias econômicas (comunas aldeãs) ou não desempenha nenhum papel na vida propriamente econômica da sociedade, no processo de produção em geral (como era o caso de frações importantes de cidadãos nas cidades gregas e em Roma), tanto menor é o fundamento real da forma unitária e da coesão organizacional da sociedade e do Estado, na vida real da sociedade. Uma parte da sociedade leva uma existência «natural», praticamente independente do destino do Estado. «O organismo produtivo simples dessas coletividades autárquicas que se reproduzem constantemente sob a mesma forma, e se por acaso são destruídas, reconstroem-se no mesmo lugar, com o mesmo nome, dá a chave do mistério da imutabilidade das sociedades asiáticas, imutabilidade que contrasta de maneira evidente com a dissolução e a renovação constante dos Estados asiáticos e com as incessantes mudanças dinásticas. A estrutura dos elementos econômicos fundamentais da sociedade não é alcançada pelas tempestades que agitam o céu da política.» [17] Outra parte da sociedade leva, por seu lado, uma vida econômica inteiramente parasitária. O Estado, o aparelho do poder estatal, não é para elas, como para as classes dominantes na sociedade capitalista, um meio de impor, se necessário pela violência, os princípios de sua dominação econômica ou de procurar pela violência as condições de sua dominação econômica (como o é para a colonização moderna). Não é pois uma mediação da dominação econômica da sociedade, é imediatamente essa própria dominação. Não é o caso somente de quando se trata pura e simplesmente de apossar-se de terras, de escravos, etc., mas também das relações «econômicas» ditas pacificas. É assim que Marx se refere, ao falar da renda de trabalho: «Nessas condições, o excedente do trabalho não pode ser extorquido em proveito dos proprietários de terra nominais a não ser por intermédio de uma coação extra-econômica» [18] Na Ásia, «a renda e os impostos são uma mesma coisa, isto é, não existem impostos distintos dessa forma de renda fundiária». E mesmo a forma que reveste a circulação das mercadorias nas sociedades précapitalistas não lhe permite exercer uma influência decisiva sobre a estrutura fundamental da sociedade. Permanece à superfície, sem poder dominar os próprios processos de produção, e, em particular, suas relações com o trabalho. «O comerciante podia comprar todas as mercadorias, menos o trabalho como mercadoria. E só era tolerado como fornecedor dos produtos artesanais», diz Marx. [19]
Apesar de tudo, tal sociedade forma também uma unidade econômica. Só resta indagar se essa unidade é de tal maneira que a relação dos diversos grupos particulares, de que a sociedade se compõe, com a totalidade da sociedade, pode tomar, na consciência que lhe pode ser adjudicada, uma forma econômica. Marx, por sua vez, ressalta que a luta de classes dos antigos se desenrolava «principalmente sob a forma de uma luta entre credores e devedores». [20] Mas tem plena razão ao acrescentar: «Contudo, a forma monetária — e a relação de credor a devedor possui a forma de uma relação monetária — não faz mais do que refletir o antagonismo de condições econômicas de vida muito mais profundas». Esse reflexo pôde revelar-se como simples reflexo para o materialismo histórico. Todavia, tinham as classes dessa sociedade, nas condições em causa, possibilidade objetiva de ascender à consciência do fundamento econômico de suas lutas, da problemática econômica da sociedade em que padeciam? Essas lutas e esses problemas não se tornariam necessariamente para elas — conforme as condições de vida em que viviam — formas ora «naturais» e religiosas,[20a] ora estatais e jurídicas? Mas é que a divisão da sociedade em estamentos, em castas, etc., significa exatamente que a fixação tanto conceitual como organizacional dessas posições «naturais» permanece economicamente inconsciente, e que o caráter puramente tradicional de seu mero crescimento deve ser imediatamente vertido nos moldes jurídicos.[21] Porque ao caráter mais frouxo da coação econômica na sociedade corresponde uma função, tanto objetiva como subjetivamente, diferenciada da que lhe é dada ser no capitalismo, das formas jurídicas e estatais que constituem, aqui, as estratificações em estamentos, os privilégios, etc. Na sociedade capitalista essas formas são, simplesmente, uma fixação de interconexões cujo funcionamento é puramente econômico, se bem que, com freqüência, as formas jurídicas — como Karne já mostrou com pertinência [22] — possam referir-se, sem por isso modificar sua forma ou o seu conteúdo, a estruturas econômicas modificadas. Em compensação, nas sociedades précapitalistas devem as formas jurídicas necessariamente intervir de maneira constitutiva nas conexões econômicas. Não há aqui categorias puramente econômicas — e as categorias econômicas são, segundo Marx, «formas de existência, determinação de existência»[23] — que aparecem nas formas jurídicas, que são vertidas em outras formas jurídicas. Mas as categorias econômicas e jurídicas são, efetivamente, em razão do seu conteúdo, inseparáveis e imbricadas umas nas outras (que se pense nos exemplos dados acima, da renda da terra e do imposto, da escravidão, etc.). A economia não atinge, para falar em termos hegelianos, sequer objetivamente, o nível do ser-para-si, e eis por que no interior de tal sociedade não é possível uma posição a partir da qual o fundamento econômico de todas as relações sociais pudesse tornar-se consciente.
De nenhum modo isso vem suprimir o fundamento econômico objetivo de todas as formas de sociedade. Ao contrário, a história das estratificações em estamentos demonstra, de maneira bastante clara que estas, após terem originariamente percorrido uma existência econômica «natural» nas formas sólidas, decompunham-se pouco a pouco no curso da evolução econômica que se desenrolava subterraneamente, «inconscientemente», isto é, deixavam de constituir uma verdadeira unidade. O seu conteúdo econômico dilacerou sua unidade jurídica formal. (A análise, feita por Engels, das relações de classes no tempo da Reforma, como a feita por Cunow das relações de classes da Revolução Francesa, confirmam suficientemente esse fato.) Contudo, apesar dessa rivalidade entre forma jurídica e conteúdo econômico, a forma jurídica (criadora de privilégios) guarda uma importância muito grande, freqüentemente decisiva para a consciência de classe desses estamentos em via de decomposição. A forma da divisão em estamentos dissimulava a interdependência entre a existência econômica de estamento — existência real, embora «inconsciente» — e a totalidade econômica da sociedade. Ela fixa a consciência ora no nível da pura imediaticidade de seus privilégios (cavalheiros da época da Reforma), ora no nível da particularidade — também inteiramente imediata — dessa parte da sociedade, a que se referem os privilégios (corporações). Mesmo no caso de o estamento já estar completamente desagregado economicamente, e seus membros passarem a pertencer a classes já economicamente diferentes, apesar disso guarda este vínculo ideológico (objetivamente ideal). Isso porque a relação que a «consciência estamentária» desenvolve com a totalidade se dirige a outra totalidade que não a unidade econômica real e viva. Dirige-se, isto sim, a fixação passada da sociedade que constituiu, ao seu tempo, os privilégios estamentários. A consciência estamentária, como fator histórico real, mascara a consciência de classe, impede-a de manifestar-se. Um fenômeno análogo pode-se observar na sociedade capitalista, naqueles grupos «privilegiados» cuja situação de classe não tem um fundamento econômico imediato. A faculdade de adaptação de tal camada a evolução econômica real cresce com sua capacidade de «capitalizar-se», de transformar seus «privilégios» em relações econômicas e capitalistas de dominação (por exemplo, os grandes proprietários de terra)
A relação entre a consciência de classe e a história é, por conseguinte, uma nos tempos précapitalistas e outra na época capitalista. Nos tempos pré-capitalistas, as classes não podiam ser destacadas da realidade histórica imediatamente dada a não ser por intermédio da interpretação da história elaborada pelo materialismo histórico. Enquanto hoje as classes são essa própria realidade imediata, histórica. Não é, pois, de modo algum um acaso — como já ressaltava Engels — que esse conhecimento só se tornou possível na época do capitalismo. E isso não somente em razão da simplicidade maior dessa estrutura em comparação com as «conexões complicadas e ocultas» dos tempos passados, como pensa Engels, mas, antes de tudo, porque o interesse econômico de classe, como motor da história, só apareceu em toda a sua pureza com o advento do capitalismo. As verdadeiras «forças motrizes» que «estão por trás dos móveis dos homens que atuam na história» jamais poderiam alcançar a consciência (mesmo como consciência simplesmente adjudicada) nos tempos précapitalistas. Permanecem, na verdade, ocultas por trás dos móveis como forças cegas da evolução histórica. Os momentos ideológicos não «acobertam» somente os interesses econômicos, não são somente as bandeiras e as palavras-de-ordem de combate. São parte integrante e os próprios elementos da luta real. É claro que, quando o sentido sociológico dessas lutas é pesquisado por intermédio do materialismo histórico, então esses interesses podem, indubitavelmente, ser descobertos como momentos de exploração finalmente decisivos. Mas a diferença intransponível no que se refere ao capitalismo está em que, na época capitalista, os momentos econômicos não estão mais ocultos «por trás» da consciência, mas presentes na própria consciência (simplesmente inconscientes ou recalcados, etc.). Com o capitalismo, com o desaparecimento da estrutura estamentária e com a constituição de uma sociedade de articulações puramente econômicas, a consciência de classe alcançou uma fase onde pode tornar-se consciente. Agora a luta social se reflete em uma luta ideológica para a consciência, a revelação ou a dissimulação do caráter de classe da sociedade. Mas a possibilidade dessa luta já anuncia as contradições dialéticas, a dissolução interna da pura sociedade de classes. «Quando a Filosofia», diz Hegel, «pinta de cinzento o cinzento, é que uma forma de vida envelheceu e não se deixa rejuvenescer pelo cinzento sobre o cinzento, no que apenas se faz reconhecer. A coruja de Minerva só alça vôo ao cair da noite».
