À SOMBRA DAS MAIORIAS SILENCIOSAS
Jean Baudrillard
É nesse sentido que a massa é característica da nossa modernidade, na qualidade de fenômeno altamente implosivo, irredutível a qualquer prática e teoria tradicionais, talvez mesmo irredutível a qualquer prática e a qualquer teoria simplesmente.
Na representação imaginária, as massas flutuam em algum ponto entre a passividade e a espontaneidade selvagem, mas sempre como uma energia potencial, como um estoque de social e de energia social, hoje referente mudo, amanhã protagonista da história, quando elas tomarão a palavra e deixarão de ser a “maioria silenciosa” - ora, justamente as massas não têm história a escrever, nem passado, nem futuro, elas não têm energias virtuais para liberar, nem desejo a realizar: sua força é atual, toda ela está aqui, e é a do seu silêncio. Força de absorção e de neutralização, desde já superior a todas as que se exercem sobre elas. Força de inércia especifica, cuja eficácia é diferente da de todos os esquemas de produção, de irradiação e de expansão sobre os quais funciona nosso imaginário, incluindo a vontade de destruí-los. Figura inaceitável e ininteligível da implosão (trata-se ainda de um processo?), base de todos os nossos sistemas de significações e contra a qual eles se armam com todas as suas resistências, ocultando o desabamento central do sentido com uma recrudescência de todas as significações e com uma dissipação de todos os significantes:
O vácuo social é atravessado por objetos intersticiais e acumulações cristalinas que rodopiam e se cruzam num claro-escuro cerebral. Tal é a massa, um conjunto no vácuo de partículas individuais, de resíduos do social e de impulsos indiretos: opaca nebulosa cuja densidade crescente absorve todas as energias e os feixes luminosos circundantes, para finalmente desabar sob seu próprio peso. Buraco negro em que o social se precipita.
Exatamente o inverso, portanto, de uma acepção “sociológica”. A sociologia só pode descrever a expansão do social e suas peripécias. Ela vive apenas da hipótese positiva e definitiva do social. A assimilação, a implosão do social lhe escapam. A hipótese da morte do social é também a da sua própria morte.
O termo massa não é um conceito. Leitmotiv da demagogia política, é uma noção fluída, viscosa, “lumpen-analítica”. Uma boa sociologia procurará abarcá-la em categorias “mais finas”: sócio-profissionais, de classe, de status cultural, etc. Erro: é vagando em torno dessas noções fluidas e acríticas (como outrora a de “mana”) que se pode ir além da sociologia critica inteligente. Além do que, retrospectivamente, se poderá observar que os próprios conceitos de “classe”, de “relação social”, de “poder”, de “status”, todos.Estes conceitos muito claros que fazem a glória das ciências legítimas, também nunca foram mais do que noções confusas, mas sobre as quais se conciliaram misteriosos objetivos, os de preservar um determinado código de análise.
Querer especificar o termo massa é justamente um contra-senso - é procurar um sentido no que não o tem. Diz-se: “a massa de trabalhadores”. Mas a massa nunca é a de trabalhadores, nem de qualquer outro sujeito ou objeto social. As “massas camponesas” de outrora não eram exatamente massas: só se comportam como massa aqueles que estão liberados de suas obrigações simbólicas, “anulados” (presos nas infinitas “redes”) e destinados a serem apenas o inumerável terminal dos mesmos modelos, que não chegam a integrá-los e que finalmente só os apresentam como resíduos estatísticos. A massa é sem atributo, sem predicado, sem qualidade, sem referência. Aí está sua definição, ou sua indefinição radical. Ela não tem “realidade” sociológica. Ela não tem nada a ver com alguma população real, com algum corpo, com algum agregado social específico. Qualquer tentativa de qualificá-la é somente um esforço para transferi-Ia para a sociologia e arrancá-la dessa indistinção que não é sequer a da equivalência (soma ilimitada de indivíduos equivalentes: 1 + 1 + 1 + 1 - tal é a definição sociológica), mas a do neutro, isto é, nem um nem outro (ne-uter).
Na massa desaparece a polaridade do um e do outro. Essa é a causa desse vácuo e da força de desagregação que ela exerce sobre todos os sistemas, que vivem da disjunção e da distinção dos pólos (dois, ou múltiplos, nos sistemas mais complexos). É o que nela produz a impossibilidade de circulação de sentido: na massa ele se dispersa instantaneamente, como os átomos no vácuo. É também o que produz a impossibilidade, para a massa, de ser alienada, visto que nela nem um nem o outro existem mais.
Massa sem palavra que existe para todos os porta-vozes sem história. Admirável conjunção dos que nada têm a dizer e das massas que não falam. Nada que contém todos os discursos. Nada de histeria nem de fascismo potencial, mas simulação por precipitação de todos os referenciais perdidos. Caixa preta de todos os referenciais, de todos os sentidos que não admitiu, da história impossível, dos sistemas de representação inencontráveis, a massa é o que resta quando se esqueceu tudo do social.
Quanto à impossibilidade de nela se fazer circular o sentido, o melhor exemplo é o de Deus. As massas conservaram dele somente a imagem, nunca a Idéia. Elas jamais foram atingidas pela Idéia de Deus, que permaneceu um assunto de padres, nem pelas angústias do pecado e da salvação pessoal. O que elas conservaram foi o fascínio dos mártires e dos santos, do juízo final, da dança dos mortos, foi o sortilégio, foi o espetáculo e o cerimonial da Igreja, a imanência do ritual - contra a transcendência da Idéia. Foram pagãs e permaneceram pagãs à sua maneira, jamais freqüentadas pela Instância Suprema, mas vivendo das miudezas das imagens, da superstição e do diabo. Práticas degradadas em relação ao compromisso espiritual da fé? Pode ser. Esta é a sua maneira, através da banalidade dos rituais e dos simulacros profanos, de minar o imperativo categórico da moral e da fé, o imperativo sublime do sentido, que elas repeliram. Não porque não pudessem alcançar as luzes sublimes da religião: elas as ignoraram. Não recusam morrer por uma fé, por uma causa, por um ídolo. O que elas recusam é a transcendência, é a interdição, a diferença, a espera, a ascese, que produzem o sublime triunfo da religião. Para as massas, o Reino de Deus sempre esteve sobre a terra, na imanência pagã das imagens, no espetáculo que a Igreja lhes oferecia. Desvio fantástico do princípio religioso. As massas absorveram a religião na prática sortílega e espetacular que adotaram.
Todos os grandes esquemas da razão sofreram o mesmo destino. Eles só descreveram sua trajetória, só seguiram o curso de sua história no diminuto topo da camada social detentora do sentido (e em particular do sentido social), mas no essencial somente penetraram nas massas ao preço de um desvio, de uma distorção radical. Assim foi com a razão histórica, a razão política, a razão cultural e a razão revolucionária - assim foi com a própria razão do social, a mais interessante pois é a que parece inerente às massas, e por tê-las produzido no curso de sua evolução. As massas são o “espelho do social”? Não, elas não refletem o social, nem se refletem no social - é o espelho do social que nelas se despedaça.
A imagem não é exata, pois ainda evoca a idéia de uma substância plena, de uma resistência opaca. Ora, as massas funcionam mais como um gigantesco buraco negro que inflete, submete e distorce inexoravelmente todas as energias e radiações luminosas que se aproximam. Esfera implosiva, em que a curvatura dos espaços se acelera, em que todas as dimensões se encurvam sobre si mesmas e involuem até se anularem, deixando em seu lugar e espaço somente uma esfera de absorção potencial.
O abismo do sentido
O mesmo ocorre com a informação.
Seja qual for seu conteúdo, político, pedagógico, cultural, seu propósito sempre é filtrar um sentido, manter as massas sob o sentido. Imperativo de produção de sentido que se traduz pelo imperativo incessantemente renovado de moralização da informação: melhor informar, melhor socializar, elevar o nível cultural das massas, etc. Bobagens: as massas resistem escandalosamente a esse imperativo da comunicação racional. O que se lhes dá é sentido e elas querem espetáculo. Nenhuma força pôde convertê-las à seriedade dos conteúdos, nem mesmo à seriedade do código. O que se lhes dá são mensagens, elas querem apenas signos, elas idolatram o jogo de signos e de estereótipos, idolatram todos os conteúdos desde que eles se transformem numa seqüência espetacular. O que elas rejeitam é a “dialética” do sentido. E de nada adianta alegar que elas são mistificadas. Hipótese sempre hipócrita que permite salvaguardar o conforto intelectual dos produtores de sentido: as massas aspirariam espontaneamente às luzes naturais da razão. Isso para conjurar o inverso, ou seja, que é em plena “liberdade” que as massas opõem ao ultimato do sentido a sua recusa e sua vontade de espetáculo. Temem essa transparência e essa vontade política como temem a morte. Elas “farejam” o terror simplificador que está atrás da hegemonia ideal do sentido e reagem à sua maneira, reduzindo todos os discursos articulados a uma única dimensão irracional e sem fundamento, onde os signos perdem seu sentido e se consomem na fascinação: o espetacular.
Uma vez mais, não se trata de mistificação: trata-se de sua exigência própria, de uma contra-estratégia expressa e positiva - trabalho de absorção e de aniquilamento da cultura, do saber, do poder, do social. Trabalho imemorial, mas que hoje assume toda a sua envergadura. Um antagonismo profundo, que obriga a uma inversão de todos os cenários aceitos: o sentido não seria mais a linha de força ideal de nossas sociedades, sendo o que escapa apenas um resíduo destinado a ser reabsorvido qualquer dia - ao contrário, é o sentido que é somente um acidente ambíguo e sem prolongamento, um efeito devido à convergência ideal de um espaço perspectivo num momento dado (a História, o Poder, etc), mas que na realidade nunca disse respeito senão a uma fração mínima e a uma camada superficial de nossas “sociedades”. E isso também é verdadeiro para os indivíduos: nós somos apenas episodicamente condutores de sentido, no essencial e em profundidade nós nos comportamos como massa, vivendo a maior parte do tempo num modo pânico ou aleatório, aquém ou além do sentido. Logo, tudo muda com essa hipótese inversa.
Vejamos um exemplo entre mil desse menosprezo pelo sentido, folclore das passividades silenciosas. Na noite da extradição de Klaus Croissant, a televisão transmitia um jogo de futebol em que a França disputava sua classificação para a Copa do Mundo. Algumas centenas de pessoas se manifestam diante da Santé, alguns advogados correm na noite, vinte milhões de pessoas passam sua noite diante da televisão. Quando a França ganhou, explosão de alegria popular. Horror e indignação dos espíritos esclarecidos diante dessa escandalosa indiferença. Le Monde: “21 horas. Nesta hora o advogado alemão já foi retirado da prisão da Santé. Daqui a pouco Rocheteau vai marcar o primeiro gol”. Melodrama da indignação.1
Nenhuma única interrogação sobre o mistério dessa indiferença. Uma única razão sempre invocada: a manipulação das massas pelo poder, sua mistificação pelo futebol. De qualquer maneira, essa indiferença não deveria existir, ela não tem nada a nos dizer. Em outros termos, a “maioria silenciosa” é despossuída até de sua indiferença, ela não tem nem mesmo o direito de que esta lhe seja reconhecida e imputada, é necessário que também esta apatia lhe seja insuflada pelo poder. Santé. Daqui a pouco Rocheteau vai marcar o primeiro gol”. Melodrama da indignação.1
Que desprezo atrás dessa interpretação! Mistificadas, as massas não saberiam ter comportamento próprio. De tempos em tempos se lhes concede uma espontaneidade revolucionária através da qual elas vislumbram a “racionalidade do seu próprio desejo”, isso sim, mas Deus nos proteja de seu silêncio e de sua inércia. Ora, é exatamente essa indiferença que exigiria ser analisada na sua brutalidade positiva, em vez de ser creditada a uma magia branca, a uma alienação mágica que sempre desviaria as multidões de sua vocação revolucionária.
Mas, por outro lado, como é que ela consegue desviá-las? Com relação a este fato estranho, pode-se perguntar: por que após inúmeras revoluções e um século ou dois de aprendizagem política, apesar dos jornais, dos sindicatos, dos partidos, dos intelectuais e de todas as energias postas a educar e a mobilizar o povo, por que ainda se encontram (e se encontrará o mesmo em dez ou vinte anos) mil pessoas para se mobilizar e vinte milhões para ficar “passivas”? - e não somente passivas, mas por francamente preferirem, com toda boa fé e satisfação, e sem mesmo se perguntar por que, um jogo de futebol a um drama político e humano? É curioso que essa constatação jamais tenha subvertido a análise, reforçando-a, ao contrário, em sua fantasia de um poder todo-poderoso na manipulação, e de uma massa prostrada num coma ininteligível. Pois nada disso tudo é verdadeiro, e os dois são um equívoco: o poder não manipula nada e as massas não são nem enganadas nem mistificadas. O poder está muito satisfeito por colocar sobre o futebol uma responsabilidade fácil, ou seja, a de assumir a responsabilidade diabólica pelo embrutecimento das massas. Isso o conforta em sua ilusão de ser o poder, e desvia do fato bem mais perigoso de que essa indiferença das massas é sua verdadeira, sua única prática, porque não há outro ideal para inventar, não há nada a deplorar, mas tudo a analisar a respeito disso como fato bruto de distorção coletiva e de recusa de participar nos ideais todavia luminosos que lhes são propostos.
O problema das massas não está nisso. Melhor constatar e reconhecer que toda esperança de revolução, toda a esperança do social e da mudança social só pôde funcionar até aqui graças a essa escamoteação, a essa contestação fantástica. Como Freud o fez na ordem psicológica,2 é melhor partir deste resto, deste sedimento cego, deste resíduo de sentido, deste não-analisado e talvez não-analisável (há uma boa razão para que essa revolução copernicana jamais tenha sido tentada no universo político - toda a ordem política é que se arriscaria a pagar as contas).
