29 de abril de 2011

Sobre o Anarquismo (Nicolas Walter)

SOBRE O ANARQUISMO


 Nicolas Walter

 APRESENTAÇÃO

O movimento anarquista tem hoje cem anos, se faz nascê-lo no momento em que os bakuninistas entraram na Associação Internacional dos Trabalhadores; desde então estendeu-se a vários países do mundo, continuando a ser um movimento minoritário e desconhecido, mas vivaz. Da sua história desprende-se uma certa força, mas ao mesmo tempo uma certa fraqueza em particular, no domínio da coisa escrita. A literatura anarquista antiga pesa com todo o peso sobre o movimento atual e temos dificuldade em criar uma nova. Se os escritos dos nossos predecessores são numerosos, a maioria deles está hoje esgotada e o resto está amiúde desatualizado.


O texto que se vai ler propõe-se uma apresentação nova do anarquismo. Escrito na Inglaterra, na Primavera de 1969, dirige-se igualmente ao leitor de língua portuguesa porque há atualmente na Grã-Bretanha e na Europa um recrudescimento de interesse pelo pensamento libertário que, abandonando as antigas dissensões, põe de pé as bases duma discussão prática para o futuro.


As opiniões aqui expostas são naturalmente pessoais: com efeito, um dos traços característicos do anarquismo é assentar no julgamento individual; mas não deixarão de tomar em linha de conta teorias mais gerais sobre o anarquismo e de apresentá-las imparcialmente. A linguagem escolhida é voluntariamente simples e evita as referências freqüentes a escritores ou a acontecimentos passados; assim, o texto será compreendido mesmo pelo leitor pouco iniciado no assunto. Inspira-se em escritos anteriores e não tem aspirações quanto à originalidade, do mesmo modo que não pretende ser definitivo: não se pode dizer tudo sobre o anarquismo, em cerca de cinqüenta páginas, e este resumo será sem dúvida substituído em breve, como os que o precederam.


Sobretudo, não queria que me tomassem por uma autoridade na matéria, porque outro traço característico do anarquismo é que não se resume às teorias de alguns mestres pensadores. Se os meus leitores não tiverem nada para me criticar, é porque fracassei. O texto que se vai ler é uma exposição pessoal sobre o anarquismo, a qual vem a lume após quinze anos de leituras e de discussões sobre o assunto e após dez anos de atividade no movimento e na imprensa anarquistas.

O QUE PENSAM OS ANARQUISTAS

Os primeiros que foram cognominados anarquistas, foram-no por insulto, ao longo das revoluções inglesa e francesa dos séculos XVII e XVIII, para dar a entender que queriam a anarquia, quer dizer, o caos ou a confusão. Mas, a partir dos anos 1840, foram anarquistas os que aceitaram esse nome como símbolo para mostrarem que queriam a anarquia, quer dizer, a ausência de governo. A palavra grega anarkhia, como a palavra inglesa anarchy (ou a portuguesa anarquia) tem os dois sentidos; os que não são anarquistas sustentam que ambos vêm a dar no mesmo, mas os anarquistas fazem questão em fazer a distinção. Há mais de um século, são anarquistas os que crêem não apenas que a ausência de governo não significa forçosamente caos e confusão, mas ainda que uma sociedade sem governo será verdadeiramente melhor do que aquela em que vivemos.


A anarquia é a elaboração política da reação psicológica contra a autoridade que aparece nos grupos humanos. Todos conhecem os anarquistas instintivos que se recusam a crer ou a fazer o que lhes dizem, precisamente porque lho ordenaram. Ao longo da história, esta tendência encontra-se nos indivíduos e nos grupos que se revoltam contra os que os governam. A idéia teórica da anarquia é igualmente muito velha: com efeito, pode-se encontrar a descrição duma idade do ouro volvida, sem governo, no pensamento da China e da Índia antigas, do Egito, da Mesopotamia, da Grécia e de Roma, e do mesmo modo inúmeros escritores políticos e religiosos, assim como comunidades inteiras, sonham com uma utopia sem governo. Mas a aplicação da anarquia à situação presente é mais recente e é apenas no movimento anarquista do século passado que se encontra a exigência duma sociedade sem governo, aqui e agora.


Outros grupos há, tanto à esquerda como à direita, que querem na teoria desembaraçar-se do governo, quer porque no momento azado a economia de mercado será tão livre que não necessitará mais de controle, quer porque na altura devida os indivíduos serão tão iguais que não haverá mais necessidade de constrangimento: mas as medidas que tomam parecem reforçar sempre mais o governo. Só os anarquistas querem desembaraçar-se do governo, na prática. Isso não quer dizer que pensem que todos os homens são naturalmente bons, idênticos, aperfeiçoáveis, ou qualquer outra cançoneta romântica. Quer dizer que calculam que quase todos os homens são sociáveis, iguais e capazes de viver a própria vida. Muitas pessoas dizem que o governo é necessário porque há pessoas que não sabem portar-se bem, mas os anarquistas dizem que o governo é prejudicial porque não se pode confiar em ninguém para conduzir os outros. Se todos os homens são de tal maneira maus que devam ser governados por outrem, dizem eles, quem é então suficientemente bom para governar os outros? O poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente. Por outro lado as riquezas da terra são produzidas pelo trabalho da humanidade inteira e todos os homens têm igual direito em tomar parte nesse trabalho e a gozar do seu produto. O anarquismo é um modelo ideal que exige, ao mesmo tempo, a liberdade total e a igualdade total.

Liberalismo e Socialismo

Pode-se considerar o anarquismo como um desenvolvimento quer do liberalismo, quer do socialismo, quer dos dois. Como os liberais, os anarquistas querem a liberdade: como os socialistas, querem a igualdade. Mas só o liberalismo ou só o socialismo não os satisfaz. A liberdade sem igualdade significa que os pobres e os fracos são menos livres que os ricos e os fortes e a igualdade sem liberdade significa que somos todos escravos em conjunto. A liberdade e a igualdade não são contraditórias, mas complementares: em vez da velha polarização liberdade-igualdade segundo a qual mais liberdade significaria menos igualdade e vise-versa , os anarquistas fazem notar que, na prática, não se pode ter uma sem outra. A liberdade não é autêntica se alguns forem demasiado pobres ou demasiado fracos para dela gozarem e a igualdade não é autêntica se alguns forem governados por outros. A contribuição decisiva dos anarquistas para a teoria política é a constatação de que liberdade e igualdade são afinal de contas a mesma coisa.


O anarquismo diferencia-se também do liberalismo e do socialismo pela sua concepção do progresso. Os liberais vêem a história como um desenrolar linear que vai da selvajaria, da superstição, da intolerância e da tirania até a civilização, à cultura, à tolerância e à emancipação. Há avanços e recuos, mas o verdadeiro progresso da humanidade vai no sentido dum sombrio passado para um futuro radioso. Os socialistas vêem a história como um desenvolvimento dialético que passa pelo despotismo, pelo feudalismo e pelo capitalismo e vai até ao triunfo do proletariado e à abolição do sistema das classes. Há revoluções e reações, mas o verdadeiro progresso da humanidade continua a ir dum triste passado para um belo futuro.


Os anarquistas consideram o progresso de maneira totalmente diferente, na realidade, consideram muitas vezes que não há progresso algum. Nós vemos a história não como um desenrolar linear ou dialético numa determinada direção, mas como um processo dualista. A história de todas as sociedades humanas é a história duma luta entre governantes e governados, entre opulentos e miseráveis, entre os que querem comandar e ser comandados e os que querem libertar-se, assim como aos seus camaradas; os princípios de autoridade e de liberdade, de governo e de rebelião, de Estado e de sociedade estão em perpétuo conflito. Esta tensão nunca é resolvida; o movimento da humanidade vai tanto num sentido, como no outro. O nascimento dum novo regime ou a queda dum antigo não são rupturas misteriosas no desenvolvimento ou patamares de passagem ainda mais misteriosos nesse desenvolvimento são apenas acontecimentos. Os acontecimentos históricos só são bem vindos na medida em que aumentam a liberdade e a igualdade para toda a gente, não há nenhuma razão para chamar bom o que é mau, simplesmente porque é inevitável. Nós não podemos fazer nenhuma previsão útil para o futuro e não podemos estar certos que o mundo será melhor. A nossa única esperança é que, à medida que o conhecimento e a consciência se desenvolvem, as pessoas tornar-se-ão mais aptas para descobrirem que podem organizar-se sem necessidade de nenhuma autoridade.


Não obstante, o anarquismo deriva com certeza do liberalismo e do socialismo, ao mesmo tempo histórica e teoricamente. O liberalismo e o socialismo precederam o anarquismo e este nasceu da oposição daqueles; a maioria dos anarquistas foram primeiro liberais, ou socialistas, ou ambas as coisas. O espírito de revolta está raramente plenamente desenvolvido à nascença e geralmente leva mais ao anarquismo do que dele provem. Em certo sentido, os anarquistas permanecem sempre liberais e socialistas e, cada vez que rejeitam o que há de bom em cada uma dessas teorias, traem um pouco o anarquismo. Por um lado, apoiamo-nos na liberdade de expressão, de reunião, de movimento, de comportamento e particularmente na liberdade de se ser diferente; por outro lado, apoiamo-nos na igualdade das posses, na solidariedade humana e particularmente na partilha das possibilidades de decisão. Somos liberais, mas mais que isso; somos socialistas e mais que isso.


No entanto, o anarquismo não é apenas uma mistura de liberalismo e de socialismo; isso é a social-democracia, ou o capitalismo de abundância. Devamos nós o que devermos aos liberais e aos socialistas, por muito próximos deles que estejamos, somos fundamentalmente diferentes deles e dos sociais-democratas porque rejeitamos a instituição do governo. Todos contam com o governo: os liberais, ostensivamente, para preservarem a liberdade, mas na verdade para impedirem a igualdade; os socialistas, ostensivamente, para preservarem a igualdade, mas na verdade para impedirem a liberdade.


Mesmo os liberais e os socialistas mais extremistas não podem prescindir do governo, do exercício da autoridade por alguns sobre os outros. A essência do anarquismo, a única coisa sem a qual não há mais anarquismo, é a recusa da autoridade de um homem sobre outro.

Democracia e Representação

Muitas pessoas opõem-se a um governo antidemocrático, mas os anarquistas distinguem-se delas opondo-se também aos governos democráticos. Há outras pessoas que se opõem aos governos democráticos, mas os anarquistas distinguem-se delas não se opondo de maneira alguma porque receiem ou odeiem o governo do povo, mas porque crêem que a democracia não é o governo do povo que a democracia é na realidade uma contradição lógica, uma impossibilidade física. A verdadeira democracia só é possível numa pequena comunidade, onde cada um pode tomar parte em todas as decisões; nesse momento, já não é necessária. Aquilo a que se chama democracia, e que se pretende que é o governo do povo por si mesmo, é na realidade o governo do povo por governantes eleitos e dever-se-ia antes chamá-lo «oligarquia consentida».


O governo exercido por chefes que se escolheu, é diferente e geralmente melhor de que o governo em que os chefes se escolheram a si mesmos, mas é ainda o governo de alguns sobre outros. Mesmo no governo mais democrático, há sempre os que ordenam ou proíbem, e os que obedecem. Mesmo quando somos governados pelos nossos representantes, continuamos a ser governados, e desde que eles começam a fazê-lo contra a nossa vontade, deixam de ser nossos representantes. A maioria das pessoas admite que não se tem nenhuma obrigação para com um governo no qual ninguém se pode fazer ouvir; os anarquistas vão mais longe e sublinham que não temos nenhuma obrigação para com o governo que elegemos. Podemos obedecer-lhe porque estamos de acordo ou porque somos demasiado fracos para desobedecer, mas nada nos força a obedecer-lhe quando estamos em desacordo e somos suficientemente fortes para nos recusarmos a fazê-lo. A maioria das pessoas admite que os que são afetados por uma mudança deveriam ser consultados antes que uma decisão seja tomada: os anarquistas vão mais longe e sublinham que deveriam ser os próprios interessados a tomar a decisão e a pô-la em aplicação.


Os anarquistas rejeitam portanto a idéia do contrato social e a da delegação dos poderes. Sem dúvida alguma, na prática, a maior parte das coisas serão sempre feitas por pouca gente por aqueles que estão interessados por um problema e são capazes de resolvê-lo , mas não há nenhuma razão para que os interessados sejam escolhidos por seleção ou eleição. Eles emergirão sempre de qualquer maneira, e é melhor que isso se faça naturalmente. O importante é que os leaders e os peritos não sejam forçosamente chefes, que a experiência e a capacidade de organização não estejam necessariamente ligadas à autoridade. Pode acontecer que a representação seja útil: mas o verdadeiro representante é o delegado ou o deputado que é mandatado por aqueles que o enviam e que pode ser revogado imediatamente por eles. De certo modo, o chefe que reivindica a representatividade é pior que o usurpador, porque é mais difícil atacar a autoridade quando esta tem por embalagem bonitas palavras ou argumentos abstratos. Que nós possamos eleger os nossos chefes de tempos a tempos não significa que devamos obedecer-lhes o resto do tempo. Se o fazemos, é por razões práticas e não morais. Os anarquistas são contra os governos, tenham eles chegado ao poder seja de que maneira for.

Estado e Classe

Os anarquistas concentraram tradicionalmente a sua oposição à autoridade do Estado a instituição que reivindica o monopólio da autoridade dentro de certo domínio. Concentraram-na porque o Estado é o exemplo supremo da autoridade na sociedade e igualmente a fonte ou a confirmação da utilização da autoridade no seu seio. Aliás os anarquistas opuseram-se tradicionalmente a todas as formas de Estados não apenas a tirania evidente dum rei, dum ditador ou dum conquistador, mas também a variantes tais como o despotismo esclarecido, a monarquia progressista, a oligarquia feudal ou comercial, a democracia parlamentar, o comunismo soviético, etc. Tiveram mesmo tendência para dizer que todos os Estados se equivalem e que não há que escolher entre eles.


É uma simplificação abusiva. Com certeza, todos os Estados são autoritários, mas alguns são-no bem mais que outros e qualquer pessoa normal prefere viver num Estado menos autoritário que noutro. Para dar um exemplo simples, esta exposição sobre o anarquismo não teria podido ser publicada na maioria dos Estados do passado e continuaria a não poder ser publicada na maioria dos Estados tanto de esquerda como de direita, quer a Leste quer a Oeste; prefiro viver onde pode ser publicada e a maioria dos meus leitores também, sem dúvida. Raros são os anarquistas que ainda tem uma atitude tão simplista frente a essa abstração chamada «o Estado» e os anarquistas concentram os esforços no ataque ao governo central e às instituições que dele derivam, não unicamente porque fazem parte do Estado, mas porque são os exemplos extremos da utilização da autoridade na sociedade. Opomos o Estado à sociedade, mas não o vemos mais como oposto a ela, como uma excrescência artificial: pelo contrário, consideramos que ele faz parte da sociedade que é um desenvolvimento natural dela. A autoridade é um comportamento natural, tal como a agressividade: mas é um comportamento que é preciso controlar e de que é preciso libertarmo-nos. Não se chegará lá, tentando encontrar os meios de institucionalizá-la, mas buscando prescindir dela.