III
A burguesia e o proletariado são as únicas classes puras da sociedade. Isto é: somente a existência e a evolução dessas classes repousam exclusivamente na evolução do processo moderno de produção, e não se pode representar um plano de organização da sociedade em seu conjunto a não ser a partir de suas condições de existência. O caráter incerto ou estéril que a atitude das outras classes (pequeno-burgueses, camponeses) tem para a evolução repousa no fato de que sua existência não está fundada, exclusivamente, na sua situação no processo de produção capitalista, mas que está vinculada indissoluvelmente aos vestígios da sociedade dividida em estamentos. Não buscam promover, portanto, a evolução capitalista ou fazer-se superar a si mesmas. Mas, em geral, buscam fazê-la retrogradar ou, pelo menos, impedi-la de chegar a seu pleno florescimento. O interesse de classe de que são portadoras só se orienta em função de sintomas de evolução, e não da própria evolução, e pois em função de manifestações parciais da sociedade e não do conjunto da estrutura da sociedade.
Essa questão da consciência pode aparecer nas maneiras de fixar o objetivo e de agir, como, por exemplo, entre a pequena-burguesia que, vivendo, ao menos, parcialmente, na grande cidade capitalista, submetida diretamente às influências do capitalismo em todas as manifestações exteriores da vida, não pode, em absoluto, desviar-se, inteiramente indiferente, do fato da luta de classes entre a burguesia e o proletariado. Mas a pequena-burguesia, como «classe de transição onde os interesses das duas classes simultaneamente se ocultam», passa a sentir-se «acima da oposição das classes em geral» [24]. Em conseqüência do que procura os meios não de suprimir os dois extremos, capital e salário, mas de atenuar sua oposição e de transformá-la em harmonia» [25]. Desviar-se-á, em sua ação, de todas as decisões cruciais da sociedade e deverá, necessária e alternativamente, lutar, e sempre inconscientemente, por uma ou outra das direções da luta de classes. Seus próprios objetivos, que existem exclusivamente na sua consciência, tomam, necessariamente, formas sempre mais vazias, sempre mais destacadas da ação social, puramente «ideológicas». A pequena-burguesia só pode desempenhar, durante certo tempo, um papel histórico ativo no caso de os objetivos por ela assinalados coincidirem com os reais interesses econômicos de classe do capitalismo, como ocorreu, durante a Revolução Francesa, no momento da abolição dos estamentos. Cumprida essa missão, suas manifestações — que na maior parte permanecem as mesmas — adquirem uma existência cada vez mais a margem da evolução real, cada vez mais caricatural (o Jacobinismo da Montanha em 1848-51). Mas essa ausência de vínculos com a sociedade como totalidade pode ter uma influência para trás sobre a estrutura interna, — sobre a capacidade de organização da classe. E isso se manifesta com mais clareza na evolução dos camponeses. «Os pequenos proprietários agrícolas», diz Marx, «formam uma enorme massa cujos membros vivem na mesma situação, mas sem entrar em múltiplos contatos uns com os outros. O seu modo de produção os isola uns dos outros, ao invés de criar entre eles um comércio recíproco... É assim que cada família de camponês... retira seus meios de existência mais da troca com a natureza do que com o comércio com a sociedade... Na medida em que milhões de famílias vivem nas condições econômicas de existência que separam seu modo de vida, seus interesses, sua cultura, dos das outras classes e os opõem como inimigos dessas classes, é que elas formam uma classe. E deixam de formá-la à proporção que só existe entre os pequenos proprietários agrícolas um vínculo local no qual a identidade de seus interesses não engendra nenhuma comunidade, nenhuma ligação de plano nacional e nenhuma organização política».[26] Eis por que as comoções exteriores, como a guerra, a revolução na cidade, etc., são necessárias à unificação do movimento das massas e mesmo assim elas estão sem condições de organizar por si mesmas esse movimento com palavras-de-ordem próprias e de dai-lhe uma direção positiva conforme os seus próprios interesses. Daí que dependerá da situação das outras classes em luta do nível de consciência dos partidos que as dirigem, no sentido progressista (Revolução Francesa de 1789, Revolução Russa de 1917) ou reacionário (Império Napoleônico) que estes movimentos tomarem. Eis por que a «consciência de classe» dos camponeses se reveste de uma forma ideológica de conteúdo mais mutável que a das outras classes. E de fato é sempre uma forma de empréstimo. Eis por que os partidos que se baseiam parcial ou inteiramente nessa «consciência de classe» jamais poderão ter uma atitude firme e segura (os socialistas-revolucionários russos em 1917-1918). Eis por que é possível conduzir as lutas camponesas sob bandeiras ideológicas opostas. Por exemplo, é bem característico, tanto para o anarquismo como teoria como para a «consciência de classe» dos camponeses, que alguns dos levantes contra-revolucionários de camponeses ricos e médios na Rússia tenham encontrado um vínculo ideológico com essa concepção da sociedade que tomaram como alvo. Assim, com relação a essas classes não se pode falar propriamente de consciência de classe (se é que se pode chamá-las de classes no rigoroso sentido marxista): uma plena consciência de sua situação conduzi-las-iam a descobrir a ausência de perspectiva de suas tentativas particularistas, em face da necessidade da evolução. Por conseguinte, consciência e interesse se encontram em relação recíproca de oposição contraditória. E como se tem definido a consciência de classe como um problema de adjudicação relacionado aos interesses de classe, torna-se também filosoficamente compreensível a impossibilidade de sua evolução na realidade histórica imediatamente dada.
Também no que se refere à burguesia, a consciência de classe e o interesse de classe se encontram em uma relação de oposição, de contrariedade. Mas essa contrariedade não é contraditória, é dialética.