Grandeza e decadência do político
O político e o social nos parecem inseparáveis, constelações gêmeas sob o signo (determinante ou não) do econômico, pelo menos desde a Revolução Francesa. Mas hoje, para nós, isso provavelmente só é verdade para o seu declínio simultâneo. Exemplificando com Maquiavel, quando o político surge da esfera religiosa e eclesial na época da Renascença, ele é antes de tudo apenas um puro jogo de signos, uma pura estratégia que não se preocupa com nenhuma “verdade” social ou histórica, mas, ao contrário, joga com a ausência de verdade (como, mais tarde, a estratégia mundana dos jesuítas sobre a ausência de Deus). O espaço político inicialmente é da mesma natureza do teatro de intriga da Renascença, ou do espaço perspectivo da pintura, que são inventadas no mesmo momento. A forma é a de um jogo, não de um sistema de representação - semiurgia e estratégia, não ideologia -, e a sua utilização depende de virtuosismo e não de verdade (como o jogo sutil e corolário deste, de Balthazar Gracian em Homme de Cour). O cinismo e a imoralidade da política maquiaveliana estão nisso: não no uso sem escrúpulos dos meios com que se o confundiu na concepção vulgar, mas na desenvoltura com relação aos fins. Pois, Nietzsche o viu bem, é nesse menosprezo por uma verdade social, psicológica, histórica, nesse exercício dos simulacros enquanto tais, que se encontra o máximo de energia política, nesse momento em que o político é um jogo e ainda não se deu uma razão.
É a partir do século XVIII, e particularmente depois da Revolução, que o político se infletiu de uma maneira decisiva. Ele se encarrega de uma referência social, o social se apodera dele. No mesmo momento começa a ser representação, seu jogo é dominado pelos mecanismos representativos (o teatro segue um destino paralelo: torna-se um teatro representativo - o mesmo acontece com o espaço perspectivo: de instrumental que era no início, torna-se o lugar de inscrição de uma verdade do espaço e da representação). A cena política se torna a cena da evocação de um significado fundamental: o povo, a vontade do povo, etc. Ela não trabalha mais só sobre signos, mas sobre sentidos, de repente eis que é obrigada a significar o melhor possível esse real que ela exprime, intimada a se tornar transparente, a se mobilizar e a responder ao ideal social de uma boa representação. Mas durante muito tempo ainda haverá um equilíbrio entre a esfera própria do político e as forças que nele se refletem: o social, o histórico e o econômico. Este equilíbrio sem dúvida corresponde à idade de ouro dos sistemas representativos burgueses (a constitucionalidade: a Inglaterra do século XVIII, os Estados Unidos da América, a França das revoluções burguesas, a Europa de 1848).
É com o pensamento marxista em seus desenvolvimentos sucessivos que se inaugura o fim do político e de sua energia própria. Nesse momento começa a hegemonia definitiva do social e do econômico, e a coação, para o político, de ser o espelho, legislativo, institucional, executivo, do social. A autonomia do político é inversamente proporcional à crescente hegemonia do social.
O pensamento liberal sempre viveu de uma espécie de dialética nostálgica entre os dois, mas o pensamento socialista, o pensamento revolucionário postula abertamente uma dissolução do político no fim da história, na transparência definitiva do social.
O social triunfou. Mas a esse nível de generalização, de saturação, em que só há o grau zero do político, a esse nível de referência absoluta, de onipresença e de difração em todos os interstícios do espaço físico e mental, o que se torna o próprio social? É o sinal de seu fim: a energia do social se inverte, sua especificidade se perde, sua qualidade histórica e sua idealidade desaparecem em benefício de uma configuração em que não só o político se volatilizou, mas em que o próprio social não tem mais nome. Anônimo. A MASSA. AS MASSAS.
A maioria silenciosa
Enfraquecimento do político de uma pura ordenação estratégica a um sistema de representação, depois ao cenário atual de neofiguração, isto é, em que o sistema se perpetua sob os mesmos signos multiplicados mas que não representam mais nada e não têm seu “equivalente” numa “realidade” ou numa substância social real: não há mais investidura política porque também não há mais referente social de definição clássica (um povo, uma classe, um proletariado, condições objetivas) para atribuir uma força a signos políticos eficazes. Simplesmente não há significado social para dar força a um significante político.
O único referente que ainda funciona é o da maioria silenciosa. Todos os sistemas atuais funcionam sobre essa entidade nebulosa, sobre essa substância flutuante cuja existência não é mais social mas estatística, e cujo único modo de aparição é o da sondagem. Simulação no horizonte do social, ou melhor, no horizonte em que o social já desapareceu.
O fato de a maioria silenciosa (ou as massas) ser um referente imaginário não quer dizer que ela não existe. Isso quer dizer que não há mais representação possível. As massas não são mais um referente porque não têm mais natureza representativa. Elas não se expressam, são sondadas. Elas não se refletem, são testadas. O referendo (e as médias são um referendo perpétuo de perguntas/respostas dirigidas) substituiu o referente político. Ora, sondagens, testes, médias são dispositivos que não dependem mais de uma dimensão representativa mas simulativa. Eles não visam mais um referente, mas um modelo. A revolução aqui é total contra os dispositivos da socialidade clássica (de que ainda fazem parte as eleições, as instituições, as instâncias de representação, e mesmo a repressão): em tudo isso, o sentido social ainda passa de um pólo ao outro, numa estrutura dialética que dá lugar a um jogo político e às contradições.
Tudo muda com o dispositivo de simulação. Na dupla sondagem/maioria silenciosa, por exemplo, não há mais pólos nem termos diferenciais, portanto, já não há eletricidade do social: ela é curto-circuitada pela confusão dos pólos, numa circularidade especifica total (exatamente como acontece com o comando molecular e a substância que ele informa no ADN e no código genético). Esta é a forma ideal da simulação: aniquilação dos pólos, circulação orbital de modelos (o que é também a matriz de qualquer processo implosivo).
Bombardeadas de estímulos, de mensagens e de testes, as massas não são mais do que um jazigo opaco, cego, como os amontoados de gases estelares que só são conhecidos através da análise do seu espectro luminoso - espectro de radiações equivalente às estatísticas e às sondagens. Mais exatamente: não é mais possível se tratar de expressão ou de representação, mas somente de simulação de um social para sempre inexprimível e inexprimido. Esse é o sentido do seu silêncio. Mas esse silêncio é paradoxal - não é um silêncio que fala, é um silêncio que proíbe que se fale em seu nome. E, nesse sentido, longe de ser uma forma de alienação, é uma arma absoluta.
Ninguém pode dizer que representa a maioria silenciosa, e esta é sua vingança. As massas não são mais uma instância à qual se possa referir como outrora se referia à classe ou ao povo. Isoladas em seu silêncio, não são mais sujeito (sobretudo,não da história), elas não podem, portanto, ser faladas, articuladas, representadas, nem passar pelo “estágio do espelho” político e pelo ciclo das identificações imaginárias. Percebe-se que poder resulta disso: não sendo sujeito, elas não podem ser alienadas - nem em sua própria linguagem (elas não têm uma), nem em alguma outra que pretendesse falar por elas. Fim das esperanças revolucionárias. Porque estas sempre especularam sobre a possibilidade de as massas, como da classe proletária, se negarem enquanto tais. Mas a massa não é um lugar de negatividade nem de explosão, é um lugar de absorção e de implosão.
Inacessível aos esquemas de libertação, de revolução e de historicidade, mas é seu modo de defesa, seu modo de restrição. Modelo de simulação e referente imaginário para uma classe política fantasma que desde já não sabe que espécie de “poder” exerce sobre ela, a massa é ao mesmo tempo a morte, o fim desse processo político que supostamente a governa. Na massa o político se deteriora como vontade e representação.
Durante muito tempo a estratégia do poder pôde parecer se basear na apatia das massas. Quanto mais elas eram passivas, mais ele estava seguro. Mas essa lógica só é característica da fase burocrática e centralista do poder. E é ela que hoje se volta contra ele: a inércia que fomentou se tornou o signo de sua própria morte. É por isso que o poder procura inverter as estratégias: da passividade à participação, do silêncio à palavra. Mas é muito tarde. O limite da “massa crítica”, o da involução do social por inércia, foi transposto.3
Em toda parte se procura fazer as massas falarem, se as pressiona a existir de forma social eleitoralmente, sindicalmente, sexualmente, na participação, nas festas, na livre expressão, etc. É preciso conjurar o espectro, é preciso que ele diga seu nome. Nada demonstra com mais clareza que hoje o único problema verdadeiro é o silêncio da massa, o silêncio da maioria silenciosa.
Todas as energias são consumidas para manter essa massa em emulsão dirigida e para impedi-Ia de cair em sua inércia pânica e em seu silêncio. Como não é mais do reino da vontade nem do da representação, ela cai sob o golpe do diagnóstico, da adivinhação pura e simples - de onde o reino universal da informação e da estatística: é preciso auscultá-la, senti-Ia, retirar-lhe algum oráculo. Daí o furor de sedução, de solicitude e de solicitação em torno dela. Daí a predição por ressonância, os efeitos de antecipação e de futuro da multidão em miragens como: “O povo francês pensa... A maioria dos alemães reprova... Toda a Inglaterra vibra com o nascimento do Príncipe..., etc.” - espelho que tende a um reconhecimento sempre cego, sempre ausente.
Daí esse bombardeio de signos, que a massa supostamente repercute. Ela é interrogada por ondas convergentes, por estímulos luminosos ou lingüísticos, exatamente como as estrelas distantes ou os núcleos que são bombardeados com partículas num ciclotron. Isso é a informação. Não um modo de comunicação nem de sentido, mas um modo de emulsão incessante, de input-output e de reações em cadeia dirigidas, exatamente como nas câmaras de simulação atômicas. É preciso liberar a “energia” da massa para dela se fazer o “social”.
Mas este é um processo contraditório, porque a informação e a segurança, sob todas as suas formas, em vez de intensificar ou de criar a “relação social”, são ao contrário processos entrópicos, de modalidades do fim do social.
Acredita-se que se estruturam as massas injetando-lhes informação, acredita-se que se libera sua energia social cativa à força de informação e de mensagens (a tal ponto que não é mais o enquadramento institucional, mas a quantidade de informação e a taxa de exposição aos meios de comunicação que hoje medem a socialização). Mas é exatamente o contrário. Em vez de transformar a massa em energia, a informação sempre produz mais massa. Em vez de informar como ela pretende, isto é, dar forma e estrutura, neutraliza sempre mais o “campo social”, cria cada vez mais massa inerte impermeável às instituições clássicas do social, e aos próprios conteúdos da informação. À fissão das estruturas simbólicas pelo social e sua violência racional sucede hoje a fissão do próprio social pela violência “irracional” dos meios de comunicação e de informação - o resultado final sendo exatamente a massa atomizada, nuclearizada, molecularizada -, resultado de dois séculos de socialização acelerada e que aí chega inapelavelmente ao fim.
A massa só é massa porque sua energia social já se esfriou. É um estoque frio, capaz de absorver e de neutralizar todas as energias quentes. Ela se assemelha a esses sistemas semimortos em que se injeta mais energia do que se retira, a essas minas esgotadas que se mantêm em estado de exploração artificial a preço de ouro.
A energia que se dispende para atenuar a baixa tendencial da taxa de investimento político e a fragilidade absoluta do princípio social de realidade, para manter essa situação do social e impedi-lo de implodir totalmente, essa energia é imensa, e o sistema se precipita aí.
Na realidade, é o mesmo sentido da mercadoria. Antigamente bastava ao capital produzir mercadorias, o consumo sendo mera conseqüência. Hoje é preciso produzir os consumidores, é preciso produzir a própria demanda e essa produção é infinitamente mais custosa do que a das mercadorias (o social nasceu em grande parte, sobretudo a partir de 1929, desta crise da demanda: a produção da demanda ultrapassa amplamente a produção do próprio social).4 Assim, durante muito tempo bastou que o poder produzisse sentido (político, ideológico, cultural, sexual), e a demanda acompanhava, absorvia a oferta e ainda a excedia. Se faltasse sentido, todos os revolucionários se ofereciam para produzi-lo mais ainda. Hoje tudo mudou: o sentido não falta, ele é produzido em toda parte, e sempre mais - é a demanda que está declinante. E é a produção dessa demanda de sentido que se tornou crucial para o sistema. Sem essa demanda, sem essa receptividade, sem essa participação mínima no sentido, o poder só é o simulacro vazio e o efeito solitário de perspectiva. Ora, ai também a produção da demanda é infinitamente mais custosa que a produção do próprio sentido. No limite ela é impossível, todas às energias reunidas do sistema não serão suficientes. A demanda de objetos e de serviços sempre pode ser produzida artificialmente, a um preço elevado mas acessível, o sistema já o demonstrou. O desejo de sentido, quando falta, o desejo de realidade, quando se faz ausente em todas as partes, não podem ser plenamente satisfeitos e são um abismo definitivo.
A massa absorve toda a energia social, mas não a refrata mais. Absorve todos os signos e todos os sentidos, mas não os repercute. Absorve todas as mensagens e as digere.5 Ela dá a todas as questões que lhe são postas uma resposta tautológica e circular. Nunca participa. Perpassada pelos fluxos e pelos testes, ela se comporta como massa, se limita a ser boa condutora dos fluxos, mas de todos os fluxos, boa condutora da informação, mas de qualquer informação, boa condutora de normas, mas de todas as normas; com isso, se limita a remeter o social à sua transparência absoluta, a só dar lugar aos efeitos do social e do poder, constelações flutuantes em torno desse núcleo imperceptível.
A massa se cala como os animais e seu silêncio é comparável ao silêncio dos animais. Embora examinada até a morte (e a solicitação incessante a que é submetida, a informação, equivale ao suplício experimental dos animais nos laboratórios), ela não diz nem onde está a verdade: à direita, à esquerda? Nem o que prefere: a revolução, a repressão? Ela não tem verdade nem razão. Embora lhe emprestem todas as palavras artificiais. Ela não tem consciência nem inconsciente.