Os anarquistas recusam as instituições abertamente repressivas do governo: administração, leis, polícia, tribunais, prisões, exército, etc. e também as que são aparentemente benfazejas: conselhos locais, indústrias nacionalizadas, serviços públicos, bancos e companhias de seguros, escolas e universidades, imprensa e rádio e tudo o resto. Toda a gente pode ver que as primeiras repousam, não no consentimento, mas na obrigação e afinal de contas na força; os anarquistas afirmam que as segundas tem a mesma mão de ferro, ainda que calcem luvas de veludo.


Não obstante, as instituições que derivam direta ou indiretamente do Estado não podem ser compreendidas, se as considerarmos unicamente como más. Podem ter o seu lado bom. Em parte, tem uma função negativa útil quando impedem o uso da autoridade por parte doutras instituições tais como pais cruéis, proprietários ávidos de ganho, patrões brutais, criminosos violentos: e têm uma função positiva útil quando põem de pé instituições sociais desejáveis como os trabalhos públicos, as intervenções em caso de catástrofes, os transportes, a arte e a cultura, os serviços médicos. as pensões de reforma, o apoio aos pobres, a educação, a rádio, Existe portanto o Estado libertador e o Estado providencial, o Estado que trabalha pela justiça e o Estado que trabalha pela igualdade. A primeira resposta anarquista a isso é que temos também o Estado opressor que a principal função do Estado é na realidade submeter o povo, limitar a liberdade e que todas as funções úteis do Estado podem ser exercidas, e foram-no freqüentemente, por associações voluntárias. Neste ponto, o Estado parece-se com a Igreja medieval. Na Idade Média, a Igreja estava implicada em todas as atividades essenciais e não se podia imaginar que essas atividades fossem possíveis sem ela. Só a Igreja podia batizar, casar e enterrar as pessoas e foi necessário ficar a saber que ela não controlava de fato o amor, o nascimento e a morte. Todo o cato público devia receber uma benção (religiosidade é o caso para alguns deles) e teve que se ficar a saber que o cato era tão efetivo mesmo sem a benção.


A Igreja interpunha-se e amiúde controlava os aspectos da vida que são agora dominados pelo Estado. As pessoas aprenderam a dar-se conta que a participação da Igreja era inútil e mesmo prejudicial; o que é preciso que aprendam agora é que a dominação do Estado é igualmente perniciosa e supérflua. Temos necessidade do Estado enquanto crermos ter necessidade dele e tudo o que ele faz pode ser feito tão bem e mesmo melhor sem a sanção da autoridade.


A segunda resposta anarquista é que a função essencial do Estado é manter a desigualdade existente. Os anarquistas não consideram como os marxistas que a unidade de base da sociedade é a classe social, mas estão de acordo para dizer que o Estado é a expressão política da estrutura econômica, que é o representante dos que possuem ou controlam a riqueza da comunidade e o explorador dos que fornecem o trabalho que cria essa riqueza O Estado não pode redistribuir eqüitativamente a riqueza porque é o principal instrumento da distribuição injusta. Os anarquistas pensam como os marxistas que o sistema atual deve ser destruído, mas não pensam que a sociedade futura possa ser estabelecida por um Estado agarrado por novas mãos: o Estado é tanto uma causa como uma conseqüência do sistema de classes e uma sociedade sem classes instaurada por um Estado voltará a tornar-se depressa numa sociedade de classes. O Estado não definhará deve ser deliberadamente abolido pelo povo que destrói o poder dos dirigentes e se apossa da riqueza dos possidentes; estas duas cações estão ligadas e uma sem a outra será sempre inútil. A anarquia, no sentido mais verdadeiro, significa uma sociedade ao mesmo tempo sem dirigentes e sem ricos.

Organização e Burocracia

Isto não quer dizer que os anarquistas rejeitam a organização, se bem que aí esteja um dos preconceitos mais fortes contra eles. A maioria das pessoas admite sem dificuldade que a anarquia possa não significar apenas caos e confusão e que os anarquistas não queiram a desordem, mas a ordem sem governo; porém têm a certeza de que a anarquia significa a ordem que surge espontaneamente e que os anarquistas recusam a organização. É o contrário da verdade. Na realidade, querem muito mais organização, mas sem autoridade. O preconceito contra o anarquismo deriva dum preconceito acerca da organização; não se pode imaginar que esta não assenta na autoridade, que de fato funciona melhor sem autoridade.


Um instante de atenção mostra à evidência que, logo que a obrigação seja substituída pelo consentimento, haverá mais discussões e planos, não menos. Todos os que forem atingidos por uma decisão poderão tomar parte na sua elaboração e ninguém poderá deixar tal tarefa a funcionários pagos ou a representantes eleitos. Sem regras a observar, sem precedentes a seguir, cada decisão deverá ser tomada pela primeira vez. Sem dirigentes a quem obedecer, sem guias a seguir, cada um será capaz de tomar a sua própria decisão. Para que tudo funcione, a multiplicidade e a complexidade dos laços entre os indivíduos serão aumentadas, não reduzidas. Uma tal organização pode ser um esboço e ineficaz, mas colará de mais perto as necessidades e aos sentimentos das pessoas envolvidas. Se não se pode fazer alguma coisa senão graças à antiga forma de organização, com a sua autoridade e o seu constrangimento é que não vale provavelmente a pena faze-la e seria melhor pô-la de lado.


O que os anarquistas rejeitam é a institucionalização da organização, o estabelecimento dum grupo particular cuja função é organizar as outras pessoas. A organização anarquista seria fluida e aberta; assim que uma organização endurece e se fecha, cai nas mãos duma burocracia, torna-se instrumento duma classe e expressão da autoridade, em vez de elo de coordenação da sociedade. Todo o grupo tende para a oligarquia, o governo de poucos, e toda a organização tende para a burocracia, o governo dos profissionais; os anarquistas devem lutar sempre contra tais tendências, tanto hoje como amanhã, quer na própria casa quer na sua própria aldeia.

A Propriedade

Os anarquistas também não rejeitam a propriedade, se bem que tenham sobre o assunto idéias muito próprias. Num sentido, a propriedade é o roubo quer dizer que a apropriação exclusiva do que quer que seja por quem quer que seja é uma espoliação para todos os outros. Isso não quer dizer que sejamos todos comunistas; quer dizer que o direito duma pessoa sobre um objeto não repousa no fato de o ter fabricado, encontrado, comprado, recebido, de o utilizar ou de o desejar, ou de ter um direito legal sobre a coisa, mas no fato de ter necessidade dela mais ainda, de ter mais necessidade dela do que qualquer outra pessoa. Não é uma questão de justiça abstrata ou de lei natural, mas de solidariedade humana e de bom senso. Se eu tiver um pedaço de pão e se tu tiveres fome, ele é teu, não meu. Se eu tiver um casaco e se tu tiveres frio, ele pertence-te. Se eu tiver uma casa e se tu não tiveres, tens o direito de utilizar pelo menos um dos meus quartos Mas, noutro sentido, a propriedade é a liberdade quer dizer que o gozo de bens em quantidade suficiente e uma condição essencial para uma vida agradável para o indivíduo.


Os anarquistas são pela propriedade privada do que não pode ser utilizado para explorar outrem esses objetos pessoais que acumulamos desde a infância e que fazem parte da nossa vida. Mas somos contra a propriedade pública que não é útil em si mesma e só pode servir para explorar propriedade fundiária e imobiliária, instrumentos de produção e de distribuição, matérias primas e artigos manufaturados. O princípio, afinal de contas, é que um homem pode ter um direito sobre o que produz pelo próprio trabalho, mas não sobre o que obtêm pelo trabalho dos outros; tem um direito sobre aquilo de que tem necessidade e que utiliza, mas não sobre aquilo de que não tem necessidade e que não pode utilizar. Desde que um homem tem mais do que o suficiente, ou esbanja ou impede outrem de ter o suficiente.


Por conseguinte, os ricos não tem nenhum direito sobre as suas propriedades, porque são ricos, não porque trabalham muito, mas porque muitas pessoas trabalham para eles; e os pobres têm um direito sobre a propriedade dos ricos, porque são pobres, não porque trabalham pouco, mas porque trabalham para os outros. Na realidade, os pobres trabalham sempre muito mais tempo em tarefas muito mais ingratas do que os ricos, e em condições piores. Ninguém se tornou rico nem continuou a sê-lo pelo seu próprio trabalho, mas só explorando o trabalho dos outros. Um homem pode ter uma casa e um pedaço de terra, as ferramentas da profissão e uma boa saúde toda a vida e pode trabalhar tão duramente quanto quiser e tanto tempo quanto puder, que produzirá o bastante para a família, mas não muito mais; e nem sequer será independente, dependerá dos outros para obter certas matérias primas e para trocar os seus produtos.


No que diz respeito aos bens públicos, não se trata apenas de saber quem os possui, mas ainda de saber quem os controla. Não é necessário ser-se proprietário para explorar os outros. Os ricos empregaram sempre outras pessoas para gerirem os seus bens e agora que sociedades anônimas e empresas nacionalizadas tendem a substituir os proprietários privados, são os «managers» que se tornam os principais exploradores dos operários. Tanto nos países avançados como nos países subdesenvolvidos, tanto nos Estados capitalistas como nos comunistas, é uma pequena minoria da população que possui ou controla a grande maioria dos bens públicos.


A despeito das aparências, isso não é um problema político ou legal. O que importa não é a distribuição do dinheiro ou o sistema de repartição das terras, a organização dos impostos, o método de imposição das taxas ou a lei sobre as heranças, mas o fato fundamental de que certas pessoas trabalham para outras, exatamente como certas pessoas obedecem a outras. Se nós nos recusássemos a trabalhar para os ricos e os poderosos, a propriedade desapareceria, do mesmo modo que, se nos recusássemos a obedecer aos dirigentes, a autoridade desapareceria. Para os anarquistas, a propriedade baseia-se na autoridade, não o contrário. O problema não é saber como os camponeses engordam os proprietários ou como os operários enriquecem os patrões, mas porque o fazem e aí é que está o problema político.


Alguns tentam resolver o problema da propriedade mudando a lei ou o governo, por meio de reformas ou pela revolução. Os anarquistas não têm nenhuma confiança em tais soluções, mas não se põem todos de acordo sobre a boa solução. Há os que querem a partilha de tudo entre todos, a fim de que cada um tenha uma parte da riqueza mundial, e um sistema comercial de «laissez-faire» com crédito gratuito para evitar a acumulação excessiva. Mas a maioria dos anarquistas também não tem confiança nesta solução e quer a expropriação de todos os que possuem mais que o necessário, a fim de que tenhamos todos acesso à riqueza mundial, e que o controle esteja nas mãos da comunidade. Porém, ao menos, todos estão de acordo para dizer que o sistema atual de propriedade deve ser destruído, ao mesmo tempo que o sistema atual de autoridade.

Deus e a Igreja

Os anarquistas são tradicionalmente anticlericais e ateus. Os primeiros anarquistas opunham-se tanto à Igreja como ao Estado e a maioria deles opunha-se à própria religião. A divisa «Nem Deus nem Amos» foi bastante utilizada para resumir a mensagem anarquista. Muitas pessoas dão ainda os primeiros passos para o anarquismo perdendo a fé e tornando-se racionalistas ou humanistas; a recusa da autoridade divina encoraja a recusa da autoridade humana. A maioria dos anarquistas hoje é provavelmente ateia, ou pelo menos agnóstica. Mas houve anarquistas religiosos, ainda que estejam habitualmente fora da corrente principal do movimento. Foi o caso por exemplo das seitas heréticas que precederam as idéias anarquistas antes do século XIX, dos grupos de pacifistas religiosos na Europa e na América do Norte durante os séculos XIX e XX, em particular de Tolstói e dos seus discípulos no começo do século XX, e do movimento operário católico («Catholic Worker») nos Estados Unidos desde 1939.


O ódio generalizado dos anarquistas pela religião declina à medida que declina o poder da Igreja e muitos anarquistas pensam agora que se trata duma questão pessoal. Opor-se-iam à proibição da religião pela força, como à sua renovação pela força. Deixariam cada um crer e fazer o que quer, enquanto isso não disser respeito senão ao interessado; mas não deixariam a Igreja retomar mais poder.


Na realidade, a história da religião é um modelo para a história do Estado. Pensou-se durante muito tempo que uma sociedade sem Deus era impossível; hoje, Deus morreu. Pensa-se ainda que uma sociedade sem Estado é impossível; trata-se agora de destruir o Estado.

Guerra e Violência

Os anarquistas sempre opuseram-se  à guerra, mas não se opõem todos à violência. São antimilitaristas, mas não necessariamente pacifistas. Para eles, a guerra é o exemplo supremo da autoridade fora duma sociedade e ao mesmo tempo uma poderosa confirmação da autoridade dentro da sociedade. A violência e a destruição organizadas da guerra são uma versão imensamente aumentada da violência e da destruição organizadas do Estado; a guerra é a saúde do Estado. O movimento anarquista tem uma sólida tradição de resistência à guerra e à preparação da guerra. Alguns anarquistas apoiaram guerras, mas foram sempre considerados como renegados pelos seus camaradas e esta total oposição às guerras nacionais é um dos grandes fatores unificadores dos anarquistas. Mas os anarquistas distinguiram as guerras nacionais entre Estados das guerras civis entre classes. O movimento revolucionário anarquista, desde o fim do século XIX, incita à insurreição violenta para destruir o Estado e os anarquistas tomaram parte cativa em inúmeros levantamentos armados e guerras civis, sobretudo na Rússia e na Espanha. Ao mesmo tempo que participavam neles, não alimentavam ilusões sobre as possibilidades de desencadearem a revolução só com tais combates. A violência podia ser necessária para destruir o antigo sistema, mas era inútil e mesmo perigosa para construir uma nova sociedade. Uma força armada popular pode vencer uma classe dirigente e destruir um governo, mas não pode ajudar o povo a criar uma sociedade livre e de nada serve ganhar uma guerra, se não se sabe ganhar a paz.


Muitos anarquistas duvidam de fato de que a violência possa alguma vez ser útil. Como o Estado, não é uma força neutra cujos efeitos variam consoante quem a utiliza e não terá forçosamente bons efeitos, simplesmente porque está em boas mãos. Com certeza, a violência dos oprimidos não é a mesma que a violência do opressor, mas, mesmo quando é a melhor maneira de se sair duma situação intolerável, é apenas um mal menor. É um dos fenômenos mais desagradáveis da sociedade atual e continua a ser desagradável, mesmo que parta de boas intenções; aliás, tem tendência para destruir o seu próprio fim, mesmo nas circunstâncias em que parece necessária como numa revolução. A experiência da história mostra que o sucesso da revolução não é garantido pela violência; pelo contrário, quanto mais violência há, menos há revolução.