Assim é que se pode expressar, com brevidade, a diferença entre essas duas aposições: enquanto para as outras classes sua situação no processo de produção e os interesses daí decorrentes impedem necessariamente o nascimento de toda consciência de classe, para a burguesia esses momentos levam ao desenvolvimento da consciência de classe, e unicamente esta vê pesar sobre si — desde o início e em razão de sua essência — a maldição trágica que a condena, alcançando o ápice da sua desevolução, entrando em contradição insolúvel com ela própria e, por conseguinte, suprimindo-se a si mesma. Essa situação trágica da burguesia se reflete historicamente no fato de que ela ainda não bateu o seu predecessor, o feudalismo, quando já apareceu o novo inimigo, o proletariado. A forma política desse fenômeno está em que a luta contra a divisão estamentária da sociedade foi conduzida em nome de uma «liberdade» que, no momento da vitória, se converteu numa nova opressão. A contradição se manifesta, sociologicamente, no que a burguesia está obrigada a pôr em ação, teórica e praticamente, para fazer desaparecer da consciência social o fato da luta de classes, apesar da sua forma social parecer, pela primeira vez, a luta de classes em estado puro, e fixado, também historicamente pela primeira vez, essa luta de classes como um fato. Do ponto de vista ideológico, vemos o mesmo desacordo, quando o desenvolvimento da burguesia, por um lado, confere uma importância inteiramente nova à individualidade, e, por outro lado, suprime, pelas condições econômicas desse individualismo e pela reificação criada pela produção mercantil, toda individualidade. Todas essas contradições — cuja série não está de todo esgotada por esses exemplos, mas, ao contrário, poderia ser seguida até o infinito — não são mais que um reflexo das profundas contradições do próprio capitalismo, tais como se refletem na consciência da classe burguesa, de conformidade com sua situação no conjunto do processo da produção. Eis por que essas contradições aparecem na consciência de classe da burguesia como contradições dialéticas e não meramente como pura e simples incapacidade de compreender as contradições de sua própria ordem social. Porque, de uma parte, o capitalismo é a primeira organização da produção que tende[27] a penetrar economicamente de um lado a outro da sociedade, de modo que a burguesia deveria, por conseguinte, estar habilitada a possuir, a partir desse ponto central, uma consciência (adjudicada) da totalidade do processo da produção. De outro lado, contudo, a posição que a classe dos capitalistas ocupa na produção, os interesses que determinam sua ação, fazem que seja, apesar de tudo, impossível dominar, mesmo teoricamente, sua própria organização da produção. Há nisso múltiplas razões. Em primeiro lugar, a produção não é, para o capitalismo, senão em aparência o ponto central da consciência de classe, o ponto de vista teórico da compreensão. Marx já ressaltava, a propósito de Ricardo, que este economista, a quem se acusa de só ter a vista voltada para a produção [28], define como objeto da economia exclusivamente a distribuição. E a análise minuciosa do processo concreto da realização do capital revela, para cada questão, que o interesse do capitalista deve necessariamente — visto que produz mercadorias e não bens — vincular-se a questões secundárias (do ponto de vista da produção); deve necessariamente — quando tomado no processo, para ele decisivo, da utilização — ter, no estudo dos fenômenos econômicos, uma perspectiva a partir da qual os fenômenos mais importantes podem tornar-se inapreensíveis.[29] A essa inadaptação acresce ainda o fato de que, nas relações interiores do próprio capital, o princípio individual e o princípio social — isto é, a função de capital como propriedade privada e sua função econômica objetiva — estão em insolúvel conflito. dialético. «O capital», diz o Manifesto Comunista, «não é uma força pessoal, é uma força social». Mas uma força social cujos movimentos são dirigidos pelos interesses individuais dos possuidores de capitais, que não possuem nenhuma visão de conjunto da função social e de sua atividade, e nem cuidam disso, de sorte que o princípio social, a função social do capital, só se cumpre por cima de suas cabeças, através de suas vontades, sem que eles próprios tenham consciência disso. Em razão desse conflito entre o princípio social e o princípio individual, é que Marx, com razão, já considerava as sociedades por ações como uma «supressão do modo de produção capitalista no próprio interior do modo de produção capitalista» . [30] Não obstante, considerado de um ponto de vista meramente econômico, o modo econômico da sociedade por ações, a este respeito, não se distingue a não ser acessoriamente da dos capitalistas individuais, do mesmo modo como a chamada supressão da anarquia da produção por parte dos cartéis, trustes, etc., só faz adiar o conflito sem suprimi-lo. De fato, essa situação é um dos mais decisivos momentos para a consciência de classe da burguesia: a burguesia, por certo, age como uma classe na evolução econômica objetiva da sociedade, mas ela não pode tornar-se consciente da evolução desse processo que ela própria realiza, a não ser como um mecanismo que lhe é exterior, submetido a leis objetivas e suportado por elas. O pensamento burguês considera sempre, e necessariamente, a vida econômica do ponto de vista do capitalismo individual, e daí resulta automaticamente [30a] essa oposição aguda entre o indivíduo e a todo-poderosa e impessoal «lei da natureza», que põe em movimento toda a sociedade. Daí decorre não só a rivalidade entre interesse de classe e interesse individual em caso de conflito (que, para dizer a verdade, raramente chega a ser, entre as classes dominantes, tão violento como entre a burguesia), mas a incapacidade elementar de assenhorear-se teórica e praticamente dos problemas que surgem necessariamente do desenvolvimento da produção capitalista. «Essa transformação repentina do sistema de crédito em sistema monetário converte o pavor teórico em um pânico prático, e os agentes da circulação tremem diante do mistério impenetrável de suas próprias relações», diz Marx.[31]
E esse pavor não carece de fundamento, é mais que um simples desespero do capitalista individual diante do seu destino pessoal. Os fatos e as situações que provocam esse pavor fazem, de fato, penetrar na consciência da burguesia qualquer coisa que ela absolutamente não está em condição de tornar consciente, embora não possa nem totalmente negá-la nem enxotá-la como um fato bruto. «Porque o fundamento conhecível de tais fatos e de tais situações é que o verdadeiro limite da produção capitalista é o próprio capital». [32] Para falar a verdade, esse conhecimento, se viesse a ser consciente, significaria que a classe dos capitalistas se suprimiria a si própria.
Assim os limites objetivos da produção capitalista vêm a ser os limites da consciência de classe da burguesia. Mas como — em oposição às antigas formas de dominação «naturais e conservadoras», que deixavam intactas as formas de produção de largas camadas entre os oprimidos[33] e que, por conseguinte, tinham uma influência sobretudo tradicional e não revolucionária — o capitalismo é uma forma de produção revolucionante por excelência — essa necessidade de permanecer inconsciente devido aos limites econômicos objetivos do sistema se manifesta como uma contradição interna e dialética na consciência de classe . Por outras palavras, a consciência de classe da burguesia é dirigida formalmente para uma tomada de consciência econômica. O grau supremo da inconsciência, a forma mais gritante da «falsa consciência», se expressa sempre na ilusão cada vez maior de que os fenômenos econômicos são conscientemente dominados. Essa contradição se expressa, do ponto de vista das relações entre a consciência e o conjunto das relações sociais, na oposição insuperável entre a ideologia e a situação econômica fundamental. A dialética dessa consciência de classe repousa na oposição insuperável entre o indivíduo (capitalista), o indivíduo segundo o esquema do capitalismo individual, e a evolução submetida às «leis naturais» necessárias, isto é, que escapam; por princípio, à consciência. Ela cria assim uma oposição inconciliável entre a teoria e a praxis, de maneira que não permite nenhuma dualidade estável e, ao contrário, tende constantemente a unificar os dois princípios discordantes, provocando de novo, incessantemente, uma oscilação entre uma «falsa» reunião e um dilaceramento catastrófico.
Essa contradição dialética interna na consciência de classe da burguesia é acrescida ainda do fato de que o limite objetivo da organização capitalista da produção não permanece no estado de mera negatividade, nem faz unicamente nascer, consoante as «leis naturais», crises incompreensíveis à consciência, mas se reveste de uma forma histórica própria, consciente e atuante: o proletariado. Já a maior parte dos deslocamentos «normais» de perspectiva na visão da estrutura econômica da sociedade, que resultaram do ponto de vista dos capitalistas, tendiam a «obscurecer e mistificar a verdadeira origem da mais-valia». [34] Mas, enquanto no comportamento «normal» meramente teórico esse obscurecimento só se relaciona com a composição orgânica do capital, com a posição do empresário no processo da produção, com a função econômica da taxa de juro, etc., isto é, revela simplesmente a incapacidade de perceber, por trás dos fenômenos superficiais, as verdadeiras forças motrizes, desde que há passagem à prática ele passa a se referir ao fato central da sociedade capitalista: à luta de classes. Pois, na luta de classes, todas essas formas — habitualmente ocultas por trás da vida econômica de superfície, que exerce como que uma fascinação sobre os capitalistas e seus porta-vozes teóricos — se manifestam de tal modo que é impossível não as perceber. Foi em tal ponto, na fase ascendente do capitalismo, quando a luta de classes do proletariado só se expressava sob a forma de violentas explosões espontâneas que o fato da luta de classes foi reconhecido pelos próprios representantes ideológicos da classe ascendente como o fato fundamental da vida histórica (Marat e os historiadores posteriores como Mignet, etc.). Contudo, na medida em que esse princípio inconscientemente revolucionário da evolução capitalista se elevou, pela teoria e pela praxis do proletariado, à consciência social, a burguesia refugiou-se ideologicamente na defensiva consciente. A contradição dialética na «falsa» consciência da burguesia adquire mais acuidade; a «falsa» consciência se converte na falsidade da consciência. A contradição, que no começo só estava objetivamente presente, tornou-se também subjetiva: o problema teórico se transforma em comportamento moral que passa a influir de maneira decisiva sobre todas as tomadas de posição práticas da classe, no que tange a todas as situações e a todas as questões vitais.