Esse silêncio é insuportável. Ela é a incógnita da equação política, a incógnita que anula todas as equações políticas. Todo o mundo a interroga, mas nunca enquanto silêncio, sempre para fazê-la falar. Ora, a força de inércia das massas é insondável: literalmente nenhuma sondagem a fará aparecer, pois elas existem para eclipsá-la. Silêncio que balança o político e o social na hiper-realidade que conhecemos. Porque se o político procura captar as massas numa câmara de eco e de simulação social (os meios de comunicação, a informação), em compensação são as massas que se tornam a câmara de eco e de simulação gigantesca do social. Nunca houve manipulação. A partida foi jogada pelos dois, com as mesmas armas, e ninguém hoje poderia dizer quem a venceu: a simulação exercida pelo poder sobre as massas ou a simulação inversa, dirigida pelas massas ao poder que nelas se afunda.
Nem sujeito nem objeto
A massa realiza esse paradoxo de ser ao mesmo tempo um objeto de simulação (ela só existe no ponto de convergência de todas as ondas médias que a descrevem) e um sujeito de simulação, capaz de refratar todos os modelos e de revertê-los por hiper-simulação (seu hiperconformismo, forma imanente de humor).
A massa realiza esse paradoxo de não ser um sujeito, um grupo-sujeito, mas de também não ser um objeto. Todas as tentativas para fazer dela um sujeito (real ou mítico) deparam com uma espantosa impossibilidade de tomada de consciência autônoma. Todas as tentativas para fazer dela um objeto deparam com a evidência inversa da impossibilidade de uma manipulação determinada das massas ou de uma apreensão em termos de elementos, de relações, de estruturas e de conjuntos. Qualquer manipulação imerge, volteia na massa, absorvida, revirada, revertida. Impossível saber onde ela leva, o mais verossímil é que ela se consome num ciclo sem fim, frustrando todas as intenções dos manipuladores. Nenhuma análise saberia abarcar essa realidade difusa, descentrada, brouniana, molecular: a noção de objeto aí se perde, como o campo da microfísica se perde na análise última da “matéria” - impossível captá-la como objeto neste limite infinitesimal em que o próprio sujeito da observação se acha subitamente anulado. Nem objeto de saber, nem sujeito de saber.
A massa atualiza a mesma situação limite e insolúvel no campo do “social”. Ela não é objetivável (em termos políticos: ela não é representável) e anula todos os sujeitos que pretenderiam captá-la (em termos políticos: anula todos aqueles que pretenderiam representá-la). Só as sondagens e as estatísticas podem dar conta dela (como na física matemática a lei dos grandes números e o cálculo de probabilidades), mas sabe-se que esse encantamento, que esse ritual meteórico das estatísticas e das sondagens não têm objeto real, sobretudo não nas massas que elas supostamente exprimem. Ele simplesmente simula um objeto que escapa, mas cuja ausência é intolerável. Ele o “produz” sob forma de respostas antecipadas, de assinalamentos circulares que parecem circunscrever sua existência e testemunhar sua vontade. Signos flutuantes - assim são as sondagens -, signos instantâneos, destinados à manipulação, e cujas conclusões podem ser trocadas. Todo o mundo conhece a profunda indeterminação que reina sobre as estatísticas (o cálculo de probabilidades ou os grandes números também correspondem a uma indeterminação, a uma “flutuação” do conceito de matéria, a que pouco corresponde uma insignificante noção de “lei objetiva”).
Aliás, não é seguro que os procedimentos de experimentação científica nas ciências ditas exatas tenham muito mais verdade que as sondagens e as estatísticas. A forma de interrogação codificada, dirigida, “objetiva”, em qualquer disciplina que seja, só dá lugar a esse tipo circular de verdade, de onde o próprio objeto que ela visa é excluído. Em todo caso, é possível pensar que a incerteza deste projeto de determinação objetiva do mundo continua total e que mesmo a matéria e o inanimado, intimados a responder (nos mesmos termos e segundo os mesmos procedimentos que as massas e o ser “social” nas estatísticas e nas sondagens), também só dão os mesmos sinais adequados, as mesmas respostas codificadas, com o mesmo conformismo exasperante, incessante, para em última instância, exatamente como as massas, escapar a qualquer definição enquanto objeto. Haveria uma ironia fantástica da “matéria” e de qualquer objeto de ciência, como há uma ironia fantástica das massas em seu mutismo, ou em seu discurso estatístico tão adequado às questões que lhes são postas, parecendo a eterna ironia da feminilidade de que fala Hegel - a ironia de uma falsa fidelidade, de um excesso de fidelidade à lei, simulação de passividade e de obediência definitivamente impenetráveis, mas que ao contrário anula a lei que os governa, segundo o imortal exemplo do soldado Schweik.
Daí partiria, no sentido literal, uma patafísica ou a ciência das soluções imaginárias, ciência da simulação e da hiper-simulação de um mundo exato, verdadeiro, objetivo, com suas leis universais, incluindo o delírio daqueles que o interpretam segundo estas leis. As massas e seu humor involuntário nos introduziriam a uma patafísica do social que finalmente nos desembaraçaria de toda esta metafísica do social que nos atravanca.
Isso contradiz toda a concepção aceita do processo de verdade, mas esta talvez não seja mais do que uma ilusão dos sentidos. O cientista não pode acreditar que a matéria ou o ser não respondem “objetivamente” às questões que ele lhes formula, ou que respondem muito objetivamente para que suas questões sejam as boas. Só esta hipótese lhe parece absurda e impensável. Nunca a fará. Ele jamais sairá do círculo encantado e simulado de sua interrogação.
A mesma hipótese vale para todas as coisas, o mesmo axioma de credibilidade. O publicitário não pode deixar de crer que as pessoas acreditam - por pouco que seja, isso quer dizer que existe uma probabilidade mínima de que a mensagem alcance seu objetivo e seja decodificada segundo seu sentido. Qualquer princípio de incerteza está excluído do assunto. Se ele verificasse que o índice de refração da mensagem sobre o destinatário é nulo, a publicidade desapareceria num instante. Ela só vive deste crédito que postula para si mesma (é a mesma aposta que a ciência faz acerca da objetividade do mundo) e que não procura verificar a fundo, no terror de que a hipótese inversa também seja verdadeira, a saber, que a imensa maioria das mensagens publicitárias nunca chega ao seu destino, que os leitores não vêem mais a diferença entre os conteúdos que se refratam no vácuo - só o meio funcionando como efeito ambiente e se apresentando como espetáculo e fascinação. O MEIO É A MENSAGEM, profetizava Mac Luhan: fórmula característica da fase atual, a fase cool de qualquer cultura mass-media, de um resfriamento, de uma neutralização de todas as mensagens num éter vazio. Fase de uma glaciação do sentido. O pensamento critico julga e escolhe, produz diferenças, e é pela seleção que ele vigia o sentido. As massas, elas não escolhem, não produzem diferenças, mas indiferenciação - elas mantêm a fascinação do meio, que preferem à exigência crítica da mensagem. Pois a fascinação não depende do sentido, ela é proporcional à insatisfação com o sentido. Obtém-se a fascinação ao neutralizar a mensagem em benefício do meio, ao neutralizar a idéia em proveito do ídolo, ao neutralizar a verdade em benefício do simulacro. Pois é neste nível que os meios de comunicação funcionam. A fascinação é sua lei, e sua violência específica, violência massiva sobre o sentido, violência negadora da comunicação pelo sentido em benefício de um outro modo de comunicação. Qual?
Para nós é uma hipótese insustentável: que seja possível comunicar fora do meio do sentido, que a própria intensidade da comunicação seja proporcional à supressão do sentido e à sua ruína. Porque não é o sentido nem o excesso de sentido que são violentamente agradáveis, é sua neutralização que fascina (cf. le Witz, a operação da palavra espirituosa, in L’Echange Symbolique et ta Mort). E não por alguma pulsão de morte, o que subentenderia que a vida ainda está perto do sentido, mas simplesmente por provocação, por alergia à referência, à mensagem, ao código e a todas as categorias da operação lingüística, por recusa de tudo isso unicamente em benefício da implosão do signo na fascinação (nem significante, nem significado: supressão dos pólos da significação). Nenhum dos guardiões do sentido pode entender isso: toda a moral do sentido se levanta contra a fascinação.
Também a esfera política só vive de uma hipótese de credibilidade, a saber, que as massas são permeáveis à ação e ao discurso, que elas têm uma opinião, que elas estão presentes atrás das sondagens e das estatísticas. É somente a este preço que a classe política ainda pode acreditar que fala e é ouvida politicamente. Enquanto o político há muito tempo é considerado só como espetáculo no interior da vida privada, digerido como divertimento semi-esportivo, semilúdico (veja-se o voto vencedor das eleições americanas, ou as tardes de eleições no rádio ou na tevê), e na forma ao mesmo tempo fascinada e maliciosa das velhas comédias de costumes. O jogo eleitoral se identifica há muito tempo aos jogos televisados na consciência do povo. Este, que sempre serviu de álibi e de figurante para a representação política, se vinga entregando-se à representação teatral da cena política e de seus atores. O povo tornou-se público. É o jogo, o filme ou os desenhos animados que servem de modelos de percepção da esfera política. O povo também aprecia dia-a-dia, como num cinema a domicílio, as flutuações de sua própria opinião na leitura cotidiana das sondagens. Nada disso tudo incita a uma responsabilidade qualquer. Em momento algum as massas são engajadas de modo consciente política ou historicamente. Elas nunca o foram, só para se matar, com total irresponsabilidade. E isso não é uma fuga diante do político, mas o efeito de uma antagonismo inexpiável entre a classe (casta?) portadora do social, do político, da cultura, senhora do tempo e da história, e a massa informe, residual, despojada de sentido. A primeira sempre procura aperfeiçoar o reino do sentido, investir, saturar o campo do social, a segunda sempre desvia todos os efeitos do sentido, neutraliza-os e os rebate. Nesse enfrentamento, aquela que o venceu não é absolutamente a que se pensa.
Isso pode ser visualizado na inversão de valor entre história e cotidianidade, entre esfera pública e esfera privada. Até os anos 60, a história se impõe como tempo forte: o privado e o cotidiano não são mais do que o avesso obscuro da esfera política. No melhor dos casos, intervém uma dialética entre os dois e pode-se pensar que um dia o cotidiano, como o individual, resplandecerá além da história, no universal. Mas até lá só se pode deplorar o recuo das massas a sua esfera doméstica, sua recusa da história, da política e do universal, e sua absorção na cotidianidade embrutecida do consumo (felizmente elas trabalham, o que lhes garante um estatuto histórico “objetivo” até o momento da tomada de consciência). Hoje, inversão do tempo fraco e do tempo forte: começa-se a vislumbrar que o cotidiano, que os homens em sua banalidade até que poderiam não ser o reverso insignificante da história - melhor: que o recuo para o privado até poderia ser um desafio direto ao político, uma forma de resistência ativa à manipulação política. Os papéis se invertem: é a banalidade da vida, a vida corrente, tudo o que se estigmatizara como pequeno-burguês, abjeto e apolítico (inclusive o sexo) .que se torna o tempo forte; e é a história e o político que desenvolvem sua acontecimentalidade abstrata algures.
Hipótese vertiginosa. As massas despolitizadas não estariam aquém mas além da política. O privado, o inominável, o cotidiano, o insignificante, os pequenos ardis, as pequenas perversões, etc., não estariam aquém mas além da representação. As massas executariam em sua prática “ingênua” (e sem ter esperado as análises sobre o “fim do político”) a sentença da anulação do político, seriam espontaneamente transpolíticas, como são translingüísticas em sua linguagem.
Mas, atenção! Esse universo privado e a-social, que não entra numa dialética de representação e de ultrapassamento para o universal, dessa esfera involutiva que se opõe a toda revolução pelo alto e se recusa a jogar o jogo, alguns desejariam que se tratasse (em particular em sua versão sexual e de desejo) de uma nova fonte de energia revolucionária, desejariam lhe dar um sentido e o reconstituir como negatividade histórica em sua própria banalidade. Exaltação de microdesejos, de pequenas diferenças, de práticas cegas, de marginalidades anônimas. Último sobressalto dos intelectuais para exaltar a insignificância, para promover o não-sentido na ordem do sentido. E revertê-lo à razão política. A banalidade, a inércia, o apoliticismo eram fascistas, agora se tornam revolucionários - sem mudar de sentido, isto é, sem deixar de ter sentido. Micro-revolução da banalidade, transpolítica do desejo - mais um truque dos “libertadores”. A negação do sentido não tem sentido.
Da resistência ao hiperconformismo
A emergência das maiorias silenciosas se integra no ciclo completo da resistência histórica ao social. Resistência ao trabalho, evidentemente, mas também resistência à medicina, resistência à escola, resistência à segurança, resistência à informação. A história oficial só registra o progresso ininterrupto do social, relegando às trevas, como culturas passadas, como vestígios bárbaros, tudo que não concorreria para esse glorioso acontecimento. Ora, contrariamente ao que se poderia pensar (que o social definitivamente ganhou, que o movimento é irreversível, que o consenso sobre o social é total), a resistência ao social sob todas as suas formas progrediu mais rapidamente ainda do que o social. Ela simplesmente tomou outras formas que não as primitivas e violentas, que foram reabsorvidas pela seguinte (o social vai bem, obrigado, só restam uns loucos para escapar ao registro, à vacinação e às vantagens da segurança). Essas resistências frontais ainda corresponderiam a uma fase também frontal e violenta da socialização, e viriam mais de grupos tradicionais, procurando preservar sua cultura própria, suas estruturas originais. Não era a massa que resistia neles, mas sim as estruturas diferenciadas, contra o modelo homogêneo e abstrato do social.