Tudo isto pode parecer absurdo a quem não é anarquista. Um dos preconceitos mais antigos e mais tenazes em relação aos anarquistas é que são antes de tudo violentos. O estereótipo do anarquista com uma bomba debaixo do sobretudo tem oitenta anos de idade, mas continua vivaz. Muitos anarquistas foram favoráveis à violência, alguns foram partidários do assassinato de altas personalidades e um punhado deles foi mesmo favorável ao terrorismo na população, para ajudar a destruir o sistema atual. É uma face sombria do anarquismo e não há que negá-la. Mas é apenas um aspecto do anarquismo e um pequeno aspecto. A maioria dos anarquistas opõe-se a toda a violência, exceto àquela que é verdadeiramente inevitável a violência que sobrevem quando o povo se desembaraça dos dirigentes e dos exploradores.


Os que praticam mais a violência são os que exercem a autoridade, não os que a atacam. Os grandes lançadores de bombas não são os desesperados trágicos da Europa meridional de há meio século, mas os engenhos militares de todos os Estados do mundo ao longo da história. Nenhum anarquista pode rivalizar com o Blitz ou a bomba atômica, nenhum Ravachol ou Bonnot pode ser comparado a um Hitler ou a um Staline. Encorajamos os trabalhadores a ocuparem as fábricas e os camponeses a apossarem-se das terras, possivelmente vidros serão partidos e barricadas construídas, mas não temos soldados, aviões, polícia, prisões, campos de concentração, pelotões de execução, câmaras de gás nem carrascos. Para os anarquistas, a violência é o exemplo extremo do uso do poder duma pessoa contra outra, o paroxismo de tudo contra o qual lutamos.


Alguns anarquistas foram mesmo pacifistas, se bem que isso não seja freqüente. Muitos pacifistas foram (ou tornaram-se) anarquistas e os anarquistas tiveram tendência para se aproximarem do pacifismo, à medida que o mundo se aproximou da destruição. Alguns foram particularmente atraídos pelo pacifismo militante defendido por Tolstoi e Gandhi e pela utilização da não-violência como técnica de cação direta, e grande parte deles participaram nos movimentos contra a guerra, onde por vezes tiveram uma certa influência. Mas a maioria dos anarquistas mesmo os mais militantes acha o pacifismo demasiado largo na sua recusa de toda a violência por qualquer homem em qualquer circunstância e demasiado estreito ao afirmar que só a eliminação da violência tornará a sociedade diferente. Onde os pacifistas vêem a autoridade como uma versão enfraquecida da violência, os anarquistas vêem a violência como uma manifestação exacerbada da autoridade. Os anarquistas também se sentem afastados e algo enojados pelo lado moralizador do pacifismo, pelo seu ascetismo e farisaísmo, e pela sua concepção benevolente do mundo. Repitamo-lo, eles são antimilitaristas, mas não necessariamente pacifistas.

O Indivíduo e a Sociedade

A unidade de base da humanidade é o homem, o ser humano individual. Quase todos os indivíduos vivem em sociedade, mas a sociedade não é nada mais que uma soma de indivíduos e o seu único fim é permitir-lhes uma vida plena. Os anarquistas não acreditam que os homens tenham direitos naturais mas isto aplica-se a todos: nenhum indivíduo pode reivindicar um direito para agir nem para proibir outro de agir. Não há vontade geral, não há norma social à qual alguém deva submeter-se. Somos iguais, não idênticos. A competição e o apoio mútuo, a agressividade e a ternura, a intolerância e a tolerância, a violência e a doçura, a autoridade e a revolta são todas fenômenos naturais de comportamento social, mas algumas favorecem e outras entravam a plenitude da vida individual. Os anarquistas crêem que o melhor meio de garantir esta plenitude é a liberdade igual de cada membro da sociedade.


Por conseguinte, não temos tempo para moralizar no sentido tradicional e não nos interessamos pela vida pessoal dos outros. Que cada um faça o que quiser, dentro do limite das próprias capacidades, a partir do momento em que deixa os outros fazerem o mesmo. Coisas tais como o trajar, a aparência, a linguagem, a maneira de viver, as relações, etc., constituem matéria de preferências pessoais. O mesmo se passa com a sexualidade. Somos pelo amor livre, mas isso não quer dizer que sejamos pela promiscuidade universal; quer dizer que todo o amor é livre, exceto a prostituição e a violação, e que as pessoas deveriam ser capazes de escolher (ou de rejeitar) as formas de atitude sexual e os parceiros sexuais que Ihes convém. Uma liberdade sexual extrema poderá convir a um e uma extrema castidade a outro se bem que a maioria dos anarquistas pense que o mundo seria mais habitável, se tivesse feito menos algazarra e mais amor. O mesmo princípio aplica-se às drogas: as pessoas podem intoxicar-se com álcool, com cafeína, com haxixe ou com anfetaminas, com tabaco ou com ópio, e não temos nenhum direito de as impedir de o fazerem, de as castigarmos, conquanto se possa tentar ajudá-las. Do mesmo modo, que cada um adore à sua maneira, enquanto deixar os outros praticarem o culto que lhes convém ou não praticarem culto algum. Tanto pior para os escandalizados, o que importa, é não ferir. Não há necessidade de ninguém se inquietar com as diferenças de atitude pessoal: o que deve inquietar, é a grosseira injustiça da sociedade autoritária.


O inimigo principal do indivíduo livre é o poder esmagador do Estado, mas os anarquistas também se opõem a qualquer outra forma de autoridade que limite a liberdade na família, na escola, no trabalho, na vizinhança e a qualquer tentativa de estandardizar o indivíduo. No entanto, antes de examinarmos como a sociedade pode ser organizada para dar o máximo de liberdade aos seus membros, temos que descrever as diferentes formas que o anarquismo assumiu, consoante as concepções das relações entre o indivíduo e a sociedade.

AS DIVERSAS CORRENTES DO ANARQUISMO

Os anarquistas são célebres pelos seus desacordos e, na ausência de chefes e de funcionários, de hierarquias e de ortodoxia, de punições e de recompensas, de políticos e de programas, é normal que pessoas cujo princípio de base é a recusa da autoridade tendam perpetuamente para divergir de opinião. Não obstante, há vários tipos bem estabelecidos de anarquismo entre os quais a maioria dos anarquistas escolheu o que exprime melhor as suas óticas pessoais.

O Anarquismo Filosófico

Na origem, o anarquismo era o que se chama agora anarquismo filosófico. É a idéia que uma sociedade sem governo é bela, mas não verdadeiramente desejável, ou então é desejável, mas não verdadeiramente possível, pelo menos por enquanto. Tal atitude domina todos os escritos anarquistas anteriores a 1840 e isso impediu os movimentos populares anárquicos de se tornarem uma ameaça mais séria para os governos. É uma atitude que se encontra ainda nos que se dizem anarquistas, mas ficam à margem de todo o movimento organizado, e também nalgumas pessoas situadas dentro do movimento anarquista. Muito freqüentemente, parece ser uma atitude inconsciente crer que o anarquismo, como o Reino de Deus, está em vós. Revela-se mais cedo ou mais tarde por frases como: «Com certeza, sou anarquista, mas . . . »


Os anarquistas militantes tem tendência para desdenhar os anarquistas filosóficos, e é compreensível, ainda que lamentável. Enquanto o anarquismo permanecer um movimento minoritário, um sentimento de conjunto favorável às idéias anarquistas, mesmo vago, cria um clima que faz com que se escute a propaganda e que o movimento possa desenvolver-se. Por outro lado, a adesão ao anarquismo filosófico pode ir contra uma apreciação adequada do verdadeiro anarquismo; mas é pelo menos preferível à indiferença total. Como os anarquistas filosóficos, há muitas pessoas próximas de nós, mas que recusam a etiqueta de anarquistas, e outras que recusam qualquer etiqueta. Todas elas tem um papel a desempenhar quando mais não fosse para fornecerem um auditório simpatizante e labutarem pela liberdade no seu meio ambiente.

Individualismo, Egoísmo, Corrente Libertária

O primeiro tipo de anarquismo que foi mais que simplesmente filosófico foi o individualismo. É a idéia que a sociedade não é um organismo, mas uma coleção de individualidades autônomas que não tem nenhuma obrigação para com a sociedade, mas apenas umas para com as outras. Esta visão existia bem antes que houvesse o que quer que fosse como anarquismo e continuou a existir independentemente dele. Mas o individualismo tende sempre a supor que os indivíduos que formam a sociedade devem ser livres e iguais e que podem passar a sê-lo apenas por um esforço pessoal e não pela cação de instituições exteriores; todo o desenvolvimento de tal atitude tende evidentemente a fazer avançar o individualismo puro na direção do verdadeiro anarquismo.


A primeira pessoa a elaborar uma teoria claramente anarquista foi um individualista: William Godwin, em An Enquiry concerning Political Justice («Uma pesquisa sobre a justiça política»), obra publicada em 1793. Em reação contra os partidários e os adversários da Revolução Francesa, postulou uma sociedade sem governo e com o mínimo de organização possível, na qual os indivíduos soberanos deveriam preservar-se de qualquer forma de associação permanente apesar de numerosas variantes, é ainda a base do anarquismo individualista. É o anarquismo dos intelectuais, dos artistas e dos não-conformistas, das pessoas que trabalham sós e preferem ficar à margem. Desde a época de Godwin, seduziu várias pessoas do gênero, especialmente na Inglaterra e na América do Norte, por exemplo personalidades como Shelley e Wilde, Emerson e Thoreau, John Augustus e Herbert Read. Podem atribuir-se a si próprias outra etiqueta, mas sente-se sempre o individualismo transparecer nelas.


Talvez nos faça um pouco cair no erro limitar o individualismo a uma espécie de anarquismo; o individualismo teve uma influência profunda sobre todo o movimento anarquista e, se se observa os anarquistas, vê-se que é ainda uma parte essencial da sua teoria, ou pelo menos da sua motivação. Os individualistas são, poder-se-ia dizer, os anarquistas de base, que desejam simplesmente destruir a autoridade e não vêem a necessidade de pôr o que quer que seja no seu lugar. É um ponto de vista válido até certo ponto, mas não vai suficientemente longe para afrontar os problemas reais da sociedade a qual tem certamente mais necessidade de aceitação social que pessoal. Só podemos salvar-nos a nós mesmos mas nada podemos fazer pelos outros.


Uma forma mais extrema do individualismo é o egoísmo, sobretudo sob a forma expressa por Max Stirner, em Der Einzige und sein Eigentum («O único e a sua propriedade»), obra publicada em 1843. Como acontece com Marx ou Freud, é difícil interpretar Stirner sem irritar os seus discípulos, mas pode-se ainda assim dizer que o seu egoísmo difere do individualismo em geral, porque rejeita abstrações tais como a moralidade, a justiça, a obrigação, a razão, o dever, em proveito dum reconhecimento intuitivo da existência única de cada indivíduo. Recusa evidentemente o Estado, mas recusa igualmente a sociedade e tende para o niilismo (a idéia de que nada tem importância) e o solipsismo (a idéia que nada existe fora de si mesmo) . É claramente anarquista, mas de maneira essencialmente improdutiva, já que qualquer forma de organização que vise para além duma efêmera «união de egoístas», é considerada como fonte duma nova opressão É o anarquismo dos poetas e dos vagabundos, dos que querem uma solução absoluta e recusam todo o compromisso. É a anarquia aqui e agora, se não no mundo, pelo menos na nossa própria vida (1).


Uma tendência mais moderada que deriva do individualismo é a corrente libertária. No sentido mais simples, significa que a liberdade é uma boa coisa; num sentido mais estrito, é a idéia que a liberdade é o fim político mais importante. Assim, o «libertarismo» não é tanto um tipo específico de anarquismo quanto uma forma temperada deste, um primeiro passo. Emprega-se por vezes tal termo como sinônimo ou eufemismo para o anarquismo em geral, logo que há qualquer razão para evitar uma palavra demasiado pesada de emotividade mas mais amiúde significa o reconhecimento de idéias anarquistas num domínio particular, sem que isso implique a aceitação completa do anarquismo. Os individualistas são libertários por definição, porém os socialistas libertários ou os comunistas libertários são os que trazem ao socialismo ou ao comunismo o reconhecimento do valor essencial do indivíduo.

Mutualismo e Federalismo

O tipo de anarquismo que aparece quando os individualistas põem as idéias em prática é o mutualismo. É a idéia de que, em vez de se entregar ao Estado, a sociedade deveria ser organizada por indivíduos que concluíssem entre si acordos voluntários, numa base de igualdade e de reciprocidade. O mutualismo é o aspecto de toda a associação que é mais que instintiva e menos que oficial e não é necessariamente anarquista; mas foi historicamente importante para o desenvolvimento do anarquismo e quase todas as propostas anarquistas visando a reorganização da sociedade foram essencialmente mutualistas.


O primeiro que se chamou deliberadamente anarquista, era mutualista: Pierre-Joseph Proudhon, em Qu'est-ce que la proprieté? («O que é a propriedade?), obra publicada em 1840. Em reação contra os socialistas utópicos e revolucionários do século XIX, postulou uma sociedade composta de grupos cooperativos de indivíduos livres, trocando os produtos indispensáveis à vida na base do valor do trabalho e permitindo o crédito gratuito graças a um Banco do povo. É o anarquismo dos artesãos, dos pequenos proprietários e pequenos comerciantes, dos que exercem profissões liberais e técnicas, das pessoas em suma que estão apegadas à sua independência. Apesar dos seus contraditores Proudhon teve numerosos discípulos, sobretudo no meio dos operários qualificados e dos pequeno-burgueses (2) e a sua influência foi considerável em França durante a segunda metade do século XIX; o mutualismo teve também uma atração particular na América do Norte. Foi retomado mais tarde por pessoas que queriam instaurar uma reforma monetária ou comunidades autônomas medidas que prometem resultados rápidos, mas que não mudam a estrutura fundamental da sociedade. É um ponto de vista válido até certo ponto, contudo não vai suficientemente longe para tratar dos problemas da indústria e do capital, do sistema de classes que os domina nem acima de tudo do Estado.


O mutualismo é com certeza o princípio do movimento cooperativo, mas as sociedades cooperativas seguem regras mais democráticas do que anarquistas. Uma sociedade organizada segundo o princípio do anarquismo mutualista seria uma sociedade na qual as atividades comunais estariam nas mãos de sociedades cooperativas, sem diretores permanentes nem administradores eleitos. O mutualismo econômico pode assim ser considerado como um cooperativismo menos a burocracia, ou um capitalismo menos o lucro.


No plano mais geográfico do que econômico, o mutualismo torna-se federalismo. E a idéia de que a sociedade, num sentido mais largo que a comunidade local, deveria ser coordenada por uma rede de conselhos cobrindo maiores zonas. O traço essencial do anarquismo federalista é que os membros de tais conselhos seriam delegados sem nenhuma autoridade executiva, imediatamente revogáveis, e que os conselhos não teriam nenhum poder central, mas apenas um simples secretariado. Proudhon, primeiro teórico do mutualismo, foi também o primeiro teórico do federalismo na obra Du principe fédératif («Do princípio federalista»), publicada em 1863 e os seus discípulos foram tanto chamados federalistas como mutualistas, sobretudo os que participaram ativamente no movimento operário; assim, os que no começo da Primeira Internacional e aquando da Comuna de Paris foram percursores das idéias do movimento anarquista moderno, diziam-se na maioria federalistas.