Essa situação da burguesia determina a função da consciência de classe na sua luta pela dominação da sociedade. Como a dominação da burguesia se estende realmente a toda a sociedade, como visa efetivamente organizar toda a sociedade de conformidade com os seus interesses, e, em parte, teve êxito, ela deveria criar necessariamente tanto uma doutrina formando um todo da economia do Estado, da sociedade, etc. (o que pressupõe e implica já, em e por si, uma «visão do mundo») como desenvolver e tornar consciente nela a crença de sua própria vocação à dominação. O caráter dialético e trágico da situação de classe da burguesia reside em que não somente é do seu interesse, mas que lhe é inelutavelmente necessário adquirir, sobre cada questão particular, uma consciência tão clara quanto possível de seus interesses de classe, mas que isso lhe advém fatal se essa consciência clara se estende à questão que leva à totalidade. A razão disso está, antes de tudo, em que a dominação da burguesia não passa da dominação de uma minoria. Como essa dominação não é somente exercida por uma minoria, mas no interesse de uma minoria, uma condição inelutável da manutenção do regime burguês é que as outras classes se iludam, permanecendo com uma consciência de classe confusa. (Que se pense na doutrina do Estado como estando «acima» das oposições de classes, na justiça «imparcial», etc.) Contudo, é uma necessidade vital para a burguesia mascarar a essência da sociedade burguesa. Porque, quanto mais clara a visão se torna, e quanto mais as contradições internas insolúveis dessa organização se mostram em sua nudez, tanto mais os seus seguidores se colocam diante da seguinte opção: ou firmar-se conscientemente nessa compreensão crescente ou reprimir em si próprios todos os instintos morais para poder aprovar, inclusive moralmente, a ordem social que eles aprovam em virtude dos seus interesses.
Sem querer superestimar a eficácia de tais fatores ideológicos, deve-se, contudo, constatar que a combatividade de uma classe é tanto maior quanto melhor consciência tenha, acreditando em sua própria vocação, de que um instinto mais indômito lhe permite penetrar todos os fenômenos, de conformidade com os seus interesses. Pois a história ideológica da burguesia não é mais, desde as primeiras etapas de sua evolução — pensamos na crítica da Economia clássica de Sismondi, na crítica alemã do direito natural, no jovem CarIyle, etc. — do que uma luta desesperada para não ver a verdadeira essência da sociedade criada por ela, para não tomar realmente consciência de sua situação de classe. Quando o Manifesto Comunista ressalta que a burguesia produz seus próprios coveiros, isso é justo não somente no plano econômico como também no plano ideológico. Toda a ciência burguesa do século XIX fez os maiores esforços no sentido de mascarar os fundamentos da sociedade burguesa. Tudo foi tentado nessa direção, desde as piores falsificações dos fatos até as «sublimes» teorias sobre a «essência» da história, do Estado, etc. Tudo em vão. O fim do século já trouxe seu julgamento na ciência mais avançada (e, por conseguinte, na consciência das camadas dirigentes do capitalismo).
Isso se manifesta com clareza na acolhida cada vez mais positiva que a idéia de organização consciente recebe na Consciência da burguesia. Inicialmente, uma concentração sempre maior se operou nas sociedades por ações, nos cartéis, nos trustes, etc. Essa concentração colocou a nu no plano organizacional, e de maneira cada vez mais clara, o caráter Social do capital, sem, contudo, abalar a realidade da anarquia da produção, mas, ao contrário, dando unicamente aos Capitalistas individuais, que se tornaram gigantescos, posições de monopólio relativo. Objetivamente ela tem valorizado, de modo bastante enérgico, o caráter social do capital, mas deixou completamente inconsciente para a classe dos capitalistas; ela tem mesmo, por essa aparência de supressão da anarquia da produção, desviado ainda mais a sua consciência de uma verdadeira atitude de reconhecimento da situação. As crises da guerra e do pós-guerra levaram ainda mais longe essa evolução: «a economia planificada» entrou na consciência da burguesia, pelo menos na dos seus elementos mais avançados. De início, evidentemente, nas camadas mais restritas, e assim mesmo mais como uma experiência histórica do que como um meio prático de sair do impasse da crise. Se, contudo, comparamos esse estado de consciência, no qual se procura um equilíbrio entre a «economia planificada» e os interesses de classe da burguesia, com o estado de consciência do capitalismo ascendente, que considerava todas as formas de organização social «como um atentado aos imprescindíveis direitos de propriedade, à liberdade, à 'genialidade' que determinam o capitalismo individual» [35] então salta aos olhos a capitulação da consciência de classe da burguesia diante da do proletariado. Ou seja: mesmo a parte da burguesia que aceita a economia planificada tem desta uma compreensão que não é a do proletariado: ela a entende, precisamente, como a última tentativa de salvação do capitalismo, levando a contradição interna ao seu ponto mais agudo. E mesmo assim ela abandona sua derradeira posição teórica. (E uma estranha réplica a este abandono, por parte de certas frações do proletariado, consiste em capitular por sua vez diante da burguesia nesse instante preciso em que ela se apropria dessa forma problemática de organização.) Assim é que toda a existência da classe burguesa e de sua expressão, a cultura, entrou em uma gravíssima crise. De um lado, a esterilidade sem limite de uma ideologia separada da vida, de uma tentativa mais ou menos consciente de falsificação; de outro, o deserto pavoroso de um cinismo que historicamente já se convenceu do nada interior de sua própria existência, e tão-somente defende sua existência bruta, seu interesse egoísta em estado bruto. Essa crise ideológica é um sinal iniludível de decadência. A classe já se encontra acuada na defensiva, e não luta mais a não ser unicamente pela sua existência (tão agressivos quanto possam ser seus meios de luta). Perdeu irremediavelmente a força de direção.
IV
Nesse combate pela consciência, um papel decisivo cabe ao materialismo histórico. Quer no plano ideológico, quer no plano econômico, proletariado e burguesia são classes necessariamente correlativas. O mesmo processo que, visto do lado da burguesia, aparece como um processo de desagregação, como uma crise permanente, é para o proletariado — e igualmente sob forma de crise — uma acumulação de forças, o trampolim para a vitória. No plano ideológico, isso significa que essa mesma compreensão crescente da essência da sociedade — onde se reflete a lenta agonia da burguesia traz ao proletariado um contínuo crescimento de força. A verdade é, para o proletariado, uma arma condutora da vitória, e a conduz de maneira tanto mais segura se não recua diante de nada. A fúria desesperada com que a ciência burguesa combate o materialismo histórico é compreensível: ela está perdida desde que seja obrigada a colocar-se ideologicamente neste terreno. Isso permite, ao mesmo tempo, compreender por que, para o proletariado e somente para ele, uma justa compreensão da essência da sociedade é um fator de domínio de primeira ordem, porque, sem dúvida, é a arma pura e simplesmente decisiva.
Essa função única que a consciência tem na luta de classes do proletariado escapou sempre aos marxistas vulgares, que puseram em marcha um mesquinho «realismo político», em lugar do grande combate conducente aos princípios e às questões últimas do processo econômico objetivo. Sem dúvida, o proletariado deve partir dos dados da situação do momento. E se distingue das outras classes por não permanecer preso ao detalhe dos acontecimentos históricos, que simplesmente não está amadurecido por eles, mas que ele próprio constitui a essência das forças motrizes e que, agindo de modo central, influi no processo central da evolução social. Desgarrando-se desse ponto de vista central, do que é, metodologicamente, a origem da consciência de classe proletária, os marxistas vulgares se colocam no nível de consciência da burguesia. E só um marxista vulgar pode-se surpreender de que nesse nível, e em seu próprio campo de combate, a burguesia seja por força, tanto ideológica como economicamente, superior ao proletariado. Unicamente um marxista vulgar pode concluir desse fato que sua atitude é exclusivamente responsável pela superioridade em geral da burguesia. Porque ocorre que, aqui, a burguesia tem, ao se fazer agora abstração dos seus meios reais de poder, maiores conhecimentos, uma maior rotina, etc., à sua disposição. E nada há de surpreendente que ela se encontre, sem nenhum mérito próprio, em uma posição de superioridade, se o seu adversário aceita sua concepção fundamental das coisas. A superioridade do proletariado sobre a burguesia — que por outro lado lhe é superior em todos os pontos de vista: intelectual, organizacional, etc. — está exclusivamente no fato de ser capaz de considerar a sociedade, a partir do seu centro, como um todo coerente, e, por conseguinte, de agir de maneira central, modificando a realidade; está em que pode jogar sua própria ação como fator decisivo à balança da evolução social, porque, para a sua consciência de classe, teoria e praxis são coincidentes. Quando os marxistas vulgares desagregam essa unidade, cortam o nervo que liga a teoria proletária à ação proletária e que faz delas uma unidade. Reduzem a teoria ao tratamento «científico» dos sintomas da evolução social e fazem da práxis um procedimento habitual sem objetivo, ao capricho de cada acontecimento de um processo que eles renunciam apreender metodicamente pelo pensamento,
A consciência de classe nascida de tal posição deve manifestar a mesma estrutura interna da consciência de classe da burguesia. Mas quando as mesmas contradições dialéticas são trazidas à superfície da consciência pela força da evolução, a sua conseqüência e ainda mais fatal para o proletariado do que para a burguesia. Porque a «falsa consciência» da burguesia, pela qual se engana a si própria, está, pelo menos, de acordo, apesar de todas as contradições dialéticas e de sua falsidade objetiva, com sua situação de classe. Essa falsa consciência, por certo, não pode salvá-la do declínio e da intensificação contínua dessas contradições, mas lhe pode dar, contudo, possibilidades internas de continuar a luta, as condições internas prévias ao êxito, mesmo passageiro. No proletariado, tal consciência não está somente contaminada dessas contradições internas (burguesas), mas ela contradiz também as necessidades de ação à que a leva sua situação econômica, embora possa nela pensar. O proletariado deve agir de maneira proletária, mas sua própria teoria marxista vulgar lhe oculta o caminho correto. E essa contradição dialética entre a ação proletária objetiva e economicamente necessária do proletariado e a teoria marxista vulgar (burguesa) está chamada a desenvolver-se sem cessar. Por outras palavras: o papel de estimulante ou de freio da teoria justa ou falsa se desenvolve na medida em que se aproxima das lutas decisivas na guerra das classes. O «reino da liberdade», o fim da «pré-história da humanidade», significam exatamente que as relações objetivadas entre os homens, como a reificação, começam a repor sua força nas mãos do homem. Quanto mais este processo se aproxima de seu alvo, quanto mais a consciência que o proletariado tem da sua missão histórica, isto é, a sua consciência de classe — adquire importância, tanto mais essa consciência de classe deve determinar com força cada uma de suas ações. Porque o poder cego das forças motrizes não leva «automaticamente» a seu objetivo, à superação de si, a não ser durante o tempo em que este alvo não esteja ao alcance da mão. Quando está dado objetivamente o momento da passagem ao «reino da liberdade», isso se manifesta exatamente no plano objetivo, no fato de as forças cegas arrastarem ao abismo, de maneira verdadeiramente cega, com uma violência cada vez maior, aparentemente irresistível, e que só a vontade consciente do proletariado pode preservar a humanidade de uma catástrofe. Por outras palavras: quando a crise econômica final do capitalismo começou, o destino da revolução (e com ela o da humanidade) passou a depender da maturidade ideológica do proletariado, de sua consciência de classe.