É também esse tipo de resistência que se encontra nos two steps flow of communication (duplo fluxo de comunicação) que a sociologia americana analisou: a massa absolutamente constitui uma estrutura passiva de recepção das mensagens dos meios de comunicação, sejam elas políticas, culturais ou publicitárias. Os microgrupos e os indivíduos, longe de se alinharem em uma decodificação uniforme e imposta, decodificam as mensagens à sua maneira, as interceptam (através de líderes) e as transpõem (segundo nível), opondo ao código dominante seus sub-códigos particulares, e terminam por reciclar tudo o que os atinge em seus próprio ciclo, exatamente como os primitivos reciclavam a moeda ocidental em sua circulação simbólica (os Sians da Nova Guiné) ou como os corsos reciclam o sufrágio universal e as eleições em sua estratégia de rivalidades entre clãs. Esta maneira de desvio, de absorção, de recuperação vitoriosa pelos subgrupos do material difundido pela cultura dominante, este ardil é universal. É também ele que conduz ao uso “mágico” do médico e da medicina nas massas “subdesenvolvidas”. Creditado normalmente a uma mentalidade arcaica e irracional, é preciso ler ai, ao contrário, uma prática ofensiva, um desvio por excesso, uma recusa não-analisada, mas “sem o saber” profundamente consciente das devastações da medicina racional.
Mas esta ainda é a ação de grupos estruturados, pertencentes e de origem tradicionais. Outra coisa é o fracasso da socialização imposto pela massa, isto é, por um grupo inumerável, inominável e anônimo, e cuja força reside na sua própria desestruturação e inércia. Assim, no caso dos meios de comunicação, a resistência tradicional consiste em reintegrar as mensagens segundo o código próprio ao grupo e em torno de seus próprios objetivos. As massas, estas aceitam tudo e desviam tudo em bloco no espetacular, sem exigência de um outro código, sem exigência de sentido, na realidade sem resistência, mas fazendo com que tudo passe para uma esfera indeterminada que não é nem mesmo a do não-sentido, mas a da fascinação/manipulação de todos os azimutes.
Sempre se acreditou que são os meios de comunicação que enredam as massas - o que é a própria ideologia dos mass media. Procurou-se o segredo da manipulação numa semiologia que combate os mass media. Mas se esqueceu, nessa lógica ingênua da comunicação, que as massas são um meio muito mais forte que todos os meios de comunicação, que são elas que os enredam e os absorvem - ou que pelo menos não há nenhuma prioridade de um sobre o outro. O processo da massa e o dos meios de comunicação são um processo único. Mass(age) é mensagem.
O mesmo aconteceu com o cinema, cujos inventores no início imaginaram como um meio racional, documental, informativo, social, e que caiu muito rápido e definitivamente no imaginário.
O mesmo aconteceu com a técnica, com a ciência e com o saber. Destinados a uma prática mágica e a um consumo “espetacular”. Aconteceu o mesmo com o próprio consumo. Levando em conta a seriedade de sua “teoria das necessidades” e o consenso geral sobre o discurso da utilidade, para seu próprio estupor os economistas nunca conseguiram racionalizar o consumo. Mas isso porque a prática das massas nunca teve imediatamente nenhuma relação (talvez nunca tenha) com as necessidades. Elas fizeram do consumo uma dimensão de status e de prestígio, de promessa inútil ou de simulação, de potlatch que de qualquer maneira excederia o valor de uso. Na verdade, trata-se de lhes inculcar de todos os lados (propaganda oficial, associação de consumidores, ecólogos, sociólogos) a boa prática e o cálculo funcional em matéria de consumo, mas sem esperança. Porque é pelo valor/signo e pelo jogo desenfreado do valor/signo (onde os economistas, mesmo quando tentaram integrá-lo como variável, não deixaram de ver uma inclinação da razão econômica), é por isso que as massas põem à prova a economia, resistem ao imperativo “objetivo” das necessidades e à ponderação racional dos comportamentos e dos fins. Valor/signo em vez de valor de uso já é um desvio da economia política. E que não se diga que tudo isso afinal serve ao valor de troca, isto é, ao sistema. Porque se o sistema se sai muito bem com esse jogo e até mesmo o favorece (as massas “alienadas” nos gadgets, etc.) isso não é o essencial e o que esse deslize, essa derrapagem inaugura a longo prazo - inaugura desde agora - é o fim do econômico, isolado de todas as suas definições racionais pelo uso excessivo, mágico, espetacular, indireto e quase paródico que as massas fazem dele. Uso a-social, resistente a todas as pedagogias socialistas - uso aberrante através do qual as massas (nós, vocês, todo o mundo) inverteram a economia política desde agora. Não esperaram as revoluções futuras nem as teorias que pretendem libertá-las de um movimento “dialético”. Elas sabem que não se liberta de nada e que só se abole um sistema obrigando-o ao hiperlógico, impelindo-o a um uso excessivo que equivale a um amortecimento brutal. “Vocês querem que se consuma - pois bem, consumamos sempre mais, e não importa o quê; para todos os fins inúteis e absurdos.”
O mesmo aconteceu com a medicina: à resistência frontal (que aliás não desapareceu) se substituiu uma forma mais sutil de subversão, um consumo excessivo, irrefreável, da medicina, um conformismo pânico às injunções da saúde. Escalada fantástica do consumo médico que desvia completamente os objetivos e as finalidades sociais da medicina. Que melhor meio de aboli-Ia? Desde então os médicos não sabem mais o que fazem, o que são, muito mais manipulados do que manipuladores. “Queremos mais cuidados, mais médicos, mais medicamentos, mais segurança, mais saúde, sempre mais, sem limites!” As massas são alienadas na medicina? De modo algum: ao exigirem sempre mais, como mercadoria, estão prestes a arruinar sua instituição, a explodir a segurança social, a colocar o próprio social em perigo. Que maior ironia pode haver do que nesta exigência do social como bem de consumo individual, submetido ao excesso da oferta e da procura? Paródia e paradoxo: é por sua inércia nos caminhos do social que lhes foram traçados que as massas lhes ultrapassam a lógica e os limites, e destroem todo o edifício. Hipersimulação destrutiva, hiperconformismo destruidor (como no caso de Beaubourg, analisado em outra perspectiva)6 que tem todas as aparências de um desafio vitorioso - ninguém avaliará a força desse desafio, da reversão que ele exerce sobre todo o sistema. É aí que está o verdadeiro problema hoje, nesse afrontamento surdo e inelutável das maiorias silenciosas contra o social que lhes é imposto, nessa hiper-simulação que redobra a simulação e que a extermina a partir de sua própria lógica - não em alguma luta de classe nem no caos molecular das minorias em ruptura de desejo.
Massa e terrorismo
Estamos portanto no ponto paradoxal em que as massas se recusam ao batismo do social, que é ao mesmo tempo o do sentido e da liberdade. Não faze mos delas uma nova e gloriosa referência. Porque elas não existem. Mas constatamos que todos os poderes acabam por se arruinar silenciosamente nessa maioria silenciosa, que não é nem uma entidade nem uma realidade sociológica, mas a sombra projetada pelo poder, seu abismo no vácuo, sua forma de absorção. Nebulosa fluida, movente, conforme, excessivamente, conforme a todas as solicitações e de um conformismo hiper-real que é a forma extrema da não-participação: tal é o desastre atual do poder. Tal é também o desastre da revolução. Porque essa massa implosiva jamais explodirá por definição, e qualquer palavra revolucionária também implodirá aí. Em conseqüência, o que fazer com essas massas? Elas são o leitmotiv de todos os discursos. São a obsessão de todo projeto social, mas todos malogram nelas, porque todos permanecem enraizados na definição clássica de massas, a de uma esperança escatológica do social e de sua realização. Ora, as massas não são o social, são a reversão de todo social e de todo socialismo. Muitos teóricos, entretanto, condenaram o sentido, denunciaram as armadilhas da liberdade e as mistificações do político, criticaram radicalmente a racionalidade de qualquer forma de representação - quando as massas atravessavam o sentido, o político, a representação, a história, a ideologia, com uma forma sonambúlica de negação, quando realizam aqui e agora tudo o que a critica mais radical pôde vislumbrar, nesse momento esta não sabe o que fazer disso e se obstina em sonhar com uma revolução futura - revolução crítica, revolução de prestígio, a do social, a do desejo. Esta revolução por involução não é a sua: não é explosiva-crítica, é implosiva e cega. Procede por inércia e não por uma negatividade franca e jovial. Ela é silenciosa e involutiva - exatamente o inverso de todas as tomadas de palavra e tomadas de consciência. Não tem sentido. Não tem nada a nos dizer.
Aliás o único fenômeno que está em relação de afinidade com elas, com as massas, exatamente como se aí se desenrolasse a última peripécia do social, e de sua morte, é o terrorismo. Nada mais “afastado das massas” do que o terrorismo, e o poder tem tentado levantar um contra o outro. Mas nada mais estranho, nada mais familiar também, do que sua convergência na negação do social e na recusa do sentido. Porque o terrorismo na verdade pretende visar o capital (o imperialismo mundial, etc.) mas se engana de inimigo, e ao fazer isso visa seu verdadeiro inimigo, que é o social. O terrorismo atual visa o social em resposta ao terrorismo do social. Ele visa o social tal como é produzido hoje - rede orbital, intersticial, nuclear, textural, de controle e de segurança, que nos investe de todas as partes e nos produz, a nós todos, como maioria silenciosa. Socialidade hiper-real, imperceptível, que não opera mais pela lei e pela repressão, mas pela infiltração de modelos, não pela violência, mas pela persuasão/dissuação. A isso o terrorismo responde com um ato ele mesmo hiper-real, imediatamente destinado às ondas concêntricas dos meios de comunicação e da fascinação, imediatamente destinado não a alguma representação nem consciência, mas à desaceleração mental por contingüidade, fascinação e pânico, não à reflexão nem à lógica das causas e dos efeitos, mas à reação em cadeia por contágio. Desprovido de sentido, portanto, e indeterminado como o sistema que ele combate, em que ele se insere mais como um ponto de implosão máxima e infinitesimal - terrorismo não-explosivo, não-histórico, não-político; implosivo, cristalizante, siderante - e por isso profundamente homólogo ao silêncio e à inércia das massas.
O terrorismo não visa fazer falar, ressuscitar ou mobilizar quem quer que seja; não tem prolongamento revolucionário (a esse respeito, seria mais uma contra-performance total, o que se lhe censura violentamente, mas seu problema não está nisso), visa as massas em seu silêncio, silêncio magnetizado pela informação; ele visa, para precipitar sua morte ao acentuá-la, esta magia branca do social que nos envolve, a da informação, da simulação, da dissuasão, do controle anônimo e aleatório, essa magia branca da abstração social pela magia negra de uma abstração maior ainda, mais anônima, mais arbitrária e mais aleatória ainda: a do ato terrorista.
Ele é o único ato não-representativo. É nisso que ele tem afinidade com as massas, que são a única realidade não-representável. Sobretudo isso não quer dizer que novamente o terrorismo representaria o silêncio e o não-dito das massas, que exprimiria violentamente sua resistência passiva. Isso quer dizer simplesmente: não há equivalente ao caráter cego, não-representativo, desprovido de sentido, do ato terrorista, senão o comportamento cego, desprovido de sentido e além da representação que é o das massas. Eles têm isso de comum porque são a forma atual mais radical, mais exacerbada, de negação de qualquer sistema representativo. É tudo. Ninguém sabe na realidade que relação pode se estabelecer entre dois elementos que estão além da representação, é um problema que nossa epistemologia do conhecimento não permite resolver pois ela postula sempre a mediação de um sujeito e de uma linguagem, a mediação de uma representação. Só conhecemos bem os encadeamentos representativos, não sabemos grande coisa dos encadeamentos analógicos, afinitários, imediatizados, irreferenciais e outros sistemas. Sem dúvida, alguma coisa de muito forte passa entre eles (massas e terrorismo) que procuraríamos em vão nos precedentes históricos dos sistemas representativos (povo/assembléia, proletariado/partido, marginais-minorias/grupelhos, etc.). E assim como uma energia social passa entre dois pólos de um sistema representativo qualquer, energia positiva, assim se poderia dizer que entre as massas e o terrorismo, entre esses dois não-pólos de um sistema não-representativo, também passa uma energia, mas uma energia inversa, energia não de acumulação social e de transformação, mas de dispersão do social, de absorção e anulação do político.
Não se pode dizer que é a “era das maiorias silenciosas” que “produz” o terrorismo. É a simultaneidade dos dois que é assombrosa e causa estranheza. Único acontecimento, aceite-se ou não sua brutalidade, que verdadeiramente marca o fim do político e do social. O único que traduz essa realidade de uma implosão violenta de todos os nossos sistemas de representação.
O terrorismo não visa de modo algum desmascarar o caráter repressivo do Estado (essa é a negatividade provocadora dos grupelhos, que aí encontram uma última oportunidade de serem representativos aos olhos das massas). Ele propaga, por sua própria não-representatividade e por reação em cadeia (não por demonstração e tomada de consciência), a evidência da não-representatividade de todos os poderes. Aí está sua subversão: ele precipita a não-representatividade injetando-a em doses infinitesimais mas bastante concentradas.
Sua violência fundamental é de negação de todas as instituições de representação (sindicatos, movimentos organizados, luta “política” consciente, etc.). Inclusive daqueles que professam solidariedade a ele, porque a solidariedade ainda é a maneira de constituí-lo como modelo, como emblema, e, portanto, de lhe atribuir representação (“Eles estão mortos para nós, sua ação não foi inútil...”). Todos os meios são bons para violentar o sentido, para desconhecer quanto o terrorismo é sem legitimidade social, sem prolongamento político, sem continuidade em história alguma. Seu único “reflexo” não é exatamente um prolongamento histórico: é sua narração, sua onda de choque nos meios de comunicação. Ora, essa narração não é de natureza objetiva e informativa, tanto como o terrorismo não é de natureza política. Todos os dois estão em outro lugar, numa ordem que não é nem de sentido nem de representação - talvez mítica, sem dúvida simulacro.