O federalismo não é tanto um tipo de anarquismo quanto uma parte inevitável do anarquismo. Virtualmente, todos os anarquistas são federalistas, mas nenhum se define como unicamente federalista. Ao fim e ao cabo, o federalismo é um princípio comum que não é de maneira alguma exclusivamente anarquista. Não comporta nada de utópico. Os sistemas internacionais de coordenação dos caminhos de ferro, da navegação, das ligações aéreas, dos serviços postais, do telégrafo e do telefone, da pesquisa científica, das campanhas contra a fome ou contra os sinistros, e muitas outras atividades à escala mundial são essencialmente de estrutura federalista. Os anarquistas acrescentam simplesmente que tais sistemas funcionariam tão bem no interior dum pais como entre diferentes países. Aliás, é já uma realidade para o caso da enorme quantidade de sociedades, de associações e de organizações voluntárias de todas as espécies que têm entre mãos a parte das atividades sociais que não são rentáveis no plano financeiro ou político.

Coletivismo, Comunismo, Sindicalismo

O tipo de anarquismo que vai mais longe do que o individualismo ou o mutualismo e que comporta uma ameaça direta para o sistema de classes e para o Estado, é o que se chamava outrora coletivismo. É a idéia de que a sociedade só poderá ser reconstruída quando a classe operária tiver tomado o controle da economia por meio duma revolução social, tiver destruído o aparelho do Estado e reorganizado a produção com base na propriedade coletiva controlada pelas associações de trabalhadores. Os instrumentos de trabalho serão propriedade coletiva, mas os produtos do trabalho serão distribuídos segundo a fórmula: «De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo o seu trabalho».


Os primeiros anarquistas modernos, os bakuninistas da Primeira Internacional, eram coletivistas. Em reação contra os mutualistas e os federalistas reformistas, bem como contra os blanquistas e os marxistas autoritários, reivindicaram uma forma simples de anarquismo revolucionário: o anarquismo da luta de classes e do proletariado, da insurreição em massa dos pobres contra os ricos e a passagem imediata a uma sociedade livre e sem classes, sem nenhum período transitório de ditadura. É o anarquismo dos operários e dos camponeses que tem uma consciência de classe, dos militantes do movimento operário dos socialistas que querem tanto a liberdade como a igualdade.


Este coletivismo anarquista ou revolucionário não deve ser confundido com o coletivismo autoritário e reformista, mais conhecido, dos sociais-democratas e dos Fabianos coletivismo baseado na propriedade coletiva da economia, mas também no controle da produção pelo Estado. Em parte por causa do perigo de confusão, e em parte porque é aqui que os anarquistas e os socialistas mais se aproximam, chamar-se-á com mais propriedade a este tipo de anarquismo socialismo libertário; isto compreende não apenas anarquistas que são socialistas, mas também socialistas que se inclinam para o anarquismo, sem a ele aderirem exatamente.


O tipo de anarquismo que aparece num coletivismo mais elaborado é o comunismo. É a idéia de que não é suficiente que os meios de produção sejam propriedade de todos, mas que os produtos do trabalho devem também ser postos em comum e distribuídos segundo a fórmula: «De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades». O argumento comunista é o seguinte: todo o homem tem direito ao pleno valor do seu trabalho, mas é impossível calcular o valor do trabalho dum só homem, porque o trabalho de cada um está englobado no trabalho de todos e trabalhos diferentes tem valores diferentes. Portanto é melhor que a economia inteira esteja nas mãos da sociedade no seu conjunto e que e sistema dos salários e dos preços seja abolido.


As personalidades marcantes do movimento anarquista do fim do século XIX e do começo do século XX como Kropotkine, Malatesta, Réclus, Grave, Faure, Goldman, Berkman, Rocker, etc. eram comunistas. Partindo do coletivismo, e em reação contra Marx, postularam uma forma de anarquismo revolucionário mais elaborado um anarquismo contendo uma crítica das mais minuciosas da sociedade atual e das propostas para a sociedade futura. É o anarquismo dos que aceitam a luta de classes, mas têm uma visão do mundo mais larga. Se o coletivismo é um anarquismo revolucionário centrado no problema do trabalho e baseado na coletividade dos trabalhadores, então o comunismo é um anarquismo revolucionário centrado no problema da vida e baseado na comuna popular.


Desde os anos 1870, o princípio do comunismo é admitido pela maioria das organizações anarquistas revolucionárias. A principal excepção foi o movimento espanhol, que conservou o princípio do coletivismo, por causa duma forte influência bakuninista; mas, na realidade, os seus fins mal diferiam dos dos outros movimentos e praticamente o «comunismo libertário», instaurado durante a revolução espanhola de 1936, foi o exemplo mais marcante de comunismo anarquista na história.


O comunismo anarquista ou libertário não deve evidentemente ser confundido com o comunismo muito mais conhecido dos marxistas comunismo baseado na propriedade coletiva da economia e no controle do Estado sobre a produção e a distribuição e baseado também na ditadura do Partido. A origem histórica do movimento anarquista moderno reside nas polemicas com os marxistas dentro da Primeira e Segunda Internacionais e reflete-se na inflexível oposição teórica e prática dos anarquistas ao comunismo autoritário, a qual se reforçou a seguir à Revolução Russa e à Revolução Espanhola. O resultado foi que muitos anarquistas parecem ter-se chamado comunistas não tanto por convicção profunda quanto pelo desejo de lançarem um desafio aos marxistas, no seu próprio terreno, e de os desacreditarem aos olhos da opinião pública. Pode-se reter que os anarquistas só raramente são verdadeiramente comunistas, em parte porque são sempre demasiado individualistas, e em parte também porque se recusam a fazer planos precisos para um futuro que deve ter liberdade plena para se organizar.


O tipo de anarquismo que aparece quando o coletivismo ou o comunismo se concentram exclusivamente sobre o problema do trabalho é o sindicalismo. É a idéia segundo a qual a sociedade deveria estar baseada nos sindicatos considerados como a expressão da classe operária, reorganizados de maneira a cobrirem ao mesmo tempo as atividades e o território em que se desenvolvem, e transformados de maneira a estarem nas mãos da base, de modo que a economia inteira fosse dirigida segundo o princípio do controle operário.


A maioria dos coletivistas anarquistas e numerosos comunistas libertários no século XIX eram implicitamente sindicalistas: era particularmente verdade no caso dos anarquistas aderentes à Primeira Internacional. Mas o anarco-sindicalismo não foi explicitamente desenvolvido antes do despontar do movimento sindical francês no fim do século. (A palavra inglesa «syndicalism» provém da palavra francesa «syndicalisme», que quer dizer simplesmente unionismo profissional).


Quando o movimento unionista (sindical) francês se cindiu em seções revolucionárias e seções reformistas, nos anos 1890, os sindicalistas revolucionários tiveram a maioria e numerosos anarquistas juntaram-se a eles. Alguns, como Fernand Pelloutier e Émile Pouget, tornaram-se influentes e o movimento sindicalista francês, conquanto nunca completamente anarquista, foi uma força importante para o anarquismo até à primeira guerra mundial e à Revolução Russa. As organizações anarco-sindicalistas também foram fortes nos movimentos operários da Itália e da Rússia, logo a seguir à primeira guerra mundial, e sobretudo na Espanha até ao fim da guerra civil, em 1939.


É o anarquismo dos elementos mais militantes e mais conscientes de um movimento operário potente. Mas o sindicalismo não é necessariamente anarquista nem mesmo revolucionário; na prática, os anarco-sindicalistas tiveram tendência para se tornarem autoritários, ou reformistas ou ambas as coisas ao mesmo tempo, e revelou-se difícil manter um equilíbrio entre os princípios libertários e as pressões da luta quotidiana pela obtenção de um salário e de melhores condições de trabalho. Isto não é tanto um argumento contra os anarco-sindicalistas quanto o sinal do perigo que os ameaça constantemente. O argumento verdadeiro contra o anarco-sindicalismo e o sindicalismo em geral é que acentua em excesso a importância do trabalho e o papel da classe operária. O sistema de classes é um problema político crucial, mas a luta das classes não é a única atividade política para os anarquistas. O sindicalismo é aceitável quando se considera como um aspecto do anarquismo não quando dissimula todos os outros aspectos. É um ponto da vista válido até certo ponto, mas não vai suficientemente longe para tratar dos problemas da vida fora do trabalho (3).

Diferenças Mínimas

Reconheçamos que as diferenças entre os vários tipos de anarquismo se esfumaçaram nestes últimos anos. À excepção dos sectários, a maioria dos anarquistas tem tendência para considerar as velhas distinções como mais aparentes que reais como diferenças artificiais de acentuação, até mesmo de vocabulário, mais do que como sérias diferenças de princípio. Melhor seria considerá-las de fato não como anarquismos diferentes, mas como aspectos diferentes do anarquismo, em função da orientação dos nossos interesses pessoais.


Assim, na nossa vida pessoal somos individualistas, tendo as nossas próprias ocupações e escolhendo os nossos companheiros e amigos por razões pessoais na nossa vida social somos mutualistas, concluindo livremente acordos entre nós, dando o que temos e recebendo aquilo de que temos necessidade por meio de trocas igualitárias (4): no nosso trabalho seríamos praticamente coletivistas, juntando-nos aos nossos colegas para produzirmos os bens comuns e na organização do trabalho seríamos sindicalistas, juntando-nos aos nossos colegas para decidirmos como o trabalho deve ser feito; na nossa vida política seríamos mais comunistas do que outra coisa, aliando-nos aos nossos vizinhos para decidirmos como a comunidade deve ser organizada. É com certeza um esquema, mas exprime bastante bem o que os anarquistas pensam hoje.


O QUE QUEREM OS ANARQUISTAS?

É difícil dizer o que querem os anarquistas, não só porque são tão diferentes uns dos outros, mas também porque hesitam em fazer propostas detalhadas para um futuro que não podem nem desejam controlar. No fundo, querem uma sociedade sem governo e tal coisa variará evidentemente de época para época e de lugar para lugar. O traço essencial da sociedade que os anarquistas querem, é que ela será o que os seus membros dela quererão fazer. Não obstante, é possível dizer o que a maioria deles gostaria de ver numa sociedade livre, lembrando nós que não há linha oficial, como de modo idêntico não há meio de reconciliar os extremos: o individualismo e o comunismo.

O Indivíduo Livre

A maioria dos anarquistas adota em primeiro lugar uma atitude libertária para com a vida pessoal e gostaria que houvesse uma escolha muito mais vasta de comportamentos pessoais e de relações sociais. Mas se o indivíduo é o átomo da sociedade, a família é a molécula e a vida familiar subsistirá, mesmo que desapareça a coerção que a reforça. Não obstante, se bem que a família possa ser uma coisa natural, não é mais necessária; uma contracepção eficaz e uma inteligente partilha das tarefas desembaraçaram a humanidade da alternativa entre o celibato e a monogamia. Um casal não é mais obrigado a ter crianças e as crianças podem ser educadas por mais ou menos pessoas do que dois pais. Pode-se viver só e contudo ter parceiros sexuais, ou viver em comunidade sem parceiros permanentes nem parentesco oficial.


Sem dúvida alguma, continuar-se-á a praticar certas formas de casamento e a maioria das crianças será educada num quadro familiar, aconteça o que acontecer à sociedade; mas poderá haver uma grande variedade de acordos pessoais no interior duma só comunidade. A exigência fundamental é que as mulheres estejam libertas da opressão masculina e que as crianças estejam libertas da opressão dos pais. O exercício da autoridade não é melhor no microcosmo familiar do que no macrocosmo social.


As relações pessoais fora da família não serão regulamentadas por leis arbitrárias ou pela competição econômica, mas pela solidariedade natural da espécie humana. Cada um de nós, ou quase, sabe como tratar outrem como gostaria que outrem o tratasse o respeito por si mesmo e a opinião crítica dos outros são bem melhores guias de cação do que o medo ou o sentimento de culpa. Adversários do anarquismo pretenderam que a opressão moral da sociedade seria pior que a opressão física do Estado, mas há um perigo bem maior: num sistema estatal, a autoridade desenfreada dos grupos de guardas, das hordas de linchadores, dos bandos de gatunos ou de criminosos emerge como uma forma rudimentar de Estado, assim que a autoridade regulamentada do Estado real falta por uma razão ou por outra. Porém os anarquistas estão em geral de acordo sobre a vida pessoal não é um problema grave. Ao fim e ao cabo, já muitas pessoas se organizaram à sua maneira, sem esperarem pela revolução nem pelo que quer que seja. Tudo o que é necessário para a libertação do indivíduo é a emancipação dos velhos preconceitos e a obtenção dum certo nível de vida. O verdadeiro problema é a libertação da sociedade.

A Sociedade Livre

A exigência prioritária para uma sociedade livre é a abolição da autoridade e a expropriação da propriedade. Em vez dum governo formado por representantes permanentes eleitos ocasionalmente e por burocratas de carreira praticamente inamovíveis, os anarquistas querem uma coordenação efetuada por delegados temporários, imediatamente revogáveis, e por peritos profissionais verdadeiramente responsáveis. Em tal sociedade, todas as atividades sociais que implicam uma organização, seriam provavelmente administradas por associações livres. Pode-se chamar-lhes conselhos, cooperativas, coletividades, comunas, comités, sindicatos ou sovietes, ou qualquer outra coisa ou título não tem importância, só a função conta.


Haverá associações de trabalho indo da oficina ou da pequena empresa aos maiores complexos industriais ou agrícolas, que se ocuparão da produção e do transporte dos bens, decidirão das condições de trabalho e farão funcionar a economia. Haverá associações regionais indo do lugarejo ou da aldeia às maiores unidades de residência, que se ocuparão da vida da comunidade habitação, ruas, saneamento, conforto. Haverá associações que se ocuparão dos aspectos sociais das atividades, como as comunicações, a cultura, os tempos livres, a pesquisa científica, a saúde e a educação.


A coordenação por meio das associações livres, em vez da administração por meio das hierarquias constituídas, terá por resultado uma descentralização extrema segundo os princípios federalistas. Tal pode parecer um argumento contra o anarquismo, mas nós afirmamos que é um argumento a seu favor. Uma das bizarrias do pensamento político moderno é pretender que as guerras são devidas à existência de pequenas nações, quando as piores guerras da história foram causadas por um pequeno número de grandes países. Do mesmo modo, os governos tentam criar unidades administrativas cada vez maiores, quando a observação mostra que as mais pequenas são as melhores. A queda dos grandes sistemas políticos será um dos maiores benefícios do anarquismo e as populações locais poderão voltar a ser entidades culturais, enquanto as nações desaparecerão.