Assim é definida a função única da consciência de classe para o proletariado, em oposição à sua função para outras classes. Eis por que o proletariado não se pode libertar como classe a não ser suprimindo a sociedade de classes em geral, que sua consciência, a última consciência de classe na história da humanidade, deve coincidir de um lado com a revelação da essência da sociedade e, de outro, tornar-se uma unidade sempre mais íntima da teoria e da praxis. Para o proletariado, sua ideologia não é uma «bandeira» sob a qual ele combate, um pretexto à sombra do qual persegue seus próprios objetivos. Ela é o próprio alvo e a própria arma. Toda tática sem princípios rebaixa o materialismo histórico até fazê-lo uma mera «ideologia», força o proletariado a um método de luta burguesa (ou pequeno-burguesa), priva-o de suas melhores forças, destinando à sua consciência de classe o papel de uma consciência burguesa, mero papel de acompanhamento ou de freio (de freio para o proletariado), em lugar da função motriz destinada à consciência proletária.
V
Tão simples é, contudo, para o proletariado, a relação entre a consciência de classe e a situação de classe, em razão da essência das coisas, quanto são grandes os obstáculos que se opõem à realização dessa consciência na realidade. Aqui, de início, tudo entra na linha de conta da falta de unidade na própria consciência. De fato, embora a sociedade represente em si uma unidade vigorosa e que seu processo de solução seja igualmente um processo unitário, ambos não são dados como unidade à consciência do homem, em particular do homem nascido no seio da reificação capitalista das relações como em um meio natural. Ao contrário, são dados como uma multiplicidade de coisas e de forças independentes umas das outras.
A fissura mais frisante e mais carregada de conseqüências, na consciência de classe do proletariado, se revela na separação entre a luta econômica e a luta política. Muitas vezes Marx indicou que essa separação não tem base [36] e mostrou como está na essência de toda luta econômica transformar-se em luta política (e inversamente), e, no entanto, tem sido impossível eliminar essa concepção da teoria do proletariado. Esse desvio da consciência de classe tem seu fundamento na dualidade dialética do objetivo parcial e do objetivo final, e pois, em último lugar, na dualidade dialética da revolução proletária.
Porque as classes que, nas sociedades anteriores, estavam chamadas à dominação e, por conseguinte, eram capazes de realizar as revoluções vitoriosas, se encontravam subjetivamente diante de uma tarefa mais fácil, justamente por causa da inadequação de sua consciência de classe à estrutura econômica objetiva, em razão, pois, da inconsciência de sua própria função no processo de evolução. Cabia-lhe somente impor a satisfação dos seus interesses imediatos com a violência de que dispunham; e o sentido social de suas ações lhes restava oculto e era confiado à «manha da razão» do processo de evolução. Mas como a história colocou o proletariado diante da tarefa de uma transformação consciente da sociedade, era necessário que surgisse na sua consciência de classe a contradição dialética entre o interesse imediato e o objetivo final, entre o momento isolado e a totalidade. Porque o momento isolado no processo e a situação concreta com suas exigências concretas são, em razão de sua essência, imanentes à sociedade capitalista atual e submetidas a suas leis, à sua estrutura econômica. Somente em se incorporando à visão de conjunto do processo, em se vinculando ao objetivo final que eles colocam concreta e conscientemente para além da sociedade capitalista, é que eles se tornam revolucionários. Subjetivamente isso significa, para a consciência de classe do proletariado, que a dialética entre o interesse imediato e a influência objetiva sobre a totalidade da sociedade é transferida na própria consciência do proletariado, em lugar de ser — como para todas as classes anteriores — um processo puramente objetivo, que se desenrola fora da consciência (adjudicada). A vitória revolucionária do proletariado não é, pois, como o era para as classes anteriores, a realização imediata do ser socialmente dado da classe. E, como já tinha reconhecido e assinalado com nitidez o jovem Marx, sua superação de si.
O Manifesto Comunista assim formula essa diferença: «Todas as classes anteriores que conquistaram o poder buscavam assegurar a situação que elas já tinham adquirido, submetendo toda sociedade às condições de sua aquisição. Os proletários só podem apropriar-se das forças produtivas sociais suprimindo o modo de apropriação que até aqui era o seu, e, por conseguinte, todo o antigo modo de apropriação» (grifado por G. L.). Essa dialética interna da situação de classe torna mais difícil o desenvolvimento da consciência de classe proletária, em oposição à burguesia que podia, desenvolvendo sua consciência de classe, permanecer à superfície dos fenômenos, no nível do mais grosseiro e do mais abstrato empirismo, enquanto para o proletariado era um imperativo elementar de sua luta de classes ir além do dado imediato. (E que Marx já assinala nas suas notas sobre o levante dos tecelões silesianos). [37]
Porque a situação de classe do proletariado introduz a contradição diretamente na consciência do proletariado, enquanto as contradições nascidas da situação de classe da burguesia aparecem necessariamente como os limites externos de sua consciência. Essa contradição significa que a «falsa» consciência tem, no desenvolvimento do proletariado, uma função inteiramente diferente que nas demais classes anteriores. De fato, enquanto as constatações correlatas de fatos parciais ou de momentos do desenvolvimento na consciência de classe da burguesia revelavam, por sua relação com a totalidade da sociedade, os limites da consciência, se desmascaravam como «falsa» consciência, há, mesmo na «falsa» consciência do proletariado, mesmo nos seus erros de fato, uma intenção dirigida axialmente para a verdade. É bastante ir à crítica social dos utopistas ou aos acréscimos apostos por proletários e revolucionários à teoria de Ricardo. A propósito desta última, Engels demonstrou com vigor que ela é «econômica e formalmente falsa», para logo acrescentar: «Mas o que é falso de um ponto de vista econômico e formal pode não ser menos justo do ponto de vista da história universal... A inexatidão econômica formal pode encobrir um conteúdo econômico verdadeiro» [38]. É assim que a contradição na consciência de classe do proletariado se torna solúvel, tornando-se, ao mesmo tempo, um fator consciente da história. Porque a intenção objetivamente dirigida axialmente para a verdade, e que é inerente mesmo à «falsa» consciência do proletariado, não implica absolutamente que ela possa vir dela própria para a luz, sem a intervenção do proletariado. Ao contrário: somente intensificando seu caráter consciente, agindo conscientemente e exercendo uma autocrítica consciente, é que o proletariado transformará a intenção dirigida axialmente para a verdade, despojando-a de suas falsas máscaras, em uma consciência verdadeiramente correta e de porte histórico, que subverterá a sociedade: ela seria evidentemente impossível, se não tivesse em seu fundamento essa intenção objetiva, e aqui é que se verifica a afirmação de Marx segundo a qual «a humanidade não se propõe tarefa que não possa resolver» . [39] O que é dado aqui é somente a possibilidade. A solução, ela mesma, não pode ser mais do que o fruto da ação consciente do proletariado. Essa mesma estrutura da consciência, na qual repousa a missão histórica do proletariado, que o faz ir além da sociedade existente, produz nele a dualidade dialética. O que aparecia nas outras classes como oposição entre interesse de classe e interesse da sociedade, entre a ação individual e suas conseqüências sociais, etc., como limite externo da consciência, e agora transferido, como oposição entre o interesse momentâneo e objetivo final, do interior da consciência de classe proletária. Isso significa, por conseguinte, que essa dualidade dialética é superada interiormente e que a vitória exterior do proletariado na luta das classes veio a ser possível.