O outro aspecto da violência terrorista é a negação de toda determinação e de toda qualidade. Nesse sentido, é preciso distinguir o terrorismo do “banditismo” e da ação de comando. Esta é um ato de guerra que visa um inimigo determinado (explodir um trem, ataque a bomba à sede do partido adversário, etc.). O outro depende da violência criminal tradicional (hold-up num banco, seqüestro em troca de resgaste, etc.). Todas essas ações têm um “objetivo” econômico ou militar. O terrorismo atual, inaugurado com a tomada de reféns e o jogo adiado da morte, não tem objetivo (se ele pretende tê-los, são irrisórios ou inacessíveis, e, de qualquer maneira, é exatamente o método mais ineficaz de atingi-los) nem inimigo determinado. Os palestinos visam Israel por intermédio dos reféns? Não, é através da intermediação de Israel que eles visam um inimigo mítico, mesmo não-mítico, anônimo, indiferenciado, uma espécie de ordem social mundial presente em toda parte, não importa quando, não importa quem, até o último dos “inocentes”. Assim é o terrorismo, original e insolúvel somente porque ataca não importa onde, quando e quem, senão seria somente ato de resgate ou de comando militar. Sua cegueira é a réplica exata da indiferenciação absoluta do sistema, que há muito tempo não distingue os fins dos meios, os carrascos das vitimas. Seu ato visa, na indistinção assassina da tomada de reféns, exatamente o produto mais característico de todo o sistema: o indivíduo anônimo e perfeitamente indiferenciado, o termo substituível por qualquer outro. É preciso dizer paradoxalmente; os inocentes pagam o crime de não serem nada, de serem sem destino, de terem sido despossuídos de seu nome por um sistema também anônimo, de que eles se tornaram, então, a mais pura encarnação. São os produtos acabados do social, de uma sociabilidade abstrata doravante mundializada. É nesse sentido, exatamente no sentido em que eles são qualquer pessoa, que são as vítimas predestinadas pelo terrorismo.
É nesse sentido, ou melhor, nesse desafio ao sentido, que o ato terrorista se assemelha à catástrofe natural. Não há diferença alguma entre um terremoto na Guatemala e a queda de um Boeing da Lufthansa com trezentos passageiros a bordo, entre a intervenção “natural” e a intervenção “humana” terrorista. A natureza é terrorista, como o é a interrupção abrupta de todo o sistema tecnológico: os grandes black-outs de Nova Iorque (1965 e 1977) criam situações terroristas melhores que as verdadeiras, situações sonhadas. Melhor: esses grandes acidentes tecnológicos, como os grandes acidentes naturais, exemplificam a possibilidade de uma subversão radical sem sujeito. A pane de 1977 em Nova Iorque poderia ser fomentada por um grupo terrorista muito organizado e isso não mudaria nada no resultado objetivo. Teriam sucedido os mesmos atos de violência, de pilhagem, de levante, a mesma suspensão da ordem “social”. Isso significa que o terrorismo não está na decisão de violência, mas em toda parte na normalidade do social, de modo que ela pode de um momento para o outro se transfigurar numa realidade inversa, absurda, incontrolável. A catástrofe natural funciona dessa maneira e é assim que, paradoxalmente, ela se torna a expressão mítica da catástrofe do social. Ou melhor, sendo a catástrofe natural por excelência um incidente desprovido de sentido, não-representativo (senão de Deus, eis por que o responsável pela Continental Edison pôde falar de Deus e de sua intervenção no episódio do último black-out de Nova Iorque), torna-se uma espécie de sintoma ou de encarnação violenta do estado do social, a saber, de sua catástrofe e da ruína de todas as representações que o sustentavam.
Sistemas implosivos, sistemas explosivos
Massas, meios de comunicação e terrorismo, em sua afinidade, triangular, descrevem o processo de implosão hoje dominante. Todo o processo é afetado por uma violência que somente começa, violência orbital e nuclear, de aspiração e fascinação, violência do vazio (a fascinação é a intensidade extrema do neutro). A implosão, para nós e hoje, só pode ser violenta e catastrófica, porque ela resulta do fracasso do sistema de explosão e de expansão dirigida que foi o nosso no Ocidente há alguns séculos.
Ora, a implosão não é necessariamente um processo catastrófico. Ela foi, sob uma forma controlada e dirigida, o segredo dominante das sociedades primitivas e tradicionais. Configurações não-expansivas, não-centrifugas: centrípetas - pluralidades singulares que nunca visam o universal, centradas num processo cíclico, o ritual, e que tendem a involuir nesse processo não-representativo, sem instância superior, sem polaridade, disjuntiva, sem entretanto se arruinar a si mesmas (salvo, sem dúvida, determinados processos implosivos inexplicáveis para nós, como o colapso das culturas tolteca, olmeca, maia, que de que não se soube nada, cujos impérios piramidais desapareceram sem deixar traços, sem catástrofe visível, como se desinvestidos brutalmente, sem causa aparente, sem violência externa). As sociedades primitivas viveram portanto de uma implosão dirigida - morreram quando deixaram de controlar esse processo, e oscilaram então para o da explosão (demográfica, ou excedentes de produção irredutíveis, processo de expansão incontrolável, ou simplesmente quando a colonização as iniciou violentamente na norma expansiva e centrífuga dos sistemas ocidentais).
Inversamente, nossas civilizações “modernas” viveram sobre uma base de expansão e de explosão em todos os níveis, sob o signo da universalização do mercado, dos valores econômicos e filosóficos, sob o signo da universalidade da lei e das conquistas. Sem dúvida mesmo elas souberam viver, pelo menos num momento, de uma explosão dirigida, de uma liberação de energia controlada e progressiva, e foi a idade de ouro de sua cultura. Mas, conforme um processo de arroubamento e de aceleração, esse processo explosivo se tornou incontrolável, atingiu uma rapidez ou uma amplitude mortal, ou melhor, atingiu os limites do universal, saturou o campo de expansão possível e, assim como as sociedades primitivas foram devastadas pela explosão por não terem sabido controlar durante mais tempo o processo implosivo, assim nossas culturas começam a ser devastadas pela implosão por não terem sabido controlar e equilibrar o processo explosivo.
A implosão é inelutável, e todos os esforços para salvar os princípios de realidade, de acumulação, de universalidade, os princípios de evolução que dependem dos sistemas em expansão são arcaicos, regressivos, nostálgicos. Inclusive todos aqueles que querem liberar as energias libidinais, as energias plurais, as intensidades fragmentárias, etc. A “revolução molecular” só traduz a última fase de “liberação de energias” (ou de proliferação de segmentos, etc.) até os limites infinitesimais do campo de expansão que foi o de nossa cultura. Tentativa infinitesimal do desejo que sucede à do infinito do capital. Solução molecular que sucede ao ataque molar dos espaços e do social. Últimos clarões do sistema explosivo, última tentativa de ainda controlar uma energia dos confins, ou de ampliar os confins da energia (nosso leitmotiv fundamental) para salvar o principio de expansão e de liberação.
Mas nada travará o processo implosivo, e a única alternativa que resta é a de uma implosão violenta e catastrófica, ou de uma implosão lenta e progressiva. Há traços disso, de diversas tentativas de controlar os novos impulsos anti-universais, anti-representativos, tribais, centrípetos, etc.: as comunidades, a ecologia, o crescimento zero, as drogas - tudo isso sem dúvida é dessa natureza. Mas é preciso não se iludir sobre a implosão lenta. Ela está destinada à efemeridade e ao fracasso. Não houve transição equilibrada de sistemas implosivos aos sistemas explosivos: isso sempre aconteceu violentamente, e há toda a possibilidade de que nossa passagem para a implosão também seja violenta e catastrófica.
... Ou o fim do social
O social não é um processo claro e unívoco. As sociedades modernas correspondem a um processo de socialização ou de dessocialização progressiva? Tudo depende da acepção do termo, ora, nenhuma é segura e todas são reversíveis. O mesmo ocorre com as instituições que marcaram os “progressos do social” (urbanização, concentração, produção, trabalho, medicina, escolarização, segurança social, seguros, etc), inclusive o capital, que sem dúvida foi o meio de socialização mais eficaz de todos, pode-se dizer que elas produzem e destroem o social no mesmo movimento.
Se o social é feito de instâncias abstratas que, umas após as outras, se edificam sobre as ruínas do edifício simbólico e ritual das sociedades anteriores, então essas instituições o produzem cada vez mais. Mas, ao mesmo tempo, elas sancionam essa abstração devorante, talvez devoradora exatamente do “âmago substantivo” do social. A partir desse ponto de vista, pode-se dizer que o social regride na própria medida dó desenvolvimento das instituições.
O processo acelera e atinge sua extensão máxima com os meios de comunicação de massa e com a informação. Os mídia, todos os mídia, e a informação, qualquer informação, funcionam nos dois sentidos: aparentemente produzem mais social e neutralizam profundamente as relações sociais e o próprio social.
Mas, então, se o social é ao mesmo tempo destruído por aquele que o produz (os mídia, a informação) e reabsorvido pelo que produz (as massas), segue-se que a definição é nula, e que esse termo que serve de álibi universal para todos os discursos não analisa nada, não designa nada. Ele não é somente supérfluo e inútil - em toda a parte em que aparece esconde outra coisa: desafio, morte, sedução, ritual, repetição -, esconde que é abstração e resíduo, ou mesmo simplesmente efeito de social, simulação e miragem.
O próprio termo “contato social” é enigmático. O que é um “contato social”, uma “relação social”, o que é a “produção de contatos sociais”? Aqui tudo é falsa evidência. O social é imediatamente, e como por definição, um “contato” ou uma “relação”? - o que já supõe uma séria abstração e uma álgebra racional do social -, ou na verdade é outra coisa que o termo “contato” racionaliza demais? Talvez o “contato social” exista para outra coisa, por exemplo, para que o destrói? Talvez ele confirme, talvez inaugure o fim do social?
As “ciências sociais” vieram consagrar essa evidência e essa eternidade do social. Mas é preciso desencantar. Houve sociedades sem social, assim como houve sociedades sem história. As redes de obrigações simbólicas não eram exatamente nem “contato” nem “social”. No outro extremo, nossa “sociedade” talvez esteja prestes a pôr fim ao social, a enterrar o social sob a simulação do social. Para este há diversas maneiras de morrer - assim como definições. O social talvez só terá tido uma existência efêmera, numa estreita bifurcação entre as formações simbólicas e a nossa “sociedade”, onde morre. Antes, não existe ainda. Após, não existe mais. Só a “sociologia” pode parecer testemunhar sua eternidade, e a soberana algaravia das “ciências sociais” ainda o divulgará muito tempo após ele ter desaparecido.
A energia ininterrupta do social surgiu há dois séculos com a desterritorialização e a concentração sob instâncias cada vez mais unificadas. Espaço perspectivo centralizado que dá um sentido a tudo o que nele se insere por simples convergência numa linha de fuga ao infinito (como o espaço e o tempo, o social efetivamente abre uma perspectiva ao infinito). Não há definição do social senão nessa perspectiva panótica.
Mas não esqueçamos que este espaço perspectivo (em pintura e em arquitetura, assim como em política ou em economia) é só um modelo de simulação entre outros, e que só tem por característica o fato de que permite efeitos de verdade, de objetividade, inauditos e desconhecidos aos outros modelos. Ele não é talvez um equívoco? Em qualquer caso, tudo o que se tramou e se colocou nessa “cena à italiana” do social jamais teve importância profunda. As coisas, profundamente, jamais funcionaram de modo social, mas sim simbolicamente, magicamente, irracionalmente, etc. O que subentende a fórmula: o capital é um desafio à sociedade. O que quer dizer que essa máquina perspectiva, panótica, que esta máquina de verdade, de nacionalidade, de produtividade que é o capital, não tem finalidade objetiva, não tem razão: ela é antes de mais nada uma violência, e esta violência se exerce pelo social sobre o social, mas na realidade ela não é uma máquina social, ela despreza o capital e o social em sua definição ao mesmo tempo solidária e antagônica. Isso quer dizer ainda que não há contrato, que jamais houve contrato passado entre as distintas instâncias segundo a lei - tudo isso é vento -, só há questões, desafios, isto é, algo que não passa por uma “relação social”.
O desafio não é uma dialética, nem uma oposição respectiva de um pólo ao outro, de um termo ao outro, numa estrutura plena. Ele é um processo de exterminação da posição estrutural de cada termo, da posição de sujeito de cada um dos antagonistas e em particular daquele que lança o desafio: por isso mesmo ele abandona qualquer posição contratual que possa dar lugar a uma “ligação”. A lógica não é mais a da troca de valor. É a do abandono de posições de valor e de sentido. O protagonista do desafio sempre está em posição suicida, mas um suicídio triunfal: é pela destruição do valor, pela destruição do sentido (a sua, o seu) que ele força o outro a uma resposta nunca equivalente, sempre superada. O desafio é sempre do que não tem sentido, não tem nome, não tem identidade, para o que se prevalece de um sentido, de um nome, de uma identidade - é o desafio ao sentido, ao poder, à verdade, de existirem enquanto tais, de pretenderem existir como tais. Só esta reversão pode dar fim ao poder, ao sentido, ao valor, e nunca alguma relação de forças, por mais favorável que seja, pois esta se reproduz numa relação polar, binária, estrutural, que recria por definição um novo espaço de sentido e de poder.7
Aqui são possíveis várias hipóteses:
1. Na realidade o social nunca existiu. Nunca houve “ligação” social. Nunca nada funcionou socialmente. Nessa base inelutável de desafio, de sedução e de morte, sempre houve somente simulação do social e de ligação social. De nada adianta, nesse caso, sonhar com uma sociedade “real”, com uma socialidade escondida, com uma socialidade ideal. Seria hipostasiar o simulacro. Se o social é uma simulação, o único incidente provável é o de uma dessimulação brutal - o próprio social deixando de se afirmar como espaço de referência e de jogar o jogo, pondo imediatamente fim ao poder, ao efeito de poder e ao espelho do social que o eterniza. Dessimulação que assume ela mesma o comportamento de um desafio (desafio inverso ao do capital ao social e à sociedade): desafio ao capital e ao poder de existirem segundo sua lógica própria - eles não a têm, eles se desvanecem como ordenação desde que a simulação do espaço social se desfaz.8 Na verdade é isso que assistimos hoje: à desagregação do pensamento do social, ao definhamento e à involução do social, ao enfraquecimento do simulacro social, verdadeiro desafio ao pensamento construtivo e produtivo do social que nos domina. E isso de repente, como se o social nunca tivesse existido. Enfraquecimento que tem todos os traços de uma catástrofe, não de uma evolução ou de uma revolução. Não mais uma “crise” do social, mas a incorporação do seu ordenamento. Sem nada a ver com as deserções marginais (loucos, mulheres, drogados, delinqüentes), que servem, ao contrário, de novas energias ao social enfraquecido. Esse processo não pode mais ser ressocializado. Ele é a evaporação, como a de um espectro ao canto do galo, do principio de realidade e de racionalidade social.