A associação encarregada de toda a espécie de riqueza ou de bens terá a grave responsabilidade quer de garantir que sejam honestamente repartidos entre as pessoas componentes da comunidade, quer de guardá-los em propriedade comum e de garantir que o seu uso seja honestamente repartido entre as pessoas interessadas. As soluções anarquistas variam e as dos membros duma sociedade livre variarão sem dúvida também; caberá aos membros de cada associação adotarem o método que preferirem. Poderá haver uma remuneração igual para todos, ou proporcional às necessidades, ou não haver remuneração alguma. Certas associações utilizarão o dinheiro para as trocas, outras para transações importantes ou complexas, outras não utilizarão um centavo. Os bens serão comprados ou alugados, racionados ou livres. Se especulações teóricas deste tipo parecem absurdas, irrealistas ou utópicas, pense-se então simplesmente em tudo o que possuímos já em comum e em tudo o que pode ser utilizado sem se pagar.


Na Inglaterra, por exemplo, a comunidade possui algumas indústrias pesadas, os transportes aéreos e ferroviários, os barcos das carreiras e os autocarros, a rádio e a televisão, a água, o gás e a eletricidade, mas temos que pagar para utilizar tudo isso; em contrapartida, as ruas, as pontes, os rios, as praias, os parques, as bibliotecas, os terrenos de jogos, as casas de banho públicas, as escolas, as universidades, os hospitais e os serviços de pronto socorro não são apenas propriedade comum, como são também serviços gratuitos. A distinção entre propriedade privada e propriedade comum e entre o que se pode utilizar pagando e o que é gratuito, é completamente arbitrária. Pode parecer natural que se possa utilizar as estradas e as praias sem nada pagar, mas não foi sempre assim e a gratuidade dos hospitais e das universidades só existe em Inglaterra desde o começo do século. Do mesmo modo, pode parecer natural que se pague pelos transportes e pelo combustível, contudo esse não será sempre o caso necessariamente e não há razão para que isso não seja gratuito.


Com certeza, todos os serviços devem ser financiados por uma espécie de impostos, mas estes não terão sempre forçosamente a forma constrangedora que têm na sociedade atual. Pode-se imaginar que os membros duma sociedade garantam sem remuneração uma grande parte dos serviços públicos, que as contribuições sejam voluntárias ou diferenciadas (dinheiro ou outras prestações); o funcionamento dos serviços públicos depende evidentemente da partilha das tarefas estabelecida em dada sociedade.


A divisão eqüitativa ou a livre distribuição das riquezas, em vez da sua acumulação, terá por resultado o fim do sistema de classes baseado na propriedade. Porém os anarquistas também querem o fim do sistema de classes baseado no controle monopolístico. Isso implica uma vigilância constante para evitar o crescimento da burocracia nas associações e acima de tudo implica a reorganização do trabalho sem classe dirigente.

O Trabalho

As necessidades elementares do homem são a alimentação, o tecto e o vestuário, que Ihe permitem sobreviver; as necessidades secundárias são algumas comodidades suplementares, que fazem com que a vida valha a pena ser vivida. A primeira atividade econômica de todo o grupo humano é a produção e a distribuição de bens que satisfazem tais necessidades; e o aspecto mais importante da sociedade depois das relações pessoais, nas quais se fundamenta é a organização do trabalho indispensável. Que pensam os anarquistas do trabalho? Em primeiro lugar, consideram que todo o trabalho é desagradável, mas pode ser organizado de maneira a tornar-se suportável e mesmo agradável (5); em segundo lugar, que o trabalho deveria ser organizado pelos que o fornecem realmente.


Os anarquistas estão de acordo com os marxistas para dizerem que o trabalho na sociedade atual aliena o trabalhador. Não é a sua vida, mas o que faz para poder viver; a sua vida é o que faz fora do trabalho e quando faz alguma coisa que lhe dá prazer, não lhe chama trabalho. É o caso da maior parte dos trabalhos que a maioria das pessoas faz, em toda a parte, e é certamente o caso duma quantidade de trabalhos que uma quantidade de pessoas fez, em todas as épocas. O labor fatigante e repetitivo que é preciso efetuar para fazer crescer plantas e criar animais, para fazer funcionar ramos industriais ou dos transportes, para proporcionar às pessoas o que desejam e para lhes tirar da vista aquilo que não querem, semelhante labor não pode ser abolido sem uma queda radical do nível de vida material; e a automatização, que pode diminuir a fadiga, aumenta ainda mais a repetição. Contudo os anarquistas afirmam que a solução não é condicionar as pessoas para lhes fazer crer que esta situação é inevitável; o que é preciso fazer é reorganizar o trabalho essencial de tal maneira que, em primeiro lugar, seja normal que cada pessoa capaz faça a sua parte e que não passe nisso mais do que escassas horas por dia; em segundo lugar, que seja facultada a cada um a possibilidade de alternar entre diferentes tipos de trabalhos aborrecidos, os quais pela sua variedade perderão um pouco do caracter aborrecido. Não é apenas uma questão de partes eqüitativas para cada um, mas também de trabalhos equivalentes.


Os anarquistas estão de acordo também com os sindicalistas para dizerem que o trabalho deve ser organizado pelos trabalhadores. Tal não quer dizer que a classe operária ou os sindicatos, ou um partido da classe operária (quer dizer um partido que pretenda representá-la) dirigirá a economia e terá o controle supremo do trabalho. Também não quer dizer, em escala mais pequena, que o pessoal duma fábrica poderá eleger o diretor ou ver as contas. Quer simplesmente dizer que as pessoas que têm uma tarefa particular controlam total e diretamente o que fazem, sem patrões nem diretores nem inspetores. Alguns trabalhadores podem vir a ser bons coordenadores e podem limitar-se a fazer a coordenação, mas não é necessário que tenham qualquer poder sobre os que fornecem o trabalho real. Outros podem ser preguiçosos ou ineficazes, porém já isso hoje acontece. Deve-se chegar a ter o maior controle possível sobre o próprio trabalho, assim como sobre a própria vida.


O supracitado princípio aplica-se a todas as espécies de trabalho tanto aos campos como às fábricas, às grandes ou às pequenas empresas, a trabalhos qualificados ou não e tanto aos trabalhos sujos como às profissões liberais e não é só uma medida útil para tornar os operários felizes, mas também um princípio fundamental para toda a economia liberta. Objetar-se-á imediatamente que o controle total dos trabalhadores levará a uma competição desastrosa entre os diversos locais de trabalho e à produção de bens inúteis; ao que se responderá imediatamente que a falta total de controle operário conduz exatamente a semelhante situação. O que faz falta é uma planificação inteligente e, apesar do que muita gente parece pensar, esta não assenta num controle mais extenso da cúpula, mas numa informação mais extensa da base.


A maioria dos economistas preocupou-se mais com a produção do que com o consumomais com o fabrico de bens do que com a sua utilização. Os homens de esquerda e de direita querem todos que a produção aumente, ou para que os ricos se enriqueçam, ou para que o Estado se reforce, e daí resulta uma «sobreprodução» vivendo paredes meias com a pobreza, uma produtividade crescente ao lado dum desemprego crescente, edifícios administrativos sempre mais altos ao lado duma crise da habitação, maiores colheitas por hectare ao lado de cada vez mais hectares por alqueivar. Os anarquistas preocupam-se mais com o consumo do que com a produção com a utilização dos bens para a satisfação das necessidades de todos, não para o aumento dos lucros dos ricos e dos poderosos.

O Necessário e o Supérfluo

Uma sociedade que tem pretensões quanto a um mínimo de decência, não pode autorizar a exploração das necessidades fundamentais. Pode-se admitir que os objetos de luxo sejam comprados e vendidos, porquanto se tem a escolha de utilizá-los ou não; mas os objetos necessários não são puras mercadorias, já que não se tem a escolha de utilizá-los ou não. Se se deve retirar qualquer coisa do mercado comercial e das mãos dos grupos monopolísticos, é certamente a terra sobre a qual vivemos, a comida que aí cresce, as casas que aí são construídas e as coisas essenciais que constituem a base material da vida humana: vestuário, utensílios, móveis, combustível, etc. Também é evidente que, quando uma coisa necessária é abundante, cada um deveria poder servir-se de quanto tem necessidade; mas, quando há falta de qualquer coisa, deveria haver um sistema de racionamento adotado livremente, de tal maneira que cada um tivesse uma parte eqüitativa. Qualquer coisa evidentemente soa a falso, num sistema onde esbanjamento e penúria vivem lado a lado, onde alguns têm mais que o necessário, enquanto outros têm falta de tudo.


Acima de tudo, é claro que o primeiro dever duma sociedade sã é eliminar a raridade dos bens indispensáveis como a falta de comida nos países subdesenvolvidos e a falta de alojamentos nos países desenvolvidos pela utilização dos conhecimentos técnicos e dos recursos sociais. Se as qualificações e a força de trabalho existente na Inglaterra ou na França, por exemplo, fossem convenientemente utilizadas, não há qualquer razão para que não se pudesse produzir comida bastante e construir casas suficientes para alimentar e alojar toda a população. Tal não é o caso hoje, porque a sociedade atual tem outras prioridades, mas não é impossível. Pretendeu-se em dada época que era impossível que cada um estivesse vestido convenientemente e os pobres vestiam farrapos; agora, dispõe-se duma quantidade de peças de vestuário e poder-se-ia também dispor duma quantidade de outras coisas.


O luxo, por estranho paradoxo, também é necessário, mas não é uma necessidade de base. O segundo dever duma sociedade sã é tornar o luxo acessível livremente, se bem que seja um domínio onde o dinheiro poderia ter ainda uma função útil, com a condição de não ser distribuído segundo o sistema ridículo dos países capitalistas, ou segundo o sistema ainda mais absurdo dos países comunistas. O problema essencial é que cada um tenha acesso livre e igual ao luxo. Mas o homem não vive apenas de pão, nem mesmo de bolos. Os anarquistas não quereriam ver todas as atividades dos momentos de ócio, intelectuais, culturais, etc., nas mãos da sociedade mesmo da sociedade mais libertária. Não obstante, há atividades que não podem ser deixadas aos indivíduos agrupados em associações livres, mas que devem ser geridas pela sociedade inteira. São os serviços sociais, o apoio mútuo para além dos limites da família e dos amigos, fora do local de habitação ou de trabalho. Examinemos três desses serviços.

1- A Sociedade do Bem-Estar

A educação é muito importante nas sociedades humanas, porque o homem leva muito tempo a crescer e a aprender os atos e técnicas necessários à vida social; e os anarquistas interessaram-se sempre muito pelos problemas da educação. Vários pensadores anarquistas trouxeram contributos de valor à teoria e à prática da educação e vários reformadores da educação tiveram tendências libertárias de Rousseau e Pestalozzi a Montessori, A. S. Neill e Freinet. Idéias sobre a educação, que se julgava utópicas, estão agora integradas no ensino tanto público quanto privado e a educação é talvez o domínio da sociedade mais entusiasmante para os que querem pôr o anarquismo em prática. Se nos disserem que o anarquismo é uma idéia atraente mas inaplicável, basta-nos mostrar uma escola de vanguarda, uma turma de adaptação praticando métodos cativos, um clube de jovens autogerido. No entanto, mesmo o melhor sistema de educação continua controlado por pessoas investidas de autoridade: professores, diretores, administradores, inspetores, etc. Os adultos encarregados da educação têm geralmente tendência para controlar todas as suas formas; na verdade, não é necessário que ela seja controlada por eles, nem por razões ainda mais óbvias pelas pessoas que nada têm a ver com o assunto.


Os anarquistas gostariam que as reformas atuais do ensino fossem muito mais longe. Não se deveria abolir apenas a disciplina rígida e os castigos, dever-se-ia abolir toda a disciplina e toda a punição. Não se deveria libertar as instituições de ensino apenas do poder das autoridades exteriores, os próprios alunos deveriam ser libertos do poder dos professores e dos diretores. Numa relação educativa sã, o fato dum saber mais do que o outro não é razão para que o professor tenha uma autoridade qualquer sobre o aluno. O estatuto dos mestres na sociedade atual baseia-se na idade, na força, na experiência, na lei; mas o único estatuto que os mestres deveriam ter, deveria basear-se nos seus conhecimentos em determinado campo e na capacidade para ensiná-lo e, por fim, na capacidade para inspirarem a admiração e o respeito. O que faz falta não é tanto um contra-poder estudantil se bem que seja um útil corretivo ao poder dos professores e dos burocratas quanto um «controle operário» exercido por todos os que se sentem interessados por uma associação educativa. O problema essencial é quebrar o elo entre ensinar e governar e libertar a educação.


Esta ruptura está de fato muito mais próxima no serviço médico do que no ensino. Os médicos já não são mágicos, as enfermeiras já não são santas nem freiras; e em muitos países em particular na Inglaterra o direito aos cuidados médicos gratuitos está garantido. O que faz falta, é uma extensão do princípio da liberdade econômica ao aspecto político da medicina. Dever-se-ia poder ir em toda a parte ao hospital sem pagar e dever-se-ia também poder trabalhar nos hospitais sem hierarquia. Uma vez mais, é preciso um controle exercido por todos os trabalhadores empregados numa instituição médica. Do mesmo modo que o ensino é feito para os alunos, também os serviços médicos são feitos para os pacientes.


O tratamento da delinqüência também fez muitos progressos, conquanto ainda esteja longe de ser satisfatório. Que pensam os anarquistas da delinqüência? Em primeiro lugar, consideram que a maioria daqueles a que se chama criminosos, são como as outras pessoas, apenas um pouco mais pobres, mais fracos, mais loucos, mais infortunados; em segundo lugar, que os que prejudicam os outros vezes e vezes sem conta, não deveriam ser punidos a seu turno, mas que seria necessário que alguém tomasse conta deles. Os maiores criminosos não são os arrombadores, mas os patrões; não são os gangsters, mas os governantes; não são os assassinos, mas os que exterminam em massa. Algumas injustiças menores são amarradas ao pelourinho e punidas pelo Estado, enquanto as maiores injustiças da sociedade atual são dissimuladas e mesmo cometidas pelo próprio Estado. Em geral, a punição causa um dano maior à sociedade que o crime; é mais sistemática, está melhor organizada e é muito mais eficaz. Não obstante, mesmo a sociedade mais libertária deverá proteger-se contra algumas pessoas e isso implicará forçosamente um certo constrangimento. Porém o tratamento adequado da delinqüência fará parte do sistema educativo e curativo e não será um sistema penal institucionalizado. Como último recurso, não se imporá a prisão nem a pena de morte, mas o boicote ou a expulsão (6).
  
2- O Pluralismo
  
O contrário também pode acontecer. Um indivíduo ou um grupo pode recusar-se a juntar-se à melhor sociedade possível, ou pode insistir para deixá-la; ninguém poderia detê-lo. Teoricamente, um homem pode prover às suas necessidades só, ainda que na prática dependa da comunidade que lhe fornece materiais e recebe os seus produtos em troca; é portanto difícil que alguém se baste literalmente a si mesmo. Uma sociedade coletivista ou comunista deverá tolerar e mesmo encorajar as zonas de individualismo. O que seria inaceitável, seria que uma pessoa independente tentasse explorar a força de trabalho dos outros, empregando-os e pagando-lhes salários, ou que trocasse produtos a preços de usura. Tal não deve acontecer, porque em condições normais não se trabalhará nem se comprará produtos em proveito de outrem, mas apenas no próprio; e da mesma maneira que nenhuma lei proibirá a apropriação, nenhuma proibirá a expropriação poder-se-á tomar o que se quiser a outrem, mas a pessoa em questão poderá retomá-lo. A autoridade e a propriedade poderão dificilmente ser reencontradas por indivíduos isolados.


