20 de agosto de 2010

Empobrecimento da População, Favelização e Controle Estatal (Nildo Viana)

O capitalismo contemporâneo se caracteriza por erigir um novo regime de acumulação. A partir da tendência declinante da taxa de lucro e das lutas sociais que dificultam o aumento da exploração, temos a instituição do regime de acumulação integral. A emergência do regime de acumulação integral, por sua vez, significa mudanças na forma estatal, com o neoliberalismo, nas relações internacionais, com o neo-imperialismo, e nas relações de trabalho, com o toyotismo e reestruturação produtiva. A acumulação integral marca a busca de aumento geral da exploração, aumentando extração de mais-valor absoluto e relativo, bem como a exploração nacional e internacional.

 O que isto tudo tem a ver com o processo de empobrecimento da população? E com o processo de favelização? E o controle estatal do espaço urbano? A acumulação integral visa aumentar a exploração em geral e isto tem reflexos nas demais instâncias da vida social. A reestruturação produtiva amplia o processo de precarização trabalho e contribui com o aumento do desemprego; as políticas neoliberais diminuem os gastos com políticas de assistência social e assim não realiza políticas estatais que minimizem as condições desfavoráveis de vida de grande parte da população. A busca de aumento geral da exploração significa também que isto acaba ocorrendo no bloco dos países imperialistas, no qual a precarização, desemprego, aumento da pobreza, também cresce assustadoramente. No capitalismo subordinado o fenômeno significa uma ampliação de uma situação que já era grave. Uma das conseqüências do capitalismo contemporâneo é o aumento da lumpemproletarização, ou, em linguagem mais popular, empobrecimento da população. A composição de classes da sociedade apresenta um aumento elevado do lumpemproletariado. Aqueles que vivem do desemprego, subemprego, e ficam à margem da sociedade, os lumpemproletários ou “empobrecidos” são uma parte cada vez maior da população e isto produz mudanças e gera novas questões sociais, entre os quais o do desemprego, o da moradia, o das formas de sobrevivência.

Neste contexto, o problema da moradia se torna ainda mais grave. O chamado “déficit habitacional” se torna cada vez maior em todo o mundo e o interesse do capital imobiliário aliado com o empobrecimento da população, agrava a situação e cria o fenômeno extensivo de favelização, o que está expresso nas obras de Mike Davis. Os números mostram o processo de intensificação da favelização em todo o mundo, dando margem para se pensar em um “planeta favela”. Um exemplo pode deixar isto claro. A cidade de Lima, capital do Peru, tinha, em 1957, 9,5% de sua população composta por favelados. Em 1981, o número de favelados aumentou para 31,9% e em 2004 para 59%, ou seja, se tornando a maioria da população desta cidade. A cidade está cercada por favelas.

A cidade de Lima está sitiada pelas favelas. A resposta do neoliberalismo é a repressão e as políticas paliativas e o microreformismo. Porém, agora, partindo da doutrina de segurança militar norte-americana e das experiências no Iraque, e neste contexto de favelização crescente, acrescenta-se a política de contra-insurgência produzida na atual fase do neoliberalismo. A política de contra-insurgência busca ser uma política de “espectro total”, combinando repressão, cooptação, autocontrole, revitalização, coleta de informação, que são elementos complementares. A repressão é usada esporadicamente, sendo preventiva ou reativa. A coleta de informações é realizada para “conhecer o inimigo”, ou seja, saber da oposição que irá encontrar, dos setores populares passíveis de cooptação, das formas de ação a partir da cultura local. A cooptação se revela na busca de apoio popular através das chamadas “lideranças” locais, nativas ou implantadas. A política de autocontrole busca que a própria população local se fiscalize e organize, seja através da formação de lideranças locais – onde elas não existam – e formas de organização que possam amenizar os conflitos sociais. A política de revitalização significa reativar e reforçar processos de produção e financeiros, ou os serviços sociais essenciais. No caso do Iraque, era um amplo processo de política industrial, financeira, etc. No caso das favelas, é um processo de criar estratégias de sobrevivência (cooperativas, microempresas), educação popular, profissionalização, etc.

Isto tudo é realizado (com exceção da repressão) principalmente através da mediação de organizações burocráticas da sociedade civil, que penetram no mundo das favelas, tal como as ONGs, igrejas, ou por militantes políticos, intelectuais, entre outros, que exercem o papel de realizar um feedback em relação aos empobrecidos e permitir novas estratégias de ação repressiva, políticas assistencialistas desmobilizadoras, autocontrole, revitalização. Esses grupos realizam uma mediação burocrática entre Estado e população empobrecida, e proporcionam informações que serão usadas para as ações estatais em relação a ela. A chamada antropologia urbana cumpre um papel fundamental neste processo de coleta de informações com seus estudos culturais e possibilidade de compreensão das formas organizacionais dos favelados. É isto que explica a expansão dos estudos da chamada antropologia urbana na América Latina no novo século.

Os antropólogos urbanos como José Matos Mar, assessor de governos e organismos internacionais, por exemplo, oferecem um excelente processo de informação para o Estado capitalista no sentido de entender a organização espacial de uma favela. Ao lado de vários outros, inclusive alguns com posições mais à esquerda, contribuem com a compreensão estatal do que antes lhe era incompreensível, já que a organização do espaço urbano nas favelas revela outra lógica, diferente da lógica do poder estatal. Estes estudos revelam a forma organizativa das favelas, com sua auto-organização e processo interno de segurança, e possibilitando as propostas estatais de reordenamento espacial, tal como efetivamente vem ocorrendo.

O que ocorre, na verdade, é uma nova fase da lutas urbanas no qual se coloca, em algumas cidades, frente a frente o Estado capitalista e os empobrecidos. A favela é o resultado desta luta de classes, sendo que expressa a iniciativa dos empobrecidos, do lumpemproletariado. Porém, o Estado capitalista visa reconquistar e reordenar o espaço urbano e evitar o perigo dos empobrecidos para os setores privilegiados da sociedade burguesa. A mediação burocrática de instituições como ONGs, igrejas, bem como de intelectuais e militantes, são elementos que contribuem para amenizar os conflitos, ampliar a capacidade de controle estatal e, no fim, fortalecem o projeto de reordenamento espacial da região da cidade que não foi organizada ou coordenada pelo aparato estatal. Em outras épocas, o lumpemproletariado foi cooptado pelo Estado, por partidos conservadores, etc. Porém, no atual estágio do capitalismo, a composição social

produz uma nova situação, sendo que a política de cooptação se torna uma política extremamente limitada, já que a quantidade de empobrecidos é tão elevada que este processo só atingiria pequenos grupos que não poderiam conter a luta da totalidade dos empobrecidos. A disputa entre o controle estatal e o controle popular das favelas é apenas uma parte da luta de classes que ocorre e se intensifica em todo o mundo. Quanto mais o capitalismo se desenvolve, mais difícil fica sua sobrevivência, por mais difícil que seja perceber isto.



Artigo publicado originalmente em: Espaço Plural – Caderno de Textos. IESA/UFG, 2008.

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