2. O social realmente existiu, ele até existe cada vez mais, ele investe tudo, só há o social. Longe de se volatilizar, é ele que triunfa, é a realidade do social que se impõe em toda a parte. Mas pode-se considerar, contra o preconceito que faz do social um processo objetivo da espécie humana, tudo o que escapa sendo somente resíduo, que é o próprio social que é resíduo, e que, se triunfou no real, foi exatamente enquanto tal. Resíduo crescente e logo universal da dispersão da ordem simbólica, foi o social como resto que se fortaleceu do real.9 Eis aí um tipo de morte mais sutil.
Nesse caso, na verdade estamos sempre mais no social, isto é, na dejecção pura, na obstaculização fantástica do trabalho morto, das relações mortas e instanciadas nas burocracias terroristas, das linguagens e dos sintagmas mortos os próprios termos “ligação” e “relação” já têm algo de morto, e algo de morte.
Então evidentemente não se pode mais dizer que o social morre, pois ele é desde sempre acumulação do morto. Com efeito, estamos numa civilização do super-social, e simultaneamente do resíduo indegradável, indestrutível, que se expande na própria medida da extensão do social.
Desperdício e reciclagem: tal seria o social à imagem de uma produção cujo ciclo escapou há muito tempo às finalidades “sociais” para tornar-se uma nebulosa espiral completamente ex-inscrita, girando sobre si mesma e se alargando à cada “revolução” que descreve. Vê-se assim o social crescer no decorrer da história como gestão “racional” dos resíduos, e dentro em pouco produção racional de resíduos.
Em 1544 abriu-se o primeiro grande estabelecimento de pobres em Paris: vagabundos, dementes, doentes, todos aqueles que o grupo não integrou e deixou como sobras serão adotados sob o signo nascente do social. Este se expandirá às dimensões da assistência pública no século 19, depois à Segurança Social no século 20. À medida que se reforça a razão social, é ‘a coletividade toda que logo se torna residual e, portanto, com uma espiral mais, é o social que se alarga. Quando a sobra atinge as dimensões da sociedade toda, tem-se uma socialização perfeita.10 Todo o mundo está perfeitamente excluído e adotado, perfeitamente desintegrado e socializado.
A integração simbólica é substituída pela integração funcional, instituições funcionais se ocupam dos resíduos da desintegração simbólica - uma instância social aparece onde não existia e não havia nem mesmo nome para dizê-la. Os “contatos sociais” se multiplicam, proliferam, se enriquecem proporcionalmente a esta desintegração. E as ciências sociais vêm coroar o conjunto. De onde o sabor de uma expressão como: “a responsabilidade da sociedade em relação a seus membros deserdados”, quando se sabe que o “social”, exatamente, é só a instância que resulta deste desamparo.
De onde o interesse da rubrica “Sociedade” do Monte, em que paradoxalmente só aparecem os emigrados, os delinqüentes, as mulheres, etc.: exatamente tudo o que não foi socializado, o “caso” social análogo ao caso patológico. Bolsões para serem incorporados, segmentos que o social isola pouco a pouco em sua extensão. Designados como residuais no campo do social, por isso mesmo eles entram em sua jurisdição e são destinados a encontrar seu lugar numa socialidade ampliada. É sobre essa sobra que a máquina social se lança e encontra apoio para uma nova ampliação. Mas o que acontece quando tudo está socializado? Então a máquina pára, a dinâmica se inverte, e é o sistema social todo que se torna resíduo. À medida que o social em sua progressão elimina todos os resíduos, ele próprio se torna residual. Ao colocar sob a rubrica “Sociedade” as categorias residuais, o próprio social se designa como resto.
Ora, o que se torna a racionalidade do social, do contrato e da ligação social, se esta, em vez de aparecer como estrutura original, aparece como resíduo e gestão de resíduos? Se o social só é resto, não é mais o lugar de um processo ou de uma história positiva, só é o lugar da acumulação e da gestão usurária da morte. Não tem mais sentido, pois existe para outra coisa, e em desespero de outra coisa: é excremencial. Sem perspectiva ideal. Porque o resto é o nada ultrapassado, o que é irreconciliável na morte, e sobre ele só se pode fundar uma política da morte. Reclusão ou exclusão. O social inicialmente foi, sob o signo da razão positiva, o espaço da grande Reclusão – tornou-se, sob o signo da simulação e da dissuasão, o espaço da grande Exclusão. Mas talvez já não seja mais um espaço “social”.
É nessa perspectiva de gestão de resíduos que o social pode aparecer hoje pelo que é: um direito, uma necessidade, um serviço, um puro e simples valor de uso. Nem mesmo mais uma estrutura conflitiva e política: uma estrutura de acolhimento. O limite do valor economista do social como valor de uso é na verdade o valor ecologista do social como abrigo. O bom uso do social como uma das formas do equilíbrio das trocas do indivíduo com seu meio, o social como ecossistema, homeostase e superbiologia funcional da espécie - não mais uma estrutura: uma substância, o caloroso e protéico anonimato de uma substância alimentícia. Uma espécie de espaço fetal de segurança que provê em toda parte à dificuldade de viver, que fornece em toda a parte a qualidade da vida, isto é, para tal segurança todos os riscos, o equivalente da vida perdida - forma degradada da socialidade lubrificante, assistencial, pacificante e permissiva -, a forma mais baixa da energia social: a de uma utilidade ambiental, comportamental - essa é a nossa imagem do social - forma entrópica -, outra imagem de sua morte.
EXCURSO
O social ou a alocação funcional da sobra
O social existe para cuidar de absorver o excedente de riqueza que, redistribuído sem outra forma de processo, arruinaria a ordem social, criaria uma situação intolerável de utopia.
Essa realocação da riqueza, de qualquer riqueza, que outrora se operaria no sacrifício sem dar lugar à acumulação da sobra, é intolerável para nossas sociedades. É mesmo nisso que são “sociedades” - neste sentido de que elas sempre produzem um excedente, uma sobra seja ela demográfica, econômica ou lingüística, e que essa sobra deve ser liquidada (nunca sacrificada, é muito perigoso: pura e simplesmente liquidada).
O social está nessa dupla qualidade: produzir a sobra e destruí-la.
Se toda a riqueza fosse sacrificada, as pessoas perderiam o sentido do real. Se toda a riqueza se tornasse disponível, as pessoas perderiam o sentido do útil e do inútil. O social existe para garantir o consumo inútil da sobra afim de que os indivíduos se dediquem à gestão útil de suas vidas.
O uso e o valor de uso constituem uma moral fundamental. Mas ela só existe numa simulação de penúria e de cálculo. Se toda a riqueza fosse redistribuída, ela aboliria de si própria o valor de uso (como para a morte: se a morte fosse redistribuída, realocada, aboliria de si mesma a vida como valor de uso). Súbita e brutalmente se tornaria claro que o valor de uso só é uma convenção moral feroz e desencantada, que supõe um cálculo funcional em todas as coisas. Mas ela nos domina a todos, e, intoxicados como o somos pelo fantasma do valor de uso, não suportaríamos esta catástrofe da realocação das riquezas e da morte. Não é necessário que tudo seja realocado. É necessário que a sobra seja. E o social é que cuida da sobra.
Até aqui o carro, a casa e diversas “comodidades” conseguiram bem ou mal absorver as disponibilidades físicas e mentais dos indivíduos. O que aconteceria se toda a riqueza disponível lhes fosse redistribuída? Eles simplesmente a dissipariam - perdendo a linha correta e a medida exata de uma economia bem balanceada, perdendo o sentido do cálculo e das finalidades. Desequilíbrio brutal do sistema de valores (o afluxo repentino de divisas é a maneira mais rápida e mais radical de arruinar uma moeda). Ou bem seriam remetidos, como na sociedade de afluência, a uma extensão patológica do valor de uso (3, 4, n carros), em que este de qualquer maneira se volatiliza num funcionamento hiper-real.
Todo excedente é próprio para arruinar o sistema de equivalências se é realocado sem medida, e também para desesperar de um só golpe nosso sistema mental de equivalências.11 Há, portanto, uma espécie de sabedoria na instituição do social como matriz preventiva da extensão e da realocação das riquezas, como meio de sua dilapidação controlada.
Numa sociedade incapaz de realocação total e dedicada ao valor de uso, há uma espécie de inteligência e de sabedoria na instituição do social e de seu desperdicio “objetivo”: as operações de prestígio, Concorde, a lua, os mísseis, os satélites, até mesmo os trabalhos públicos e a segurança social em sua promessa absurda. Inteligência implícita da estupidez e dos limites do valor de uso. A verdadeira candura é a dos socialistas e humanistas de toda espécie, que querem que toda a riqueza seja redistribuída, que não haja nenhuma despesa inútil, etc. O socialismo, campeão do valor de uso social, revela um contrasenso total sobre o social. Ele acredita que o social possa se tornar a gestão coletiva ótima do valor de uso dos homens e das coisas.
Mas o social nunca é isso. É, apesar de toda esperança socialista, algo insensato, incontrolável, uma protuberância monstruosa, que despende, que destrói sem se preocupar com uma gestão ótima. E é assim precisamente que ele é funcional, é assim (com o risco de fazer os idealistas urrarem) que ele preenche exatamente seu papel que é, através do recurso objetivo do desperdício, manter a contrario o princípio do valor de uso, salvar o princípio de realidade. O social fabrica essa escassez necessária à distinção do bem e do mal, e a toda ordem moral em geral - escassez que as “primeiras sociedades de abundância” descritas por Marshall Sahlins, não conhecem. É o que o socialismo não vê: ao querer abolir essa escassez, e ao reivindicar o usufruto generalizado da riqueza, põe fim ao social acreditando que o está conduzindo ao auge.
O problema da morte do social nessa perspectiva é simples: o social morre de uma extensão do valor de uso que equivale a uma liquidação. Quando tudo, inclusive o social, se torna valor de uso, o mundo se tornou inerte, onde se opera o inverso do que Marx sonhava. Ele sonhava com uma reabsorção do econômico no social (transfigurado). O que nos acontece é a reabsorção do social na economia política (banalizada): a gestão pura e simples.
É o mau uso das riquezas que salva uma sociedade. Nada mudou desde Mandeville e sua Fábula das Abelhas. E o socialismo nada pode contra isso. Toda a economia política foi inventada para resolver esse paradoxo, essa ambigüidade maléfica do funcionamento do social. Mas ela sempre fracassou, por uma espécie de funcionamento de segundo grau. Ou na verdade ela está prestes a conseguir e após ter visto o político se abolir e se diluir no social, estamos prestes a ver o social se incorporar no econômico - uma economia ainda mais política, e desprovida do “ubris”, da desmedida e do excesso que ainda caracterizaria a fase capitalista?
3. O social realmente existiu, mas não existe mais. Existiu como espaço coerente, como princípio de realidade: a relação social, a produção de relações sociais, o social como abstração dinâmica, lugar de conflitos e de contradições históricas, o social como estrutura e como possibilidade, como estratégia e como ideal - tudo isso teve um sentido, isso quis dizer alguma coisa. O social não foi sempre um equivoco, como na primeira hipótese, nem uma sobra, como na segunda. Mas justamente só teve sentido, como o poder, como o trabalho, como o capital, num espaço perspectivo de distribuição racional, espaço finalizado de convergência ideal, que é também o da produção - em suma, na bifurcação estreita de simulacros de segunda ordem, e hoje morre incorporado aos simulacros de terceira ordem. Fim do espaço perspectivo do social. A socialidade racional do contrato, a socialidade dialética (a do Estado e da sociedade civil, do público e do priva do, do social e do individual) dá lugar à socialidade do contato, do circuito e da rede transistorizada de milhões de moléculas e de partículas mantidas numa zona de gravitação aleatória, imantadas pela circulação incessante e pelas milhares de combinações táticas que as eletrizam. Mas ainda se trata de socius? Onde está a socialidade à Ia Los Angeles? E onde estará ela adiante, numa geração posterior (porque Los Angeles ainda é a da tevê, do cinema, do telefone e do automóvel), a de uma disseminação total, de uma alocação de indivíduos como terminais de informação, num espaço nem sequer mensurável, nem convergente: conectado, espaço de conexão? Ora, o social só existe num espaço perspectivo, morre no espaço de simulação, que é também um espaço de dissuasão.
O espaço da simulação é o da confusão do real e do modelo. Não há mais distância critica e especulativa do real ao racional. Não há nem mesmo exata mente projeção de modelos no real (o que ainda equivale à substituição do mapa pelo território, em Borges), mas transfiguração no mesmo lugar, aqui e agora, do real em modelo. Curto-circuito fantástico: o real é hiper-realizado; nem realizado, nem idealizado: hiper-realizado. O hiper-real é a abolição do real não por destruição violenta, mas pela afirmação, elevação à potência do modelo, Antecipação, dissuasão, transfiguração preventiva, etc.: o modelo opera como esfera de absorção do real.
Isso se vê em alguns traços sutis, superficiais, imperceptíveis, nos quais o real aparece como mais verdadeiro que o verdadeiro, como excessivamente real por ser verdadeiro. Todos os meios de comunicação e de informação têm hoje por tarefa produzir (entrevistas, experiência vivida, cinema, tevê-verdade, etc.) esse real, esse acréscimo de real. Há real em demasia, cai-se no obsceno e no pornô. Como no pornô, uma espécie de zoom nos aproxima demais no real, que jamais existiu, jamais teve sentido senão a uma certa distância. Dissuasão de toda potencialidade real, dissuasão por repetição minuciosa, por hiperfidelidade macroscópica, pela reciclagem acelerada, por saturação e obscenidade, por abolição da distância entre o real e sua representação, pela implosão dos pólos diferenciados por onde passava a energia do real: essa hiper-realidade põe fim ao sistema do real, põe fim ao real como referencial ao exaltá-lo como modelo.