Um perigo maior pode vir da parte de grupos independentes. Uma comunidade separada poderá existir facilmente numa sociedade e poderá provocar graves tensões; se regressar ao sistema de propriedade e de autoridade, o que poderá aumentar o nível de vida duma minoria, outras sentir-se-ão tentadas a juntar-se aos separatistas, particularmente se a sociedade no conjunto atravessar um período duro.


Contudo uma sociedade livre deve ser pluralista e tolerar não só diferenças de opinião sobre a maneira de praticar a liberdade e a igualdade, mas também desvios à sua teoria da liberdade e da igualdade. A única condição deveria ser que ninguém fosse forçado a aderir a nenhuma tendência contra a sua vontade e aí será necessário uma espécie de constrangimento para proteger mesmo a mais libertária das sociedades. Mas os anarquistas querem substituir a sociedade de massa por uma massa de sociedades (7), vivendo em conjunto tão livremente como os seus membros. O maior perigo para as sociedades livres que existiram não foi a regressão interna, mas a agressão externa, e o verdadeiro problema não é tanto saber como fazer funcionar uma sociedade livre quanto saber como fazê-la arrancar.
  
3- Revolução Ou Reforma
  
Os anarquistas têm sido tradicionalmente partidários duma revolução violenta para estabelecer uma sociedade livre, mas alguns deles rejeitaram a violência, ou a revolução, ou ambas ao mesmo tempo dado que a violência é tantas vezes seguida duma contra-violência e a revolução duma contra-revolução. Por outro lado, poucos anarquistas têm sido partidários de simples reformas, porque constatavam que, enquanto o sistema de autoridade e de propriedade existir, mudanças superficiais nunca porão em perigo as estruturas fundamentais da sociedade. O difícil da questão é que o que os anarquistas querem, é obviamente revolucionário, mas uma revolução não acarretará necessariamente e provavelmente até não o que querem. Eis a razão pela qual os anarquistas se decidiram muitas vezes a ações desesperadas ou caíram numa inatividade sem esperança.


Praticamente, a maioria das disputas entre os anarquistas reformistas e os anarquistas revolucionários é vã, porque só os revolucionários mais fanáticos se recusam a acolher favoravelmente as reformas e só os reformistas exaltados se recusam a acolher com prazer a revolução; todos os revolucionários sabem bem que a sua cação não levará geralmente a mais nada do que a reformas e todos os reformistas sabem que a sua cação leva em geral a uma espécie de revolução ou a outra (8). O que os anarquistas querem, é uma pressão constante que leve ao convencimento dos indivíduos, à formação de grupos, à reforma de instituições, ao levantamento do povo e à destruição da autoridade e da propriedade. Se isso acontecesse sem desordem, satisfaria os nossos desejos; mas nunca assim aconteceu e provavelmente nunca acontecerá. Chega o momento em que é preciso sair-se da casca e afrontar as forças do Estado no bairro onde vivemos, no trabalho, nas ruas e se o Estado for vencido, tanto mais será preciso continuar a agir, para impedir o estabelecimento dum novo Estado e para se começar a construir uma sociedade livre. Há lugar para todos em tal processo e todos os anarquistas encontrarão algo para fazer, no combate pela obtenção do que querem. 
  
QUE FAZEM OS ANARQUISTAS?
  
A primeira coisa que os anarquistas fazem, é pensar e falar. Poucas pessoas são anarquistas de nascença e é uma experiência perturbadora passar a sê-lo, que implica um considerável revolucionamento emotivo e intelectual. Um anarquista consciente está sempre numa situação difícil (mais ou menos, digamos, como um ateu na Europa medieval); é difícil transpor as barreiras do pensamento e persuadir as pessoas que a necessidade do governo (como a existência de Deus) não é uma coisa clara em si mesma, mas que pode ser posta em questão e mesmo rejeitada. Um anarquista deve elaborar completamente uma nova visão do mundo e uma nova maneira de nele agir; isso faz-se em geral em conversas com pessoas que são anarquistas ou estão próximas do anarquismo, particularmente em grupos ou atividades de esquerda.


Aliás, mesmo o anarquista mais dogmático tem contatos com não-anarquistas e tais contatos são inevitavelmente outras tantas ocasiões de difundir as idéias. Na família, com os amigos, em casa, na trabalho, todo o anarquista que não for unicamente «filosófico» é forçosamente influenciado. Sem generalizar de maneira absoluta, é usual que os anarquistas estejam menos preocupados do que as outras pessoas com problemas tais como a fidelidade do outro cônjuge, a obediência dos filhos, o conformismo dos vizinhos ou a pontualidade dos colegas. Os empregados e os cidadãos anarquistas sentem-se menos inclinados a fazer o que lhes dizem, e os professores e os pais anarquistas gostam menos de obrigar os outros a fazer o que eles próprios lhes dizem. Um anarquismo que não transparece na vida pessoal e quotidiana não inspira. verdadeiramente muita confiança.


Basta a alguns anarquistas terem as suas idéias e limitarem as suas opiniões à própria vida, mas a maioria quer ir mais longe e influenciar outrem. As discussões sobre problemas sociais ou políticos, os anarquistas empenhados levam o ponto de vista libertário e nas lutas públicas defendem a solução libertária. Mas, para terem um impacto real, têm que trabalhar com outros anarquistas ou dentro dum grupo organizado que tenha uma base mais permanente do que o simples encontro ao acaso. É o começo da organização, a qual leva à propaganda e finalmente à ação.
  
A Organização e a Propaganda
  
A forma inicial da organização anarquista é o grupo de discussão. Se se revela viável, desenvolver-se-á em duas direções: criará ligações com outros grupos e alargará o campo de atividade. As ligações com outros grupos podem finalmente levar a uma espécie de federação que coordenará as ações e empreenderá novas ações mais ambiciosas. A atividade anarquista começa normalmente por propaganda para levar à idéia anarquista de base. Há duas maneiras principais de fazê-lo: a propaganda pela palavra e a propaganda pelo ato.


As palavras podem ser escritas ou ditas. Hoje, os discursos são menos ouvidos que outrora, mas as reuniões públicas em sala ou no exterior continuam a ser um bom método para atingir diretamente as pessoas. O estádio final, quando alguém se torna anarquista, é normalmente acelerado por contatos pessoais e uma assembléia pode propiciar a ocasião. Tanto quanto a assembléias especificamente anarquistas, vale a pena assistir a outras reuniões para ai levar o ponto de vista libertário, participando nos discursos ou interrompendo-os.


Hoje, o veículo da palavra mais aperfeiçoado é evidentemente a rádio e a televisão. Mas são meios de propaganda assaz pouco satisfatórios, porque não são feitos para comunicar idéias pouco familiares ou explicar posições críticas da política. O anarquismo passará mais eficazmente na rádio, se se contar uma história de que se sugere o sentido ético. É válido também para outros meios de difusão como o cinema ou o teatro, pelos quais pessoas com bons dotes podem fazer uma propaganda extremamente eficaz. Em geral, contudo, os anarquistas não souberam utilizar esses meios como se teria podido desejar.


De qualquer forma, por muito eficaz que seja a propaganda pela palavra, os escritos são necessários para completar a mensagem e constituem a forma de propaganda, tanto ontem como hoje, mais freqüente. A idéia duma sociedade sem governo pôde existir de maneira subterrânea durante séculos e emergir ocasionalmente em movimentos populares radicais, mas foram escritores como Paine, Godwin. Proudhon, Stirner que pela primeira vez a deram a conhecer a milhares de leitores. E logo que a idéia ganhou raízes e se exprimiu em grupos organizados, então viu-se aparecer o dilúvio de jornais e de brochuras que continua a ser o principal meio de comunicação no movimento anarquista. Algumas dessas publicações foram excelentes; a maior parte foi mais ou menos medíocre; mas todas foram essenciais para afirmar que o movimento não se fechava dentro do casulo, antes mantinha um diálogo constante com o mundo exterior. Diga-se uma vez mais, tanto quanto produzir obras especificamente anarquistas, vale a pena colaborar noutros periódicos e escrever outros livros para propor um ponto de vista libertário a leitores não anarquistas. Mas as palavras, ditas e escritas, mesmo se necessárias, nunca bastam. Podemos falar e escrever em termos gerais tanto quanto quisermos, mas só com isso nunca chegaremos a nada. Tem que se ir portanto além da simples propaganda de duas maneiras: discutindo problemas particulares no bom momento e de maneira imediatamente eficaz, ou chamando a atenção por meio de qualquer coisa mais incisiva e dramática do que as simples palavras. A primeira maneira é a agitação; a segunda, a propaganda pelo cato.


A agitação é o lugar onde a teoria política afronta a realidade política. A agitação anarquista é útil, a partir do momento em que as pessoas estão particularmente receptivas ao que propõe, por causa de qualquer tensão no sistema estatal: durante guerras civis ou nacionais, durante lutas industriais ou agrárias, por altura de campanhas contra a opressão ou quando surgem escândalos públicos e consiste essencialmente numa propaganda com os pés assentes na terra, realista e realizável. Numa situação em que a tomada de consciência é rápida, as pessoas não se interessam tanto por especulações teóricas gerais como por propostas específicas. é a ocasião de se mostrar em detalhe o que está errado no sistema atual e de que maneira se deve corrigir o erro. A agitação anarquista foi por vezes eficaz, especialmente em França, em Espanha e nos Estados-Unidos, antes da primeira guerra mundial; na Rússia, na Itália e na China, a seguir à primeira guerra mundial; em Espanha, nos anos 30; por vezes, na Inglaterra, à volta de 1880, nos primeiros anos da década de 1940 e, depois, no decênio de 1960 (9).


A idéia da propaganda pelo cato é amiúde mal compreendida, tanto pelos anarquistas como pelos seus adversários. Quando a expressão foi utilizada pela primeira vez (nos anos 1870), significava manifestações, motins, levantamentos, interpretados mais como cações simbólicas com o fito de ganhar uma nomeada útil do que como sucessos imediatos. O essencial era que a propaganda não consistisse só em palavras sobre o que devia ser feito, mas também em informações sobre o que se tinha passado. Tal não significava na origem e continua a não significar violência, menos ainda assassinato; mas, depois da onda de atentados anarquistas nos anos 1890, a propaganda pelo ato foi identificada no espírito popular com atos pessoais de violência e esta imagem ainda não se apagou.


Contudo, para a maioria dos anarquistas de hoje, a propaganda pelo cato é essencialmente de natureza não violenta, ou pelo menos faz-se sem violência, e opõe-se mais às bombas do que as defende. Voltou de fato ao significado inicial, conquanto tenha tendência atualmente para revestir diferentes formas: «sit-down» e «sit-ins», greves não controladas e não regulamentadas. ocupações, apupos organizados e manifestações selvagens. A propaganda pelo cato não é necessariamente ilegal, mas na prática é-o muitas vezes. A desobediência civil é um tipo particular de propaganda pelo cato que implica a infração aberta e deliberada das leis para atrair a atenção. Não agrada a muitos anarquistas, porque é uma provocação deliberada à repressão, o que é contrário ao princípio anarquista de evitar todo o contato voluntário com as autoridades; mas em certos momentos os anarquistas acharam que a desobediência civil era uma forma útil de propaganda.


A agitação, sobretudo quando surte o efeito desejado, e a propaganda pelo cato, sobretudo quando é ilegal, vão muito mais longe do que a simples propaganda. A agitação incita à cação e a propaganda pelo cato implica a cação; é ai que os anarquistas entram no domínio da ação e que o anarquismo passa a ser uma coisa séria.
  
A Ação
  
A passagem da teoria anarquista à aplicação prática comporta uma mudança da organização. O grupo típico de discussão ou de propaganda, que está facilmente aberto à participação exterior, se expõe à vigilância das autoridades e se fundamenta na livre ação de cada um, torna-se mais exclusivo e mais formal. É um momento perigoso, porquanto uma atitude demasiado rígida leva qualquer um a ser autoritário e sectário, enquanto uma atitude demasiado flexível leva qualquer um a ser confuso e irresponsável. É ainda mais perigoso pelo fato de, quando o anarquismo se torna uma coisa séria, os anarquistas se tornarem uma séria ameaça para as autoridades e pelo fato da verdadeira perseguição começar.


A forma habitual de ação anarquista é a agitação sobre dado assunto, que se transforma em participação numa campanha de protesto. Esta pode ser reformista, lutar por qualquer coisa que não mudará todo o sistema, ou revolucionária, favorável a uma mudança do próprio sistema; pode ser legal ou ilegal, ou ambas ao mesmo tempo, violenta, não violenta, ou simplesmente sem violência. Pode ter hipóteses de triunfar ou nenhuma hipótese desde o princípio. Os anarquistas podem ser atores importantes ou mesmo os atores principais da campanha, ou então podem simplesmente ser um dos numerosos grupos que nela participam. Pensa-se logo de seguida numa grande variedade de possibilidades de ação e de há um século a esta parte os anarquistas experimentaram-nas todas. A forma de ação mais feliz e mais típica é a ação direta.


Também a idéia da ação direta é muitas vezes mal compreendida, tanto pelos anarquistas quanto pelos seus adversários. Quando esta expressão foi utilizada pela primeira vez (nos anos 1890), não significava outra coisa senão o contrário da ação «política» quer dizer, parlamentar; e no contexto do movimento operário, significava ação «industrial», em particular greves, boicotes e sabotagens, que eram encarados como atos preparativos e antecipativos da revolução. O essencial era que a ação não fosse efetuada indiretamente por meio de representantes, mas diretamente pelos que estavam mais estreitamente englobados por determinada situação concreta, que incidisse diretamente sobre a situação em causa e que se destinasse a conseguir mais um certo sucesso do que um simples efeito publicitário.


Isto poderia parecer assaz claro, mas confundiu-se bastante a ação direta com a propaganda pelo cato e sobretudo com a desobediência civil. Na realidade, a técnica da ação direta foi desenvolvida no movimento sindicalista francês, em reação contra as técnicas extremistas da propaganda pelo ato; em vez de se deixarem arrastar por movimentos espetaculares, mas ineficazes, os sindicatos avançaram na senda do trabalho monótono e obscuro, mas eficaz pelo menos em teoria. Porém, à medida que o movimento sindicalista crescia e entrava em conflito com o sistema em França, em Espanha, na Itália. nos Estados-Unidos e na Rússia, a ação direta pôs-se a desempenhar a mesma função que os atos de propaganda pelo ato. Depois, quando Gandhi deu o nome de ação direta ao que era de fato uma forma não violenta de desobediência civil, as três fases confundiram-se e acabaram por significar quase a mesma coisa: qualquer forma de atividade política que se opõe à lei ou pelo menos se coloca fora das regras constitucionais.