Contudo, essa cisão [40] oferece precisamente um meio de compreender que a consciência de classe não é a consciência psicológica de proletários individuais ou a consciência psicológica (de massa) do seu conjunto — como fazia crer a citação posta em exergo — mas o sentido tornado consciente, da situação histórica da classe. O interesse individual momentâneo, no qual esse sentido se objetiva alternadamente e por cima do qual não se pode passar sem retornar a luta de classes do proletariado ao estado mais primitivo do utopismo, pode de fato ter uma dupla função: a de ser um passo na direção do alvo e a de ocultar o alvo. Depende exclusivamente da consciência de classe do proletariado; e não da vitória ou do impasse nas lutas particulares, que seja uma ou outra coisa. Esse perigo, que encobre particularmente a luta sindical «econômica», Marx já o percebera anteriormente e com nitidez. «Ao mesmo tempo os trabalhadores não devem superestimar para si próprios o resultado final dessas lutas. Não devem esquecer que lutam contra os efeitos e não contra as causas desses efeitos... que recorrem a paliativos e não curam a própria doença. Também não deveriam despender toda a sua atividade exclusivamente nestas inevitáveis lutas de guerrilha..., mas ao mesmo tempo trabalhar para a transformação radical e utilizar sua força organizada como uma alavanca para a emancipação definitiva do salário». [40a]
A origem de todo oportunismo está em partir dos efeitos e não das causas, das partes e não do todo, dos sintomas e não da coisa; está em ver no interesse particular e na sua satisfação não um meio de educação tendo em vista a luta final, cuja saída depende da medida em que a consciência psicológica se aproxime da consciência adjudicada, mas algo de precioso em si ou, pelo menos, algo que, por si próprio, se aproximaria do alvo. Em uma palavra, está em confundir o estado efetivo de consciência psicológica dos proletários com a consciência de classe do proletariado .
Freqüentemente se vê o que tem de catastrófico, na prática, tal confusão, quando, na seqüência dessa confusão, o proletariado apresenta uma unidade e uma coesão bem menores, em sua ação, do que as que corresponderiam à unidade das tendências econômicas objetivas. A força e a superioridade da verdadeira consciência prática de classe residem exatamente na capacidade de perceber, por trás dos sintomas dissociadores do processo econômico, sua unidade como evolução do conjunto da sociedade. Contudo, tal unidade de movimento não pode ainda, na época do capitalismo, revelar uma unidade imediata, nas formas exteriores de aparição. O fundamento econômico de uma crise mundial, por exemplo, forma seguramente uma unidade e, como tal, pode ser percebido como uma unidade econômica. Sua forma de aparição no espaço e no tempo será, contudo, uma sucessão e uma justaposição de fenômenos separados não somente nos diferentes países como também nos diferentes ramos da produção de cada país. Pois, quando o pensamento burguês «muda as diferentes partes da sociedade enquanto sociedade à parte» , [41] comete, decerto, um pesado erro teórico, mas as conseqüências práticas dessa teoria errônea correspondem inteiramente aos interesses capitalistas de classe. A classe burguesa é, certamente, incapaz, no plano teórico geral, de elevar-se acima da compreensão dos detalhes e dos sintomas do processo econômico (incapacidade que, no final das contas , a condena ao impasse também no plano prático). Todavia, importa-lhe grandemente, na atividade prática imediata da vida quotidiana, que essa maneira de agir que lhe é própria se imponha também ao proletariado. Nesse caso, de fato, e somente nesse caso, é que a superioridade organizacional, etc., da burguesa pode expressar-se com clareza, enquanto a organização toda diferente do proletariado, sua atitude a organizar-se enquanto classe, não se pode impor praticamente. Pois, quanto mais progride a crise econômica do capitalismo, tanto mais essa unidade de processo econômico pode ser claramente apreendida na própria prática.
Ela, decerto, também estava presente nas épocas ditas normais, e pois perceptível do ponto de vista de classe do proletariado, mas a distância entre a forma de aparição e o fundamento último era, contudo, muito grande para poder conduzir a conseqüências práticas na ação do proletariado. Esta muda nas épocas decisivas de crises. A unidade do processo total passou ao primeiro plano. A tal ponto que mesmo a teoria do capitalismo não pode abster-se disso inteiramente, embora jamais possa apreender adequadamente essa unidade. Nessa situação, o destino do proletariado e, com ele, o de toda a evolução humana depende unicamente desse passo, tornado desde logo objetivamente possível, que se fará ou não se fará. Porque mesmo que os sintomas da crise se manifestem separadamente (segundo os países, os ramos da produção, como crises econômicas , ou políticas, etc.), mesmo se o reflexo que aí corresponde na consciência psicológica imediata dos trabalhadores tem também um caráter isolado, a possibilidade e a necessidade de superar essa consciência já existem agora; e essa necessidade é sentida instintivamente pelas camadas cada vez mais amplas do proletariado. A teoria do oportunismo que não desempenhou, aparentemente, até à crise aguda, a não ser um papel de freio à evolução objetiva, toma agora uma orientação diretamente oposta à evolução. Visa impedir que a consciência de classe do proletariado continue a evoluir para se transformar, de simples dado psicológico, em adequação ao conjunto da evolução. objetiva; visa levar a consciência de classe do proletariado ao nível de um dado psicológico e dar assim ao progresso até aqui instintivo dessa consciência de classe uma orientação oposta.
Essa teoria que se poderia considerar, com certa indulgência, ainda como um erro, durante o tempo em que a possibilidade prática de unificação da consciência de classe proletária não era dada no plano econômico objetivo, se reveste nessa situação de uma caráter de embuste consciente (estejam ou não seus porta-vozes psicologicamente conscientes disso). Preenche, frente a frente aos instintos corretos do proletariado, a função que sempre exerceu a teoria capitalista: denuncia a concepção correta da situação econômica global, da consciência de classe correta do proletariado e de sua forma organizacional, o partido comunista, como qualquer coisa de irreal, como um princípio contrário aos «verdadeiros» interesses dos operários (interesses imediatos, interesses nacionais ou profissionais tomados isoladamente), estranho à sua «autêntica» (dada psicologicamente) consciência de classe.
Entretanto, a consciência de classe ainda que não tendo realidade psicológica não é mera ficção. O caminho infinitamente penoso, pontilhado de numerosas recaídas, que a revolução proletária segue, seu eterno retorno ao ponto de partida, sua contínua autocrítica, de que fala Marx no Dezoito Brumário, encontram sua explicação na realidade dessa consciência.
Somente a consciência do proletariado pode mostrar como sair da crise do capitalismo. Enquanto essa consciência não existe, a crise mantém-se permanente, retorna ao seu ponto de partida, repete a situação, até que, enfim, após infinitos sofrimentos e terríveis desvios, a lição de coisas da história remata o processo de consciência no proletariado e repõe nas suas mãos a direção da história. Aqui o proletariado não tem escolha. E necessário, como diz Marx,[42] que se torne uma classe não somente «frente a frente ao capital» como também «para si própria». Isto é, que eleve a necessidade econômica de sua luta de classes ao nível de uma vontade consciente de uma consciência de classe atuante. Os pacifistas e os humanitaristas da luta das classes que, voluntária ou involuntariamente, trabalhem para amortecer esse processo por si mesmo já tão longo, tão doloroso e sujeito a tantas crises, ficariam horrorizados se compreendessem quantos sofrimentos impõem ao proletariado, ao prolongar essa lição de coisas. Porque o proletariado não pode furtar-se à sua vocação. Trata-se somente de saber o quanto deve ainda sofrer antes de alcançar a maturidade ideológica, o conhecimento correto de sua situação de classe, a consciência de classe. Para dizer a verdade, essas hesitações, essas incertezas, são um sintoma de crise da sociedade burguesa. O proletariado, enquanto produto do capitalismo, está necessariamente sujeito às formas de existência de seu produtor. Essas formas de existência são a inumanidade e a reificação. O proletariado, unicamente por sua existência, é a crítica, a negação dessas formas de existência. Mas até que a crise do capitalismo chegue ao seu termo, até que o próprio proletariado consiga revelar completamente essa crise, tendo atingido a verdadeira consciência de classe, ele é a simples crítica da reificação e, enquanto tal, não se eleva, senão negativamente, por cima do que nega.