É também ela, da mesma maneira, que põe fim ao social. O social, se se realizou como simulacro de segunda ordem, não tem mais a oportunidade de se produzir nos de terceira ordem: é imediatamente pego em sua própria encenação lenta e desesperada, em sua própria obscenidade. Os signos de hiper-realização do social estão em toda parte, os signos da repetição social e de sua realização antecipada. Em toda parte a transparência da relação social é afixada, significada, consumada. A história do social jamais teve tempo de levar à revolução: ela foi rapidamente tomada pelos signos do social e da revolução. O social nunca teve tempo de levar ao socialismo, ele teria sido curto-circuitado pelo hiper-social, pela hiper-realidade do social (mas talvez o socialismo não seja isso?). Deste modo o proletariado não teria tido tempo de “se negar enquanto tal”: o conceito de classe se dissolveu bem antes, em alguma dupla paródia, extensiva, tal como a “massa de trabalhadores”, ou simplesmente numa simulação retrospectiva do proletariado. Assim, antes mesmo que a economia política leve à sua superação dialética, à resolução de todas as necessidades e à organização ótima das coisas, antes que se tenha podido ver se havia algum fundamento em tudo isso, ela terá sido captada pela hiper-realidade da economia (a sobremultiplicação da produção, a precedência da produção da demanda sobre a das mercadorias, o cenário indefinido da crise).
Nada foi nem irá doravante ao termo de sua história, porque nada escapa a essa antecipação de simulacros. E o próprio social está morto antes de ter revelado seu segredo.12
Tenhamos portanto uma lembrança comovida da incrível ingenuidade do pensamento social e socialista, de ter podido hipostasiar assim no universal e erigir como ideal de transparência uma “realidade” tão totalmente ambígua e contraditória, pior: residual ou imaginária. Pior: desde já abolida em sua simulação mesma - o social.
O êxtase do socialismo
Uma idéia incômoda. que além de um certo ponto determinado do tempo, a história não foi mais real. Sem se dar conta disso, a totalidade do gênero humano repentinamente teria deixado a realidade. Tudo o que seria passado desde então não seria mais absolutamente verdade, mas nós não poderíamos nos dar conta disso. Nossa tarefa e nosso dever no presente seriam descobrir esse ponto e, enquanto não o tivéssemos, seria-nos preciso perseverar na destruição atual. Canetti
A hipótese seria a de que atualmente estamos, na França, numa forma estática do socialismo. Trata-se só de ver o êxtase fúnebre do rosto de Mitterrand.
O êxtase geralmente caracteriza a passagem do estado puro, em sua forma pura, de uma forma sem conteúdo e sem paixão. O êxtase é antinômico da paixão.
Assim, pode-se falar de um êxtase do Estado. Desapaixonado, desencarnado, esvaziado, mas todo-poderoso em sua transparência, o Estado acede à sua forma extática, que é a do transpolitico. Ao mesmo tempo, ninguém acredita nisso, e há uma espécie de oblação total, de recurso total, de solicitação universal para esta figura única desaparecida ou em via de desaparecimento do ponto de vista político: o Estado.
O mesmo acontece com o socialismo e o estado de graça na realidade seria isso: a assunção exorbitante de um modelo que perdeu sua verdade no caminho.
Não foi a esquerda que derrubou a direita segundo um processo de ruptura, nem que a sucedeu segundo um processo de alternância. Houve algo de estranho no modo de aparição dessa esquerda, correlativo aliás do modo de desaparição da direita. Esta simplesmente foi esfacelada, como algo que não existia há muito tempo, Suspeitava-se disso. Mas a esquerda também não existe há muito tempo. Isso não a impediu de aparecer prodigiosamente, de repente, de ressuscitar como a vocação fundamental da sociedade francesa, como um patrimônio eterno (que aliás se santificou imediatamente com todas as espécies de cerimônias comemorativas, Panteão, Mont-Valérien, etc.). Sua promoção se inscreve, portanto, como o coroamento do ano do patrimônio.
Não é portanto propriamente nem uma revolução nem um incidente histórico, mas uma espécie de parto pós-histórico retardado há muito tempo (a tal ponto que se acreditou num aborto definitivo), uma espécie de libertação muito particular, a de uma criança escondida, que o capital teria feito às costas da sociedade francesa. Este germina, germina, incuba, explode e invade tudo num só momento. Exatamente como no Afen. A esquerda é o monstro do Alien. E, no conjunto, o acontecimento se revela como um gigantesco efeito social - aliás bem-sucedido -, breve êxtase no curso moroso de nosso destino popular.
Eu bem que gostaria de acreditar que tudo isso foi o fruto de uma longa luta social e política dos trabalhadores, dos sindicatos, dos partidos de esquerda, de inúmeras vontades e iniciativas individuais - mas não estou absolutamente certo disso.
Também não acredito que as pessoas se iludam sobre a substância política das eleições. Mas se serviram à sua maneira - cinematográfica, por assim dizer: extraíram do meio eleitoral um efeito especial, uma aposta sobre a esquerda, a que se deu de repente todas as suas chances: “Nós ganhamos!” Mas, atenção, esta confiança espetacular é em forma de desafio: paga-se a esquerda, em todos os sentidos do termo. Os representantes do povo são bastante ingênuos a esse respeito: tomam sua eleição por uma aprovação e um consenso popular, não desconfiam nunca que não há nada mais ambíguo do que impelir alguém ao poder e que o espetáculo mais gratificante para o povo sem dúvida sempre foi a derrota de uma classe política. Em algum lugar, no mais íntimo da famosa “consciência popular”, a classe política, seja ela qual for, permanece o inimigo fundamental. Ao menos, é preciso esperá-lo.
Não acredito mais que este actinq-out eleitoral tenha significado para a maioria das pessoas uma projeção determinada de suas esperanças, um abandono ao socialismo como vontade e representação. Penso que foi mais a imaginação estética e moral que foi tocada, mas para o resto, para a imaginação histórica e política, este acontecimento é sem conseqüências. O que conta é o êxtasel Isso muda, isso vai mudar Não se acredita aí no sentido de uma finalidade ou de uma superação histórica, aplica-se essa veleidade de assentimento, essa veleidade de crença, essa crença movente e curiosa que se concede aos efeitos da inovação, aos efeitos da mudança, até mesmo aos efeitos da moda. E não digo isso superficial ou metaforicamente. Acho que literalmente se entra, com esse socialismo não sexuado politicamente, com esse socialismo estático e assexuado, na era de prêt-à-croire, assim como a moda entrou na era do prêt-à-porter (a moda também é extática e transexual).
O advento do socialismo como modelo é absolutamente diferente de seu advento histórico. Como acontecimento, como mito, como força de ruptura, o socialismo não tem, como se diz, o tempo de se parecer consigo mesmo, de se fortalecer como modelo, não tem tempo de se confundir com a sociedade - nessa qualidade ele não é um estado estável, e aliás só fez breves aparições históricas. Ao passo que hoje o socialismo se propõe como modelo estável e confiável - não é mais uma exigência revolucionária, é uma simulação de mudança (simulação no sentido de desenvolvimento do melhor cenário possível) e uma simulação do futuro. Nada de surpresa, nada de violência, nada de ultrapassagem, nada de verdadeira paixão. O modelo, como todo modelo, é feito para se realizar numa total semelhança consigo mesmo, ele é feito para se hiper-realizar. É por isso que eu digo que ele é extático: o hiper-real é o êxtase do real fixado em sua própria semelhança, expurgado do imaginário e fixado em seu próprio modelo (mesmo se esse modelo é o da mudança).
Tudo isso para colocar a questão de que depende, para nós, todo o cerne da situação e a própria possibilidade de se compreender qualquer coisa: Há com esse socialismo ressurreição da política e da cena política? Há desaceleração do processo transpolítico de desaparecimento do tempo e da história - na mudança como processo generalizado de dissuasão das possibilidades políticas e sociais, como processo de desaparecimento do real e da transparição extática de todos os modelos: o Estado como modelo extático de realização da sociedade, o terror como modelo extático de realização da violência, etc?
Não respondo a isso: este é o ponto cego de que fala Canetti, onde, sem se dar conta, a totalidade do gênero humano teria deixado a realidade. É com este ponto que fundamentalmente temos de nos ver: realidade ou irrealidade desta história. Tudo se joga nisso e, infelizmente, parece que este ponto está fora do alcance do pensamento critico. Este é o dilema crucial. A menos que haja uma reversão miraculosa da história, que daria sua carne e seu sangue a qualquer projeto social que apareça, e à realidade sem mais, é-nos necessário, como diz Canetti, perseverar na destruição atual.
É o Estado que vela pelo sonho. É à realidade que se encarna.
François-Régis Bastide
A assunção dos valores críticos da teoria no socialismo faz parte desse êxtase. Extasiados, eles doravante nos olham ironicamente, do alto do poder.
Ora, os conceitos teóricos nunca oferecem alternativa real - é preciso principalmente não se enganar a respeito disso. Em seu exercício mais radical, abalam a realidade, são um desafio ao real. E devem permanecê-lo, sob pena de se voltar contra vocês sob forma de juízo de valor, sob forma de princípio, e em particular desse principio de realidade que eles têm por tarefa confundir com argumentos.
A metáfora deve permanecer metáfora, o conceito deve permanecer conceito. Tanto pior para os intelectuais.
Eis entretanto o que nos acontece ultimamente: á assunção de uma alternativa socialista, a materialização sob o signo do poder político de todo o sistema conceitual de valores (progresso, moral da história, racionalidade do político, imaginação criadora e, last but not least: a virtude transfigurada pela inteligência no poder) - em síntese, todo o ideal platônico que fundamentalmente é o da classe intelectual (mesmo quando se o denuncia).
68 não se enganara a respeito disso - 68 não colocara a imaginação no poder, ele se contentou com uma assunção jovial no imaginário, e de um alegre suicídio, o que, em história, é a forma mais cortês de sucesso. 68 exaltara a exigência poética do social, a inversão da realidade e do desejo, e não sua reconciliação virtuosa numa passagem ao ato socialista. 68 felizmente permaneceu uma metáfora violenta, sem jamais se tornar uma realidade. Hoje nós nos contentamos com a realidade, o imaginário desceu dos muros irreais de Nanterre nas gavetas do ministério. E isso circunscreve sub-repticiamente toda a situação intelectual.
Como funcionar no advento da promessa, na pretensão da idéia à realidade, na passagem da palavra ao direito à palavra, na legalização de todas as metáforas ilegais, na ilusão realista do social? Mesmo do ponto de vista político, há uma espécie de contra-senso fundamental. Pois essa vontade de reconciliar a marcha da sociedade com seu projeto voluntário e coerente, essa vontade de realizar a promessa sempre falaciosa do político (e que não é verdadeiramente eficaz senão quando é falaciosa - Mandeville), essa vontade é mortal, e mortalmente maçante. É o próprio contra-senso do socialismo.
Mas essa é outra história. De qualquer maneira, o poder hoje está deixado às pessoas (e isso não vale somente para os socialistas) que explicitamente renunciaram ao seu exercício, que não têm mais nada. de político e se declaram abertamente inaptas para a ambigüidade, para a imoralidade do discurso (o que é a própria energia de uma ambição mundana, a respeito disso Maquiavel e os jesuítas estão perfeitamente de acordo) e fiéis à transparência da idéia. O que resta então aos intelectuais, de que a transparência da idéia é a profissão de fé? Se o social se põe a funcionar de boa vontade, então o que resta para ser verdadeiramente político senão funcionar de má vontade?
Mas não antecipemos. Porque nossa impotência é grande. O novo poder se quer cultural e intelectual. Ele não quer ser mais um poder histórico cínico, quer ser a encarnação dos valores. Tendo traído sua essência política, quer que os intelectuais, por sua vez, traiam a sua, e passem para o lado da reconciliação do conceito, quer que eles percam a duplicidade do conceito assim como eles perderam a duplicidade do político, e se deixem levar para o lado do real, na direção de uma discreta beatificação de suas esperanças, na direção de uma reconciliação polida do real e do racional, ou do real e do imaginário. Tal é o contrato que nos é proposto por este poder que não é um poder - apogeu da democracia, poder hipócrita da virtude -- e nós fomos agarrados. Porque o intelectual infelizmente sempre é bastante virginal para ser cúmplice da repressão ao vício. Ele também não está à altura do exercício cínico, isto é, imoral e ambíguo do pensamento, assim como os políticos não estão à do poder.
Na realidade, nós não deveríamos ter tal medo, porque esse socialismo é só o simulacro de uma alternativa - não é exatamente um acontecimento, mas a materialização póstuma de uma ideologia revolucionária. É a forma tomada por um modelo e não por um mito, nem mesmo por uma história - sem ilusão sobre sua própria força criadora, mas simplesmente se propondo como confiável, sem ilusão sobre a paixão política que o subentende, mas propondo-se como pathos, como artefato moral e histórico -, contra esse simulacro piedoso do socialismo, enfim fracassado, após tantas derrotas, sobre a tumba do poder, contra esse fantasma de moral nós não podemos nada, assim como não poderíamos grande coisa, à falta de substância, contra o fantasma giscardiano do poder, assim como o pensamento da revolução seria poderoso contra o capital, mas aniquilado diante do fantasma do capital.
A ordem simulada nos rouba toda força de negação, o socialismo simulado nos rouba toda força de participação. - Porque os valores que eles simulam (progresso, lucro e produção - luzes, história e racionalidade) nós os analisamos e reduzimos em sua pretensão à realidade, mas não os abolimos como simulacros, como espectros de segunda mão: estes não podem ser dissecados, sendo transparentes e insubstanciais. E é esse espectro socialista de segunda mão que hoje ronda a Europa. Nós vagueamos entre os fantasmas do capital, de hoje em diante vaguearemos no modelo póstumo do socialismo. A hiper-realidade de tudo isso não mudará nem um pouco, num certo sentido é nossa paisagem familiar há muito tempo. Estamos doentes de leucemia política, e essa indiferença crescente (estamos atravessados pelo poder sem por ele sermos atingidos, analisamos, atravessamos o poder sem alcançá-lo) é absolutamente semelhante ao tipo de patologia mais moderna: a saber, não a agressão biológica objetiva, mas a incapacidade crescente do organismo de fabricar anticorpos (ou mesmo, como na esclerose em placas, a possibilidade de os anticorpos se voltarem contra o próprio organismo).