Todavia, para a maioria dos anarquistas, a cação direta conserva o sentido original, conquanto ao lado das formas tradicionais adote novas formas: ocupação de bases militares, de universidades, de casas desabitadas, de fábricas, por exemplo. O que a torna particularmente atraente, é que está tão adequada aos princípios libertários quanto a si mesma. A maioria das formas de ação política por parte dos grupos de oposição tem por fim a tomada do poder; alguns grupos utilizam as técnicas da ação direta, mas assim que tomam o poder, abandonam-nas e ainda por cima proíbem que outros grupos as utilizem. Os anarquistas pelo contrário são partidários da cação direta em todos os momentos; vêem nela a ação natural, a ação que se reforça a si mesma e aumenta à medida que a utilizam, a ação que pode ser empregada para criar e fazer viver uma sociedade livre.


Mas há anarquistas que não crêem na possibilidade de se criar uma sociedade livre e por conseguinte as suas ações diferem das supracitadas. Uma das tendências pessimistas mais fortes no anarquismo é o niilismo. A palavra foi criada por Turgueniev (no romance Pais e filhos) para descrever a atitude céptica e de desprezo dos jovens populistas russos um século atrás, mas pôs-se a significar o ponto de vista que denega qualquer valor não só ao Estado ou à moral dominante, mas também à sociedade e à própria humanidade; para o niilista rigoroso, nada é sagrado, nem sequer ele mesmo dest'arte dá um passo a mais que o egoísta mais convencido.


Uma forma extrema de cação inspirada pelo niilismo é o terrorismo pelo terrorismo, mais do que por vingança ou por propaganda. Os anarquistas não têm o monopólio do terror, mas ele foi amiúde muito apreciado nalgumas seções do movimento. Depois da experiência frustrante que a pregação duma teoria minoritária numa sociedade hostil ou muitas vezes indiferente representa, é tentador atacar fisicamente a dita sociedade. Tal atitude não pode mudar grande coisa à hostilidade, mas impedirá certamente a indiferença; que me odeiem, a partir do momento em que têm medo de mim, eis a linha de pensamento terrorista. Mas se o assassinato premeditado e seletivo foi improdutivo, o terror indiscriminado foi contraproducente e não é exagerado dizer-se que nada fez mais mal ao anarquismo do que a corrente da violência psicopata que, de certo modo, sempre o atravessou e ainda o atravessa.


Uma forma atenuada de ação inspirada pelo niilismo é a boemia, que é um fenômeno constante, mesmo se o nome por que é designada parece mudar consoante mudam as suas manifestações. Também foi muito apreciada nalgumas seções do movimento anarquista e com certeza também fora dele. Em vez de atacar a sociedade, o boêmio escapa-se dela ainda que nela viva e a seu cargo, muito embora viva sem se conformar com os valores da dita sociedade. Disse-se muitas asneiras sobre o assunto. Os boêmios podem ser parasitas, mas isso acontece com muita gente. Por outro lado, não fazem mal a ninguém, a não ser a si mesmos, o que não acontece com muitas pessoas. O que se pode dizer de melhor sobre eles, é que os boêmios podem fazer bem divertindo-se e pondo em questão os lugares comuns e os valores tradicionais de maneira ostensiva, mas inocente. O que se pode dizer de pior, é que não podem realmente mudar a sociedade e arriscam-se a perder as próprias energias e a desviar as dos outros; ora, para muitos anarquistas, ai está o problema central do anarquismo.


Uma maneira mais adequada e construtiva de alguém se evadir da sociedade é deixá-la e organizar uma nova comunidade autárquica. Em certos momentos, foi um fenômeno muito difundido, no meio dos entusiastas religiosos da Idade Média, por exemplo, e no meio de diferentes grupos mais recentemente, em particular na América do Norte e na Palestina. Os anarquistas foram influenciados outrora por esta tendência (10), mas já o não são hoje; como acontece com outros grupos de esquerda, preferem organizar a sua própria comunidade informal, baseada num núcleo de pessoas vivendo e trabalhando em conjunto, no interior da sociedade, em vez de saírem dela. Pode-se ver nisso o núcleo duma nova forma de sociedade crescendo no interior das velhas formas, ou então uma forma viável de refúgio contra as exigências da autoridade, não demasiado extremista e aceitável para o comum dos mortais.


Há outra forma de ação baseada numa visão pessimista do futuro do anarquismo: o protesto permanente. Segundo este ponto de vista, não há nenhuma esperança de mudar a sociedade, de destruir o sistema estatal, nem de pôr o anarquismo em prática. O importante não é o futuro, a adesão estrita a um ideal determinado e a elaboração cuidada duma bela utopia, mas o presente, o reconhecimento tardio de uma amarga realidade e a resistência constante a uma situação intolerável. O protesto permanente é a teoria de muitos antigos anarquistas que não renunciaram àquilo em que criam, mas que já não têm esperanças no triunfo; é também a prática de muitos anarquistas cativos que conservam intacto aquilo em que crêem e que continuam como se continuassem a ter esperanças no triunfo, mas que sabem conscientemente ou inconscientemente que nunca verão o sucesso. O que os anarquistas fizeram no século passado, pode ser descrito como um protesto permanente, quando se olha para trás; mas é tão dogmático dizer-se que nada vai alguma vez mudar, quanto dizer-se que tudo deve inevitavelmente mudar e ninguém pode dizer se o protesto se tornará ou não eficaz e se o presente vai subitamente passar-nos à frente e transformar-se no almejado futuro. A distinção real reside no fato do protesto permanente ser considerado como cação de retaguarda num caso desesperado, enquanto a maior parte da atividade anarquista é vivida como uma cação de vanguarda, ou pelo menos como uma ação de pioneiros empenhados num combate que podemos não ganhar e que pode nunca mais acabar, mas que vale sempre a pena travar.


As melhores táticas no combate em questão são as que são conformes à estratégia geral da guerra pela liberdade e pela igualdade, desde as escaramuças de guerrilha na vida pessoal até às batalhas de posições nas maiores lutas sociais. Os anarquistas são quase sempre uma pequena minoria, portanto raramente têm a possibilidade de escolha do campo de batalha, porém devem combater em toda a parte onde houver ação. Em geral, as ocasiões mais conseguidas foram aquelas em que a agitação dos anarquistas levou à sua participação em mais largos movimentos de esquerda em particular, no movimento operário, mas também em movimentos antimilitaristas ou até mesmo pacifistas efetuados em países que se preparavam para a guerra ou nela participavam, em movimentos anticlericais ou humanistas em países religiosos, em movimentos pela libertação nacional ou colonial, pela igualdade racial ou sexual, pela reforma legal ou penal, ou pelas liberdades civis em geral.


Semelhante participação implica inevitavelmente uma aliança com grupos não anarquistas e certos compromissos; os anarquistas que se empenham profundamente em tais cações, correm sempre o risco de abandonarem o próprio anarquismo. Por outro lado, recusar-se a correr esse risco significa em geral esterilidade e sectarismo, além de que, ao que parece, a influência do movimento anarquista foi sempre diretamente proporcional ao seu empenhamento a fundo. O contributo particular dos anarquistas em tais ocasiões reveste dois aspectos: Insistir na finalidade duma sociedade libertária e insistir para que métodos libertários sejam utilizados para lá se chegar. Na realidade, trata-se de um só contributo, porque o que podemos sugerir de mais importante não é apenas que o fim não justifica os meios, mas também que os meios determinam o fim: os meios são fins, na maior parte dos casos. Podemos estar certos das nossas próprias cações, mas não das suas conseqüências.


Uma boa ocasião para darem um empurrão na sociedade na direção do anarquismo, é oferecida aos anarquistas pela sua participação cativa com estes critérios em movimentos não sectários tais como: o Movimento do 22 de Março em França, o S. D. S. na Alemanha, os Provos na Holanda, o Comitê dos 100 na Inglaterra, os Zengakuren no Japão e os diferentes grupos pelos direitos cívicos, a resistência à guerra e o contra-poder estudantil nos Estados-Unidos. Outrora, a melhor ocasião para um movimento real na direção do anarquismo residia com certeza nos episódios de sindicalismo militante em França, em Espanha, na Itália, nos Estados-Unidos e na Rússia e, acima de tudo, nas revoluções russa e espanhola; hoje, não reside tanto nas revoluções violentas e autoritárias da Ásia, da África e da América Latina, quanto nas sublevações insurrecionais como as da Hungria em 1956 e da França em 1968 (11).


NOTAS
  
1 O autor tem perfeita razão ao afirmar que o individualista é o anarquista de base. E compreende-se. Antes de alguém envergar a roupagem mutualista, coletivista ou comunista (libertária) tem que partir do princípio que o indivíduo é a única realidade viva, contraditória mas formada por partículas quimicamente solidárias, caso contrário decompõe-se e morre, e socialmente irredutível, sem sucedâneo possível. Cada indivíduo é um mundo (um mundo com os seus sonhos, desejos, atrações, repulsões, recalcamentos e desinibições)... e é único... e é sempre a partir desta pluralidade de unicidades que temos que nos entender. Todo o indivíduo consciente reage violentamente contra qualquer esquema totalizante, com pretensões a sistema, e contra qualquer nivelamento uniformizador feito autocraticamente de cima para baixo ou à custa da sublimação individual. Sabe que não é nem mais nem menos que quem quer que seja e não precisa de se afirmar em detrimento de ninguém, nem de se anular em nome de altos valores que se alevantem. Claro que sabe quais são os limites das suas forças e que um homem sozinho, coitadinho, não faz farinha... O individualista anarquista, porém, nada tem que ver com o tema romântico do «homem só», ótimo para a masturbação ou para quem gosta de chorar sobre a sua triste sorte, nem se toma por nenhum Robinson Crusoé. Pelo contrário, é uma autêntica «máquina» ávida de relações imediatas com o meio ambiente onde se desenvolveu, é um belo animal sedento de relações não mediatizadas com os seus afins. A sociabilidade constitui uma das características inalienáveis da sua individualidade.


No combate contra os socialistas e comunistas autoritários e reformistas, bem como contra os filósofos marxistas em geral, foram os anarquistas individualistas os que melhor mostraram a falácia duma ideologia que oprime os indivíduos concretos em nome das abstrações mais aberrantes (ditadura do proletariado, fase inferior e fase superior do comunismo, Estado popular ou proletário, etc.) e das imposições societárias mais absurdas (a igualdade na servidão, as batalhas da produção, a sociabilidade forçada, o sorriso optimista e dentífrico, o fabrico em formato reduzido do homem-massa, etc.). Pudessem certos sindicalistas revolucionários e anarco-sindicalistas que, como Pierre Monatte em França ou José de Sousa em Portugal, se deixaram embarrilar pela iconografia oficial da Revolução Russa e forneceram em boa dose alguns dos mais altos dirigentes da primeira geração de pecês, apresentar a mesma folha de serviços!


Quanto ao egoísmo de Stirner, talvez não seja descabido dizer ao leitor menos iniciado nestas lides que até o altruísta mais sincero, ao sentir prazer na felicidade honesta de outrem e ao considerar a liberdade dos outros como uma confirmação da sua liberdade, é um egoísta. O seu egoísmo, claro está, não se confunde com o egoísmo boçal do capitão de indústria que se coça para dentro, explora a mão de obra assalariada e diz depois que criou generosamente novos postos de trabalho, nem com o «altruísmo» farisaico do homem público que faz promessas e dá grandes palmadas no rabo do corpo eleitoral. É uma forma mais nobre, genuína e lúcida de egoísmo, se quisermos, um caso em que o egoísmo da lucidez mal encobre a lucidez do egoísmo.


Partindo desta reflexão, compreende-se bem porque Stirner falava pejorativamente da sociedade (com ou sem classes, como hoje se diria) e a considerava uma verdadeira maldição para o indivíduo autêntico e rebelde. Não porque fosse um anti-social nato, inimigo dos homens seus irmãos, ou um Jack-o-estripador congênito, ou qualquer outra baboseira digna do criminologista Lombroso, tão só porque a sociedade tem tendência para esquecer as suas modestas origens inter-individuais e para se arvorar em entidade superior, em juiz supremo e supremo carrasco dos atos humanos. Por isso, Stirner preferia-lhe a palavra associação, reveladora doutra dinâmica e doutras relações sociais. E quem diz associação, por que não diria «associação de egoístas»?

2 Alguns inimigos do anarquismo, porque este parte sempre do individual para o geral não acha que a humanidade pode ser feliz, se os homens que a «compõem» forem desgraçados como as pedras do caminho, e não decreta demagogicamente o reino milenário, tiveram tendência para o considerar «pequeno-burguês», particularista, inimigo das soluções genéricas e do bem comum. Proudhon, alvo ideal para este epíteto insultuoso, foi todavia um grande analista das linhas mestras do devir das sociedades, um grande e original pensador que analisava a complexidade e a variedade das estruturas sociais, sem as hierarquizar nem falar em infra e superestruturas. O seu impacto foi grande em quase todos os países latinos e inúmeros foram os operários autodidatas que se sentiram influenciados pelo realismo das suas conclusões.


Entre os próprios anarquistas, lá porque Proudhon está ligado às origens de um ainda incipiente proletariado, industrial moderno e evita ser demasiado categórico na escolha dos seus sujeitos históricos, também há um tanto ou quanto tendência para considerar algumas das suas originalidades como tibiezas, as quais teriam sido depois superadas por Bakunine, Kropotkin e outros seguidores mais «radicais».


Na realidade, Proudhon merecia ser de novo estudado. Não é um acaso, se ainda hoje é um dos autores anarquistas mais raivosamente atacados pelos defensores dos mais variados totalitarismos. É que a sua interpretação do devir histórico não é redutível a uma banal dialética bipolar, a maneira como diz que a síntese é sempre reacionária e está sempre do lado da autoridade choca os mais convencidos defensores dos «progressos» do poder, e o modo como, enfim, especifica que a política e o trabalho se opõem e excluem desmascara os partidários das emancipações ilusórias e politicantes. Em face do fiasco do capitalismo monopolista, do comunismo de Estado, da pessegada do socialismo democrático e da social-democracia, do marxismo determinista e do leninismo hirsuto, a sua atualidade parece ser de novo grande. Os próprios pensadores anarquistas que se lhe seguiram nem sempre o superaram e, por vezes, quando o fizeram, nem sempre foi na direção desejável. Ainda hoje, Proudhon parece freqüentemente menos contaminado por certos germes e taras do ulterior movimento operário do que muitos dos seus continuadores. É vermos as três criticas correlativas que faz à autoridade (o misticismo ou adoração do homem pelo homem, o estatismo ou governo do homem pelo homem, o capitalismo ou exploração do homem pelo homem), a maneira como nos diz que tal tríade na prática desemboca no «unitarismo absolutizante» e na «ideomania autoritária», as conclusões a que chega quando expõe que a emancipação política e a emancipação econômica são uma só, a análise que faz do trabalho integrador, das forças coletivas e da mais-valia... Sem esquecermos, evidentemente, que as suas conclusões sobre o «realismo social» e o «pluralismo social», bem como as suas análises dos meandros da propriedade, são das mais finas e adequadas, mais do que nunca susceptíveis de interessarem quem hoje se debruça sobre aquilo que dá modernamente pelo nome de autogestão.
  