Quando a critica não supera a simples negação de uma parte, quando, pelo menos, não tende para a totalidade, nesse caso ela não pode superar o que nega, como mostra, por exemplo, o caráter pequeno-burguês da maior parte dos sindicalistas. Essa simples crítica, essa critica feita do ponto de vista do capitalismo, se manifesta de maneira mais frisante na separação dos diferentes setores da luta. O simples fato de fazer essa separação já indica que a consciência do proletariado sofre, ainda que provisoriamente, a reificação. Embora seja evidentemente mais fácil apreender o caráter inumano de sua situação de classe no plano econômico do que no político, no plano político do que no cultural, todas essas separações estanques demonstram a força ainda não superada dos modos capitalistas de vida sobre o proletariado.
A consciência reificada permanece necessariamente prisioneira, na mesma medida e de feitio também desesperado, nos extremos do empirismo grosseiro e do utopismo abstrato. Ou melhor, ela se torna a espectadora inteiramente passiva do movimento das coisas sujeitas às leis e nas quais não se pode, em nenhum caso, intervir. Ou melhor, ela se considera como uma força que pode dominar a seu bel-prazer — subjetivamente — o movimento das coisas, em si despojado de sentido. Já reconhecemos o empirismo grosseiro dos oportunistas nas suas relações com a consciência de classe do proletariado. Trata-se agora de compreender a função do utopismo como sinal essencial da gradação interna da consciência de classe. (A separação meramente metodológica operada aqui entre empirismo e utopismo não significa que eles não possam encontrar-se reunidos em algumas orientações particulares ou mesmo em certos indivíduos. Ao contrário, freqüentemente são encontrados em conjunto e continuam também intrinsecamente em conjunto.)
As pesquisas filosóficas do jovem Marx visavam, em grande parte, refutar as diversas teorias errôneas da consciência (tanto a teoria «idealista» da escola hegeliana como a «materialista» de Feuerbach) e alcançar uma concepção correta do papel da consciência na história. A correspondência de 1843 já concebe a consciência como imanente à evolução. A consciência não está além da evolução histórica real. Não é o filósofo quem a introduz no mundo. O filósofo não tem o direito de lançar um olhar arrogante sobre as pequenas lutas do mundo e de desprezá-las. «Mostramo-lhe simplesmente (ao mundo) porque, na realidade, ele luta, e a consciência disso é alguma coisa que se vê obrigado a adquirir, mesmo não a querendo». Trata-se somente de «explicar-lhe suas próprias ações» .[43] A grande polêmica com Hegel,[44] na Sagrada Família, se concentra, principalmente, nesse ponto. O que há de incompleto em Hegel é que nele o espírito absoluto só aparentemente faz história e a transcendência da consciência que daí resulta converte-se, nos discípulos de Hegel, em uma oposição arrogante, e reacionária, entre o «espírito» e a «massa», oposição cujas insuficiências, absurdos e recaídas a um nível superado por Hegel são impiedosamente criticados por Marx. A crítica, sob a forma de aforismo, de Feuerbach, é-lhe o complemento. Aqui, por seu turno, a imanência da consciência atingida pelo materialismo é reconhecida como uma simples etapa da evolução, como a etapa da «sociedade burguesa», sendo-lhe opostas «a atividade crítica prática» e «a transformação do mundo». Estava, assim, lançado o fundamento filosófico que permite um ajuste de contas com os utopistas. Porque aparece, na sua maneira de pensar, a mesma dualidade entre o movimento social e a consciência desse movimento. A consciência sai de um além e se aproxima da sociedade para retirá-la do mau caminho seguido até então e levá-la ao bom. O movimento proletário ainda não desenvolvido não lhes permite distinguir na história, na maneira como o proletariado se organiza em classes portanto, na consciência de classe do proletariado — o portador da evolução. Não estão ainda em condições de «perceber o que se passa diante dos seus olhos e de vir a ser a sua voz» .[45]
Seria ilusório acreditar que, apesar dessa crítica do utopismo, apesar do reconhecimento histórico de que um comportamento não-utópico frente â evolução histórica se tornou objetivamente possível, o utopismo esteja efetivamente liquidado para a luta emancipadora do proletariado. Somente para as etapas da consciência de classe é que se realizou a unidade real, descrita por Marx, da teoria e da prática, a intervenção prática real da consciência de classe na marcha da história e, por aí, a revelação prática da reificação. Pois, isso não se realizou de maneira unitária e de um só golpe. Aqui aparecem não somente as gradações nacionais ou «sociais», como também as gradações na consciência de classe das próprias camadas operárias. Daí que a separação do econômico e do político seja o caso mais típico e, ao mesmo tempo, o mais importante. Há camadas do proletariado que têm um instinto de classe inteiramente correto para a sua luta econômica, que podem ascender à consciência de classe e que, não obstante, permanecem, ao mesmo tempo, no que diz respeito ao Estado, em um ponto de vista perfeitamente utópico. Acresce que isso não implica uma dicotomia mecânica. A concepção utópica que se faz da política deve necessariamente reagir de modo dialético nas concepções que se tem do conjunto da economia (por exemplo, na teoria anarco-sindicalista da revolução). Porque são impossíveis, sem um conhecimento real da interação entre a política e a economia, a luta contra o conjunto do sistema econômico e, além disso, uma reorganização radical do conjunto da economia.
O pensamento utopista está longe de ter sido superado, mesmo nesse nível, que é o mais próximo dos interesses vitais imediatos do proletariado e onde a crise atual permite decifrar a ação correta a partir da marcha da história. Vê-se bem a influência exercida ainda hoje pelas teorias tão completamente utopistas como a de Ballod ou do socialismo da Guilda. Essa estrutura se evidencia necessariamente de uma maneira ainda mais gritante em todos os domínios onde a evolução social ainda não progrediu o bastante para produzir, a partir dela própria, a possibilidade objetiva de uma visão da totalidade.
É ali na atitude teórica e prática do proletariado frente a frente com as questões puramente ideológicas, com as questões de cultura, onde se pode vê-lo mais claramente. Essas questões ocupam, ainda hoje, uma posição quase isolada na consciência do proletariado; e sua ligação orgânica, tanto com os interesses vitais imediatos como com a totalidade da sociedade, não penetrou ainda na consciência. Eis por que os resultados nesse domínio raramente se elevam acima de uma autocrítica do capitalismo, realizada pelo proletariado. Nesse domínio, o que há de positivo, prática ou teoricamente, tem um caráter quase inteiramente utópico.
De uma parte, pois, essas gradações são necessidades históricas objetivas, diferenças na possibilidade objetiva da passagem à consciência (da ligação entre a política e a economia em comparação com o «isolamento» das questões culturais); mas por outro lado marcam, ali onde a possibilidade objetiva da consciência está presente, os graus na distância entre a consciência de classe psicológica e o conhecimento adequado do conjunto da situação. Contudo, essas gradações não podem referir-se diretamente as causas econômicas e sociais. A teoria objetiva da consciência de classe é a teoria de sua possibilidade objetiva. Infelizmente, uma questão que não tem sido praticamente abordada, e que poderia levar a importantes resultados, é a de saber até onde vão, no interior do proletariado, a estratificação dos problemas e a dos interesses econômicos.
Todavia, no interior de uma tipologia, por mais aprofundada que seja, como no interior dos problemas da luta de classes, surge sempre a questão das estratificações no proletariado: como pode realizar-se efetivamente a possibilidade objetiva da consciência de classe? Se outrora essa questão somente se referia a indivíduos extraordinários (que se pense na previsão feita por Marx, e de modo algum utopista, dos problemas da ditadura), hoje em dia é uma questão real e atual para toda a classe: é a questão da transformação interna do proletariado, de seu movimento no sentido de ascender ao nível objetivo da sua própria missão histórica, crise ideológica cuja solução tornará possível, enfim, a solução prática da crise econômica mundial.
Seria catastrófico manter ilusões sobre a distância que o proletariado deve percorrer no caminho ideológico. Contudo, seria também catastrófico não ver as forças que agem no sentido de uma superação ideológica do capitalismo por parte do proletariado. O simples fato de que cada revolução proletária tenha produzido, por exemplo — e isso de uma maneira incessantemente mais intensa e mais consciente — o órgão de luta do conjunto do proletariado, que se converte em órgão estatal [PB1], o conselho operário, é um sinal de que a consciência de classe do proletariado está a ponto de superar vitoriosamente a mentalidade burguesa de sua camada dirigente.