Assim, o socialismo no poder só é uma fase posterior no desencantamento pretensioso dessa sociedade. Mas algo aqui nos pega um pouco mais desprevenidos. Porque é a primeira vez que o pathos cultural coletivo, que é o que resta, disperso nos escombros dessa sociedade varrida pela saudável catástrofe ideológica de 68, de utopia política e moral é assim elevado à cena para ser operacionalizado como fantasma. Nesses últimos vinte anos, conhecemos principalmente a promoção da economia como gigantesca prótese referencial, suporte-superfície de toda veleidade coletiva, inatacável em sua pretensa objetividade. Por isso caíram não só os juízos de fato, mas os juízos de valor e a decisão política (certamente tudo se joga numa simulação de racionalidade econômica, que de qualquer maneira ninguém compreende, mas que importa? A ficção da jurisdição da economia pode se tornar todo-poderosa - ela se torna a verdadeira convenção coletiva). Desta vez se nos propõe uma outra convenção coletiva: é a moral e a cultural que se materializam como prótese de governo. Social-prótese, cultura-prótese (“Suas idéias nos interessam”, “Sua criatividade nos interessa” - o banqueiro da BNP era mais fraco: “Seu dinheiro me interessa”, e os povos do Terceiro Mundo mais brutais: “Seu lixo nos interessa”), reinvenção, após muita gestão objetiva que encurralou as pessoas à indiferença, de uma subjetividade social apoiada sobre seus mortos (o Panteão), bebendo nas ruínas do imaginário histórico o que sintetizar num fantoche de vontade coletiva.
E aí nós, intelectuais, fomos pegos. Porque enquanto se tratava de economia, de programação e do desencantamento de uma sociedade liberal, mantivemos nosso foro íntimo, ricos de uma reserva mental e política indefinida, vestais de uma pequena chama crítica e filosófica, promessa de uma eficácia silenciosa da teoria (aliás a teoria se portava muito bem, ela não reencontrará sem dúvida jamais a qualidade ofensiva e jubilatória ao mesmo tempo que a grandiosa sinecura de que desfrutou nesses últimos vinte anos).
As forças vivas estavam onde deviam estar na realidade, isto é, além, na outra França, além do poder, à sombra do amanhã. Que aberração, que perigo propulsionar essas forças vivas na direção dos negócios! Nada pior do que a absorção da força teórica numa instituição. Eu compreendo: a própria utopia dos conceitos segundo os quais analisávamos esta situação que não era a nossa, e a dissolvíamos em seus componentes imaginários, essa utopia mesma se volta contra nós sob a forma de julgamento de valor real, de jurisdição intelectualmente armada com nossas próprias armas, sob a forma desse fantasma da vontade coletiva, essa utopia foi a de nossa própria classe, que mantém, mesmo na simulação, o poder de nos anular. Guardiões da distorção sublime dos signos e do real, fomos pegos, paralisados pela encenação de sua reconciliação.
É como uma precipitação química que solidifica os cristais e põe fim à solução em suspensão por uma resolução cujo efeito é irreversível.
Nós não temos mais inimigo. Porque eles estão no poder, os melhores (subjetivamente) são também os piores (objetivamente). Pragmaticamente - pois toda pragmática é paradoxal, nós escaparemos a isso - nós também estaríamos numa espécie de dupla amarra, num dilema insolúvel (e não uma contradição histórica). Este: somos intimados a participar realmente, como se fosse real e de primeira mão, em um acontecimento irreal e de segunda mão. São raros os acontecimentos que chegam em sua hora, alguns são prematuros, outros chegam de repente, e são somente a reciclagem de um incidente malogrado da história. Simulatio post mortem. Há abortos após o prazo assim como há abortos antes do prazo. Este é um deles. O advento desse socialismo, não por entusiasmo, mas por descontentamento (apesar disso), não por ruptura histórica, mas por esgotamento da história (substituída pela evidência retroativa da França profunda), esse acontecimento à revelia de um modelo histórico que perdeu sua verdade no caminho é na ordem da natureza da reciclagem e da simulação, mas exige que nós nos comportemos como se fosse a versão original (não se trata mais absolutamente de dizer que os atores desses psicodrama socialista são falsários, ou simplórios - sua integridade, seu entusiasmo, de alguns ao menos, não está em questão. Infelizmente é mais grave do que isso: o que está em questão é a integridade, é a originalidade da própria ação histórica). Em compensação, estamos portanto intimados a simular, a fazer como se o irresistível progresso da história nos tivesse levado a isso e como se tudo isso se conciliasse, segundo uma estranha semelhança formal, com a esperança de mudar a vida (velho slogan rimbaudiano que se tornou socialista - alegrai-vos, hoje se vai mudar verdadeiramente a vida - é maravilhoso! Sempre a ruína da metáfora na realidade).
Esse dilema em que estamos não é tudo. Há algo mais a denunciar, mesmo se é bem difícil fazê-lo, e que toca à confusão profunda de todo projeto socialista, mesmo se suas intenções são puras - elas só são ingênuas. Volto a Mandeville e à sua Fábula das Abelhas, onde eles mostra (no século 18, dirão alguns, a Revolução mudou tudo isso - mas eu não acredito nisso) que não é a moralidade nem o sistema positivo de valores de uma sociedade que a fazem mudar e progredir, é sua imoralidade e seus vícios, é seu desregramento com relação a seus próprios valores. De alguma forma isso é o segredo do político: esta duplicidade estrutural no funcionamento das sociedades, que é bem diferente da duplicidade, psicológica, dos homens do poder. Duplicidade que, profundamente, faz do processo social um jogo em que a sociedade em boa parte frustra sua própria socialidade, e sobrevive graças a essa flexibilidade das aparências, graças a esse desinteresse e a essa estratégia imoral (coletiva sem, dúvida alguma, mas não-visível, não-concertada, e desconcertante por si mesma) com relação a seus próprios valores.
A isso se opõe absolutamente (e é por isso que digo que perderam o sentido do político) a convicção socialista - que é a de toda a sociologia também - de que toda a sociedade é virtualmente social, isto é, solidária a seus próprios valores e coerente em seu projeto coletivo. O problema é então reconciliar a sociedade com seu próprio projeto e “socializar” o que só pede para sê-lo. Aniquilar toda duplicidade, toda estratégia das aparências no nível dos valores - maximalização da relação social, densidade da responsabilidade coletiva (e certamente também do controle), visibilidade das estruturas e do funcionamento, apoteose da moral pública e da cultura. Tal é o sonho socialista, enlouquecido de transparência, inundado de ingenuidade. Porque nenhum grupo jamais funcionou assim - mas sobretudo: que grupo não sonhou com isso? Felizmente é verossímil que algum projeto social digno desse nome jamais existiu, que nenhum grupo na verdade jamais se concebeu idealmente como social, em suma, jamais houve “a sombra (salvo nas cabeças intelectuais)” nem o embrião de um sujeito coletivo com responsabilidade limitada, nem a possibilidade mesma de um objetivo dessa ordem. As sociedades que devotam suas energias para isso, que se lançam nesse sonho moral de socialização, estão perdidas de antemão. Este é o contra-senso fundamental. Felizmente elas sempre fracassarão, escaparão a si mesmas, o social não se estabelecerá.
NOTAS
1 Que se assemelha à amargura da extrema-esquerda, e a seu cinismo “inteligente” em relação à maioria silenciosa. Charlie-Hebdo, por exemplo: “A maioria silenciosa não liga para nada, desde que à noite ronrone em suas pantufas... A maioria silenciosa, não se engane, se fecha sua boca é porque ao final das contas ela faz a lei. Ela vive bem, come bem, trabalha somente o necessário. O que ela reivindica aos seus patrões é ser paternalizada e tranqüilizada no que é preciso, além da sua pequena dose inofensiva de imaginária cotidiano”.
2 A analogia com Freud cessa nesse ponto, porque seu ato radical resulta numa hipótese, a da repressão e do inconsciente, que ainda leva à possibilidade, depois amplamente explorada, de produção de sentido, de uma reintegração do desejo e do inconsciente na partitura do sentido. Sinfonia concertante, em que a irredutível alteração do sentido entra no cenário bem temperado do desejo, à sombra de uma repressão que abre para a possibilidade inversa de liberação. De onde o fato de a liberação do desejo ter podido assumir tão facilmente o lugar da revolução política, acabando por esconder a incapacidade de sentido, ao invés de aprofundá-la. Ora, não se trata de maneira alguma de encontrar uma nova interpretação das massas em termos da economia libidinal (remeter o conformismo ou o “fascismo” das massas a uma estrutura latente, a um obscuro desejo de poder e de repressão que eventualmente se alimentaria de uma repressão primária ou de uma pulsão de morte). Esta é hoje a única alternativa para a declinante análise marxista. Mas é a mesma, com uma deformação a mais. Outrora se atribula às massas um destino revolucionário contrariado pela servidão sexual (Reich), hoje se lhes atribui um desejo de alienação e servidão, ou ainda uma espécie de microfascismo cotidiano tão incompreensível quanto sua virtual pulsão de liberação. Ora, não há nem desejo de fascismo e de poder nem desejo de revolução. última esperança: que as massas tenham um inconsciente ou um desejo, o que permitiria reinvesti-las como suporte ou suposto de sentido. 0 desejo, reinventado em toda parte, não é senão o referencial do desespero político. E a estratégia do desejo, após ter sido envolvida no marketing empresarial, hoje se purificou na promoção revolucionária das massas.
3 A noção de “massa crítica”, habitualmente relativa ao processo de explosão nuclear, é aqui retomada no sentido de implosão nuclear. Isso a que assistimos no domínio do social e do político, com o fenômeno involucionário das massas e das maiorias silenciosas, é uma espécie de explosão inversa da força de inércia - esta também conhece seu ponto de não-retorno.
4 Não se trata também de produção do social, porque senão o socialismo bastaria, até mesmo o próprio capitalismo. De fato, tudo muda com a precedência da produção da demanda sobre a das mercadorias. A relação lógica Ida produção ao consumo) se desfaz, e estamos numa ordem inteiramente diferente, que não é mais nem de produção nem de consumo, mas de simulação de ambas graças à inversão do processo. De repente, não se trata mais de uma crise “real” do capital, como o supõe Attali, crise que depende de um pouco mais de social e de socialismo, mas de um dispositivo absolutamente diferente, hiper-real, que não tem mais nada a ver nem com o capital nem com o social.
5 A configuração é idêntica à dos buracos negros. Verdadeiros sepulcros estelares, seu campo de gravidade é tão monstruoso que a própria luz é agarrada, satelitizada e depois absorvida. São, portanto, regiões do espaço das quais não pode chegar nenhuma informação. Sua descoberta e exame implicam, então, uma espécie de revolução de toda a ciência ou do processo de conhecimento tradicional. Este sempre se fundamenta na informação, na mensagem, no sinal positivo Ido “sentido”) veiculado por um meio (ondas ou luz), aqui aparece outra coisa, cujo sentido ou mistério gira em torno de ausência de informação. Esta coisa não emite, não responde. Ao se considerar as massas, entra em jogo uma revolução da mesma natureza.
6 L'Effet et Beaubourg. Paris, Ed. Galilée, 1977.
7 A mesma coisa vale para a sedução. Se o sexo e a sexualidade, dado que a revolução sexual os muda em si mesmos, são verdadeiramente um modo de troca e de produção de relações sexuais, já a sedução é o inverso da troca, e próxima ao desafio. A sexualidade realmente só se tornou “relação sexual”, só pôde ser falada nesses termos já racionalizados de valor e de troca, ao se esquecer qualquer forma de sedução - assim como o social só se torna “relação social” quando perdeu toda a dimensão simbólica.
8 Mas o desafio ao social pode tomar a forma inversa da recrudescência do simulacro social, da demanda social, da demanda do social. Hiperconformismo exacerbado, compulsivo, exigência ainda mais formal do social como norma e como discurso.
9 Ver, em L'Echange Simbolique et le Mort, a tripla residualidade: do valor na ordem econômica, do fantasma na ordem psíquica, da significação da ordem lingüística. É preciso portanto acrescentar aí a residualidade do social na ordem... social.
10 Vejam-se os Guaiaqui ou os Tupi-Guarani: quando um tal resíduo aparece, é drenado pelos líderes messiânicos para o Atlântico, sob a forma de movimentos escatológicos que purgam o grupo dos resíduos “sociais”. Não só o poder político (Clastres) mas o próprio social é conjurado como instância desintegrada / desintegrante.
11 Este sistema de equivalências não está necessariamente ligado à economia política do capital. O equilíbrio entre um trabalho e sua remuneração, entre o mérito e o desfrute, pode ser, para além de qualquer moral burguesa, uma medida de si e uma forma de resistência. Se algo lhe vem sem equivalente, essa satisfação pode ser inexpiável. A loucura de Hölderlin lhe veio desta prodigalidade dos deuses, desta graça dos deuses que afoga e se torna mortal se não pode ser reparada e compensada por uma equivalência humana, a da terra, a do trabalho. Há aí uma espécie de lei que não tem nada a ver com a moral burguesa. Mais próximo de nós, citemos a confusão mortal das pessoas super-expostas à riqueza e à felicidade - como clientes de uma grande loja aos quais se oferece escolher o que desejam: é o pânico. Ou ainda esses vinhateiros a quem o Estado oferece mais dinheiro para arrancar suas vinhas do que ganhariam trabalhando nelas. São muito mais desestruturados por este prêmio inesperado do que pela tradicional exploração de força de trabalho.
12 Quarta hipótese: a implosão do social nas massas. Esta hipótese, sob outra forma (simulação/dissuasão/implosão), se assemelha à hipótese 3. Ela está desenvolvida em “A sombra das maiorias silenciosas”.
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