3 Podíamos ainda acrescentar a estas correntes o «anarquismo de conselhos», também conhecido por conselhismo ou comunismo de conselhos. Também teve defensores entre certos marxistas dissidentes, principalmente os «esquerdistas» holandeses, italianos e alemães como Pannekoek, Bordiga, Ruhle ou Gorter. Uma diferença, no entanto, salta logo aos olhos: os marxistas conselhistas tiveram sempre tendência para verem nos conselhos órgãos de poder, uma espécie de «autogestão do poder», na melhor das hipóteses. Viam na nova teoria a única hipótese para deslocarem a famigerada ditadura do proletariado do Partido de tipo leninista para os Conselhos. A moderna corrente dos marxistas situacionistas chegou mesmo ao ponto de ver nos conselhos a única forma de «ditadura anti-estatal do proletariado» e na 7a conferência sobre a definição mínima das organizações revolucionárias mencionou como objetivo da luta final «a realização internacional do poder absoluto dos Conselhos Operários». Não discutimos sequer sobre a possibilidade duma «ditadura anti-estatal» (o que será ?), nem nos pronunciamos sobre fórmulas que corrompem absolutamente como, por exemplo, «poder absoluto». São reveladoras da supracitada ideomania. Basta dizermos que os anarquistas nunca viram nos conselhos órgãos de poder. Apesar de sempre os terem defendido veja-se o caso dos anarco-sindicalistas russos , achavam que os conselhos não resolviam o problema do poder até ao fim, tinham tendência para subalternizar os consumidores que somos todos nós, continuavam a comungar naquilo a que podemos chamar a «religião do trabalho», além de, com uma facilidade demasiado grande, poderem degenerar em pequenos parlamentos plebeus ou proletários, flutuando ao sabor das maiorias.


Fornecendo alguns breves elementos à história da idéia, digamos que é antiga. Já na Federação Regional espanhola da 1ª Internacional se falava de «buntos» ou de «consejos de trabajo». Voline, na obra «A Revolução desconhecida», conta como apareceu o primeiro Soviete (conselho, em russo) em 1905 e até mesmo como foi convidado para seu presidente, no seguimento do movimento gaponista. Diga-se ainda que a insurreição de Kronstadt, último soviete livre da Rússia bolchevista, em 1921, foi em grande medida preparada pela propaganda e agitação anarquistas efetuadas por altura da morte de Pedro Kropotkine. Muitos anarquistas bateram-se e morreram em Kronstadt, além de que, na esteira de Ida Mett, Rudolf Rocker e outros, foram os anarquistas os primeiros que deram a conhecer no Ocidente esse crime desconhecido de Leon Trotsky.


Foi, porém, na guerra civil espanhola (1936-1939) que os conselhos operários e camponeses (em Espanha chamados «coletividades») atingiram o máximo expoente. Segundo a formosa e insuspeita maneira de dizer dos marxistas situacionistas, foram enfim na prática o que noutros sítios só tinham podido ser em idéia. Se não nos esquecermos que a Espanha era a terra de eleição da prática anarquista, do espírito libertário e das táticas do anarco-sindicalismo (e que foi isso que realmente impossibilitou a intromissão em maior escala dos partidos políticos, dos sindicatos reformistas e dos outros burocratas sabotadores), então não podemos deixar de concluir que entre conselhos, comités de fábrica e anarco-sindicalismo as diferenças são mínimas sem prejuízo da finalidade e especificidade de qualquer deles.
  
4 Nas sociedades ditas primitivas, a produção não revestia o aspecto mercantil que tem na sociedade capitalista. Os objetos não apresentavam a forma alienada de mercadorias, ao mudarem de mão criavam vínculos e obrigações de ordem pessoal e como que tinham «alma». Já existiam as trocas diretas e mais ou menos igualitárias entre indivíduos ou entre grupos mas o dom com a sua obrigação de reciprocidade encontrava-se largamente em vigor e desempenhava um papel social importante.


O antropólogo Bronislaw Malinowski, na obra «Os Argonautas do Pacífico ocidental», fala-nos de uma forma de dom: a kula, que tinha aspectos cerimoniais e punha em circulação braceletes e colares. Se os parceiros da kula fossem demasiado calculistas e a conduzissem como um gimwali (troca mais ou menos usurária), desacreditavam-se socialmente e passavam por uns unhas de fome.


E Marcel Mauss, no «Ensaio sobre o dom», fala-nos do potiatch. Segundo esta forma de dom, o indivíduo que recebia ofertas devia ripostar com dádivas de valor superior ao que lhe era dado. Certas tribos índias chegavam a arruinar-se em longos potlatch de Inverno. O esbanjamento dos bens chegava até a revestir a forma destrutiva da liquidação de tudo o que estava armazenado. E Mauss escreve: «Felizmente, ainda nem tudo está classificado exclusivamente em termos de compra e de venda. As coisas ainda têm um valor de sentimento, além do valor venal, se é que há valores que sejam unicamente deste gênero. Não temos apenas uma moral de mercadores. Restam-nos pessoas e classes que ainda têm os costumes de outrora e diante deles inclinamo-nos quase todos, pelo menos em certas épocas do ano ou em certas ocasiões».  Por que não voltaria o dom, construtivamente considerado e não com o caracter de delapidação infantil do potiatch, a emergir como regra informal da sociedade do futuro?
  
5 A palavra portuguesa “trabalho” é derivada da latina tripalium, que designava um instrumento de tortura. Esta filiação etimológica diz tudo. Sobretudo se tivermos em vista as pessoas pouco recomendáveis que sempre aconselharam o trabalho como terapêutica (para os outros!). E pensamos em Hitler e no «Arbeit macht frei» («O trabalho liberta»), encimando o grande portão de ferro do campo de concentração de Auschwitz; ou em Staline com as mãos cheias de medalhas para os «heróis do trabalho», os incansáveis stakhanovistas minados pela silicose; ou no papa João Paulo II com as encíclicas laborais ao alcance do gatázio, as viagens ao cerne da miséria brasileira ou da piolheira filipina, as exortações à pachorra ou à fossanguice e o ânus artificial, depois dos tiros que apanhou... A lista dos filantropos teria mais nomes do que quantos ladrões tinha o pinhal da Azambuja.


Considerando que o trabalho assalariado e a divisão hierarquizada do trabalho se contam entre as maiores degradações do homem, a humanidade «trabalhada» deve libertar-se da maldição bíblica do trabalho e comer o pão com outro condimento que não o suor do rosto. Algumas mentes peregrinas, porém, filhas do robot e do computador, em geral oriundas do marxismo autoritário e cada vez mais deliquescente, gostariam de acabar com o trabalho de qualquer maneira, em termos totalmente irrealistas, e de impor um modelo único de madracice tão estúpido como o trabalho. E, derradeira esperteza, aconselham o novo tratamento apenas para as míticas e abstratas «sociedades de abundância», tecnologicamente sofisticadas, onde a «acumulação primitiva» já estaria feita. Esquecem-se, em primeiro lugar, que a abundância é sempre relativa. É um termo de economista ou de merceeiro que não toma em consideração nem as necessidades reais (não as forjadas pela publicidade), nem os recursos efetivamente disponíveis (não as mercadorias empilhadas). Assim, e por paradoxal que pareça, as sociedades da Idade da Pedra, como observa Marshal Sahlins, foram as primeiras sociedades de abundância. Os «primitivos» dispunham do que queriam com poucas horas de atividade, que nem consideravam trabalho. E recusavam-se a acumular por acumular um sobreproduto qualquer, à custa do sobretrabalho, como sublinhava Pierre Clastres. Preferiam ornamentar-se com penas, participar em campeonatos sexuais ou sornar tranquilamente. Ao invés, certas sociedades tecnologicamente mais maquinais podem vir a ser sociedades de penúria, com o esgotamento de certos recursos não renováveis e com o real problema da explosão demográfica. Em segundo lugar, ao expulsarem do paraíso da abundância e do direito à preguiça vastíssimas zonas e extensos setores do populacho, e ao preconizarem para eles a «socialização da miséria», dão uma magnífica caução a todas as ditaduras terceiro-mundistas, estalecas, etc. Pois se não se podia ir mais longe, como diria o paizinho Staline coçando a bigodeira...


Nós, que não somos fatalistas, nem temos o mito provinciano da máquina 100% ao serviço do homem e deste 100% ao serviço do ócio, pensamos de maneira quiçá mais cientifica, como soe dizer-se, que pode haver um trabalho lúdico, que tem que haver uma organização imparcial para as tarefas ingratas ou monótonas, que pode haver uma distribuição livre para os bens exuberantes, que tem que haver regulamentação para partilhar os produtos escassos e combater a escassez, e que mesmo sociedades menos desenvolvidas não estão ao abrigo duma revolução radical.
  
6 Os anarquistas compreenderam desde sempre que não se pode construir um mundo novo a sério conservando o exército, a polícia, a magistratura, as casernas, as prisões e outras respeitadas e veneradas instituições. Sabem que a Revolução Francesa começou com a tomada da Bastilha, em 1789, e que a Revolução Espanhola de 1936 pôs todos os presos na rua, nas zonas controladas pelos revolucionários . A famosa «Coluna de Ferro», que tão bem se bateu contra fascistas e stalinistas e tanto resistiu contra a militarização das milícias, que tanto tempo esteve na vanguarda do combate real e não na retaguarda das sinecuras e das prebendas, era constituída em parte por ex-presos comuns do presidio de San Miguel de los Reyes.


Em Portugal, durante a vigência dum nacional-cristianismo soez, cimentou-se a tendência para dizer que a P. I. D. E. era a única policia má, enquanto a Judiciária, a G. N. R., a P. S. P. e tutti quanti seriam boas e honradas corporações. Paralelamente, considerava-se o preso político, o aristocrata aperaltado do elegante crime político, como o único bicho de todo o bestiário prisional digno da liberdade. Ora, na nossa opinião, o dito bicho era tantas vezes preso apenas por distribuir panfletos rotineiros e não por se inspirar na propaganda pelo cato ou na cação direta...


Em 1975 (ou 1976), vários grupos anarquistas de Lisboa, num pequeno manifesto intitulado «Destruamos todas as Bastilhas», reataram com a tradição libertária, solidarizaram-se com os presos comuns e declararam que o combate destes era o deles porquanto, dentro ou fora das grades, o mundo em que sobrevivemos tem tendência a assemelhar-se a uma prisão. No mesmo sentido, a C. N. T. e os grupos anarquistas espanhóis, já depois da morte de Franco sem dúvida o maior assassino espanhol deste século, que morreu tranquilamente na cama e nunca foi parar à cadeia, foram as únicas organizações que promoveram campanhas e gritaram: «Os presos para a rua! Políticos também!»
  
7 O anarquismo é a única corrente revolucionária claramente pluralista. Para desfazermos qualquer equívoco, digamos que o pluralismo não é a existência de 2, 3, 4 ou mais partidos democratóides tirados a papel químico, como o pretende o discurso democratolas dos políticos da nossa praça. O pluralismo autêntico é a coexistência e o equilíbrio entre centenas ou milhares de diferentes formações sociais, autônomas ou unidas por laços federalistas e não por imposição de qualquer forma de poder, central ou local. A grande referência sobre o relativismo dos «modelos» é, evidentemente, Proudhon.
  
8 Os «anarquistas reformistas», se é que não há contradição entre o substantivo e o adjetivo, devem ter sempre presente que há, houve e haverá uma diferença qualitativa entre reforma e revolução. Não se passa daquela para esta por meio de simples acréscimos de quantidade ou por pirueta dialética a menos que se considere revolução um conjunto de reformas concedidas pelo Estado!


Os «anarquistas revolucionários», se é que não há aqui petição de princípio ou pleonasmo e se o adjetivo não é redundante, não pretendem economizar esforços quando se trata da revolução e não pretendem substitui-la por uma hipotética evolução. Todos os dias a preparam e sabem que haverá grandes sacudidelas no edifício social. O que é preciso é que não haja apenas, como diz a fórmula matreira, «revolução» no quotidiano de 2 ou 3 gatos...
  
9 Sem que a lista seja exaustiva, podemos ainda dizer que a agitação anarquista foi eficaz nos seguintes casos: em Portugal, entre 1909 e 1919 (período de criação da União Operária Nacional) e, depois, nos anos que se seguiram a 1919 (período do funcionamento da Confederação Geral do Trabalho); na Bulgária, durante longos períodos de luta contra o Império Turco, durante a ditadura fascista dos anos 1923 e seguintes e, mais tarde, durante os episódios de resistência da segunda guerra mundial; na América latina, muito especialmente na Argentina, sobretudo nos anos 20, e também em países como o Brasil, Cuba, etc.


Nos últimos anos, a agitação anarquista recrudesceu. Em Espanha, logo a seguir à morte de Franco, a C. N. T. reapareceu, bem como um forte movimento específico. Pode-se mesmo dizer que a organização anarco-sindicalista efetuou de novo os maiores comícios que a Espanha conheceu desde a guerra civil. Apesar das divisões e dos rancores entre facções acumulados no exílio, o movimento espanhol deve ser de novo o maior movimento anarquista do mundo. Na Grécia, a seguir à queda do regime dos coronéis, despontou um novíssimo movimento com certo impacto no meio da juventude, novíssimo já que se trata dum pais que não tem a tradição libertária doutros. Na Holanda, onde o movimento anarquista dinamizava habitualmente a agitação antimilitarista, a agitação dos Kraakers (ocupantes de casas devolutas, no meio dos quais há muitos libertários) veio abrir novos horizontes e possibilidades. Quanto aos países de Leste, se bem que nos faltem mais informações, há elementos que apontam para um recrudescimento de atividades na União Soviética e na China.


10 Em tempos, houve a grande moda das comunidades. O próprio Júlio Verne descreve-nos o fenômeno em «Os náufragos do Jonathan» ou noutras obras. Como não podia deixar de ser, foram inúmeras as experiências anarquistas nesse campo, visto que o anarquismo, mais do que um conjunto acabado de teorias, é sobretudo um conjunto espantoso de experiências. Salientemos apenas duas das mais conhecidas e importantes: a Colônia Cecília, no Brasil, fundada por Giovani Rossi e pelos seus amigos, em 1890; a Comunidad del Sur, no Uruguai, fundada em Montevideo, em 1955. Ambas mostraram a sua viabilidade, mas foram destruídas por ditaduras militares.


Hoje os anarquistas acham que essas experiências têm pouco alcance prático e que o mundo exterior as deixa cinicamente crescer, até ao momento em que decide corrompê-las aos poucos, ou sufocá-las rapidamente: ou tudo é autogerido, ou nada o é. Certos grupos ecológicos, macrobióticos, feministas, homossexuais, etc. parecem contudo persistir em tal via assaz inglória. Idealizam a natureza, retiram-se da circulação, isolam-se, fecham-se no casulo... e são perfeitamente inofensivos. Mas quem corre por gosto, não cansa...
  
11 Sem esquecermos a Checoslováquia de 1968, a Polónia de 1970-71, 1976, e, de novo, de 1980-81, etc.

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