O conselho operário revolucionário, que não se deve jamais confundir com sua caricatura oportunista, é uma das formas pelas quais a consciência da classe proletária lutou incansavelmente desde o seu nascedouro. Sua existência, seu contínuo desenvolvimento, mostram que o proletariado já está no limiar de sua própria consciência e, por conseguinte, no limiar da vitória. Porque o conselho operário é a superação econômica e política da reificação capitalista. Do mesmo modo que, na situação posterior à ditadura, deve superar a divisão burguesa entre legislação, administração e justiça, do mesmo modo está chamado, na luta pelo poder, a reunir em uma verdadeira unidade, de uma parte o proletariado espacial e temporalmente disperso, e de outra a economia e a política, e desse modo ajudar a reconciliar a dualidade entre o interesse imediato e o objetivo final.
Jamais se deve ignorar a distância que separa o nível de consciência, mesmo dos operários mais revolucionários, da verdadeira consciência de classe do proletariado. Esse estado de coisas também é explicável a partir da doutrina marxista da luta de classes e da consciência de classe. O proletariado só se realiza ao suprimir-se, ao levar até o fim sua luta de classes e ao instaurar a sociedade sem classes. A luta para o estabelecimento dessa sociedade, de que a ditadura do proletariado [PB2] é uma simples fase, não é apenas uma luta contra o inimigo exterior, a burguesia, mas simultaneamente uma luta do proletariado contra si mesmo: contra os efeitos devastadores e degradantes do sistema capitalista na sua consciência de classe. O proletariado só obterá a verdadeira vitória quando haja superado, em si mesmo, esses efeitos. A separação dos diferentes setores que deveriam estar reunidos, os diferentes níveis de consciência alcançados atualmente pelo proletariado nos diferentes domínios permitem medir exatamente o ponto já atingido e o que resta a conquistar. O proletariado não deve recuar diante de nenhuma autocrítica, porque somente a verdade pode ser a portadora de sua vitória, e a autocrítica o seu elemento vital.
Georg Lukács, Março de 1920
NOTAS
[1] Ludwig Feuerbach, em K. Marx — F. Engels. Études philosophiques, éd. sociales, pp. 45-46. Sublinhado por Lukács. (Citação do autor e nota da edição francesa.)
[2] Kapital, I, 42.
[3] Isso ê válido tanto para o «pessimismo» que eterniza a situação presente, representando-a como um limite intransponível da evolução humana. quanto para o «otimismo». Desse ponto de vista (C para dizer a verdade, unicamente desse ponto de vista) Hegel e Schopenhauer se situam no mesmo plano.
[4] Misére de la philosophie, éd. Costes. p. 143.
[5] Ibid., pp. 121-126
[6] Ibid., pp. 127
[7] Kapital, I. 41. Sublinhado por G. L. Cf. também Engels, Origem» da Família, da Propriedade Privada e do Estado.
[8] Kapital 1, 731. Ci. também Travail Salarré et Capital Sobre as máquinas, Misére de la phiIosophie. cap 11. parte. II. Sobre dinheiro, ibid.., cap. 1, IIIA.
[9] Dokumente des Sozialismus. 11.76.
[10] Misére de la Philosophie.. Costes, p. 115.
[11] Infelizmente e impossível estender-se aqui mais longamente sobre certas formas tomadas por essas idéias. por exemplo. no marxismo, sobre a categoria muito importante da «máscara econômica caracterial», ou indicar as relações do materialismo histórico com as tendências semelhantes da ciência burguesa (como os tipos ideais de Max Weber).
[12] Eis o ponto a partir do qual se pode adquirir uma compreensão historicamente correta dos grandes utopistas, como, por exemplo, Platão ou Thomas More. Cf. também Marx, a propósito de Aristóteles. Kapital 1,26-27.
[13] «Ele diz mesmo o que não sabe». escreveu Marx a respeito de Franklin. Kapital, 1, 17. Cf. em outras passagens: «Eles não o sabem, mas fazem-no».
[14] Salaires, Prix et Profits.
[15] Engels, Esquisse d'une Critique de L’Économie Politique.
[16] Aqui, como alhures, traduzimos a palavra alemã Stand por état e a palavra Staat por État. (Nota dos tradutores franceses.) Para que o leitor inexperto não se deixe confundir com a polissemia do vocábulo estado (Stand), preferimos traduzi-lo ao vernáculo por estamento. (Nota do tradutor da edição brasileira.)
[17] Kapital, 1, 323.
[18] Kapital, III, 2, 324. Grifado por G. L.
[19] KapitaI, 1, 324. Sem dúvida, por ai é que é preciso explicar o papel politicamente reacionário que o capital comercial desempenhou nos albores do capitalismo, em oposição ao capital industrial. Cf. Kapital. III, 1, 311.
[20] Kapital, 1, 99.
[20a] Marx e Engels assinalam repetidamente o caráter «natural» dessas formas de sociedade. KapitaI, 1, 304, 316, etc. Toda a trajetória do Pensamento de Engels, na Origem da Família..., baseia-se nessa idéia. Posso estender-me sobre as divergências, mesmo entre marxistas, em torno dessa questão. Quero somente assinalar que, aqui igualmente, considero o ponto de vista de Marx e de Engels mais justo do que o dos seus «revisores».
[21] Cf. KapitaI, 1, 304.
[22] Die soziale Funktion der Rechtsinstitute, Marx-Studien, Bd. 1.
[23] Contribution a la critique de l’économie politique.
[24] K. Marx, Le Dix-Huit Brumaire de Louis Bonaparte.
[25] Ibid.
[26] Ibid.
[27] Trata-se simplesmente duma tendência. O grande mérito de Rosa Luxemburgo consiste em ter demonstrado que aí não há um fato ocasional e passageiro, mas que o capitalismo só pode subsistir, economicamente, o bastante para que penetre a sociedade e a conduza unicamente ao capitalismo, sem ainda tê-la penetrado completamente. Essa contradição econômica intrínseca de uma sociedade puramente capitalista é, seguramente, um dos fundamentos das contradições na consciência de classe da burguesia.
[28] Contribution á la critique de réconomie politique.
[29] Kapital, III, 1, 115, 297-298. 307, etc. Ocorre que os diversos grupos de capitalistas, como o capital industrial, o capital mercantil, etc.. tem aqui posições diferentes. Mas as diferenças não desempenham papel decisivo para o nosso problema.
[30] Ibid., III, 1,425.
[30a] Cf. o ensaio Rosa Luxemburgo, marxiste.
[31] Contribution à Ia critique deláeconomie poliotique.
[32] Kapital. III, 1,231 e 242.
[33] Isso, por exemplo, também se relaciona com as formas primitivas de entesouramento (cf. Kapital, 1,94) e certas formas de manifestação do capital mercantil (relativamente «pré-capitalista»). Cf. Kapital III. 1, 319.
[34] KapitaI, III, 1, 146 e 132.366,369, 377, etc.
[35] Kapital 1 321.
[36] Misére de Ia philosophie. CI. também as cartas e extratos de cartas a F. A. Sorge e outros.
[37] Nachlass, II, 54.
[38] Prefácio à Misére de Ia philosophie.
[39] Marx. Contribution à la critique de réconomie politique.
[40] Traduzimos a palavra alemã «Zwiespalt' ora por dualidade, ora por cisão. (Nota dos tradutores franceses.)
[40a] Salaire prix et profit.
[41] Misére de Ia philosophie, éd. Costes, p. 129.
[42] Misére de la philosophie.
[43] Carta de Marx a Ruge (setembro de 1843). Em T. V. das Oeuvr. philos.. ed. Costes, p. 210.
[44] Cf. o ensaio do autor «Quest que c’est le marxisme orthodoxe?»
[45] Misére de la philosophie. éd. Gostes, p. 149. Cf. também o Manifesto Comunista. 111,3.
Pitacos do Boteco:
[PB1] Destaque-se aqui que se tal conversão «em órgão estatal» ocorre, isso se dá por iniciativa da «mentalidade burguesa» de uma eventual «camada dirigente», nunca por iniciativa do proletariado.
[PB2] Se a vitória do proletariado significa a extinção de todas as classes, o período intermediário de ditadura é o interregno que separa o início da luta até a vitória total, ou seja, com outras classes não tem conversa, não tem acordo, transigência, nem negociação. A última palavra é a palavra do proletariado, a última vontade é a vontade do proletariado. Obviamente, sem representantes e sem uma classe dirigente, sem qualquer forma de Estado ou de Capitalismo de Estado, como talvez alguns poderiam equivocadamente supor.
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