11 de março de 2011

Estado, Democracia e Cidadania (Nildo Viana)

ESTADO,DEMOCRACIA E CIDADANIA
A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo

Nildo Viana

VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.

Ser governado é estar vigiado, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, controlado, doutrinado, estimado, apreciado, censurado, comandado por criaturas que não tem nem o direito ou virtude para tal... Ser governado significa que a cada movimento, operação ou transação, a pessoa seja observada, registrada, fichada num censo, taxada, selada, remarcada em termos de preços, anistiada, patenteada, licenciada, autorizada, recomendada, admoestada, proibida, reformada, retificada, corrigida. Governo significa estar sujeito a tributos, ser treinado, resgatado, explorado, monopolizado, exortado, pressionado, mistificado, roubado, em nome do bem público e geral. E quando há o primeiro sinal de resistência ou questionamento, a pessoa é reprimida, multada, deportada, sacrificada, vendida, traída, e para encerrar isso é também ridicularizada, achincalhada, injuriada e desonrada. É isso que é o governo, esta é a sua justiça e sua moralidade!

Pierre-Joseph Proudhon

Dirigidos por nossos pastores, encontramo-nos apenas uma vez em companhia da liberdade: no dia do seu enterro.

Karl Marx
Apresentação

O presente trabalho tem um objetivo fundamental: contribuir para a compreensão da dinâmica da política institucional no capitalismo. Isto pressupõe compreender a formação do estado capitalista, sua essência, bem como da democracia e da cidadania.

Compreender a essência, gênese e dinâmica do estado capitalista, da democracia burguesa e da cidadania pressupõe compreender as lutas de classes e o desenvolvimento capitalista. Desta forma, iremos analisar a formação do capitalismo e das lutas de classes que estão na sua base para compreender o significado destas instituições e assim ver o seu desenvolvimento histórico. Claro que isto pressupõe uma opção metodológica. Em primeiro lugar, a opção básica está em partir de uma concepção histórica, totalizadora, concreta, o que nos faz inserir a análise num universo conceitual marcado pelas categorias de totalidade, abstrato, concreto, historicidade, e conceitos como os de modo de produção, luta de classes, capitalismo, etc. Em segundo lugar, aqui se parte da perspectiva do proletariado, isto é, da classe explorada e revolucionária de nossa época, o que significa que não há nenhuma concessão à pusilanimidade do positivismo e sua “neutralidade de valores”. Em terceiro lugar, também rompemos com as teses reformistas e conciliadoras, que são produtoras de ilusões e eufemismos que apenas revelam suas limitações e compromissos de classe. Aqui o caminho escolhido é o da liberdade, enquanto objetivo e valor, enquanto práxis intelectual revolucionária.

O presente trabalho está desenvolvido em quatro capítulos. O primeiro capítulo trata do estado capitalista, buscando revelar sua essência e gênese. Não se trata de pensar o estado como instrumento neutro, produto de “relações de forças”, ou outras teses conciliadoras produzidas nas últimas décadas por intelectuais inspirados em Gramsci, Poulantzas ou qualquer outro. O estado é uma instituição de dominação de classe e é somente assim que pode ser entendido. Veremos como isto ocorre desde sua gênese e permeia todo o seu desenvolvimento. A relação do estado capitalista com o modo de produção capitalista e com as classes sociais é o ponto de partida para uma visão de sua gênese e essência.

O segundo capítulo aborda a democracia burguesa, o que ela é e como se transformou historicamente, observando que ela é produto da luta de classes, marcada pela supremacia da burguesia, sempre buscando reproduzir sua dominação. Assim, existe uma refutação da ideologia da democracia como “valor universal” ou “valor estratégico”, pois ela não passa de um valor burguês e somente enquanto for conveniente para a burguesia. Ao lado disso, as mudanças históricas da democracia, desde sua forma “censitária” até chegar a sua atual forma, a partidária burocrática, mostra como ela sempre foi uma forma de dominação de classe.

O terceiro capítulo trata da cidadania, a vaca sagrada dos reformistas, revelando seu verdadeiro caráter, a da busca de integração do proletariado e oprimidos em geral na sociedade burguesa, e sua história derivada das lutas sociais e seu recuo histórico no capitalismo contemporâneo. A cidadania civil, política e social são produtos históricos das lutas de classes e não uma evolução unilinear tal como apresentada pelo seu grande ideólogo, T. H. Marshall.

O último capítulo aborda a dinâmica das mudanças no estado, democracia e cidadania a partir da análise do desenvolvimento do capitalismo. O desenvolvimento do capitalismo é o desenvolvimento das lutas de classes e este provoca mudanças na esfera do estado, da democracia e da cidadania, o que permite perceber que tais mudanças não são um processo evolutivo rumo ao progresso, tal como prega uma certa concepção evolucionista, e sim um processo contraditório, realizando avanços e recuos, dependendo das lutas de classes, mas sempre cumprindo um papel conservador, com maior ou menor eficácia.

O desenvolvimento capitalista é entendido aqui como resultado das lutas de classes na produção (luta em torno do mais-valor) e luta de classes na sociedade civil (esfera cultural, institucional, das formas privadas de regularização das relações sociais) que realizam mudanças no regime de acumulação, assumindo formas que o domínio do capital encontra para combater a tendência declinante da taxa de lucro, tal como abordada por Marx em O Capital, a análise mais aprofundada da essência do capitalismo. Marx havia analisado as tendências do desenvolvimento capitalista, mas devido a época que escreveu não poderia ter previsto de forma mais concreta como o capitalismo iria tentar impedir sua auto-dissolução. A cada época de crise o modo de produção capitalista busca alterar o regime de acumulação no sentido de permitir a reprodução ampliada do capital, o que só se tornou visível com o desenvolvimento histórico do capitalismo. É este desenvolvimento que permite abrir uma “clareira” (para utilizar expressão de Heidegger) para compreender sua dinâmica, o que vem se desenvolvendo apenas recentemente e de forma bastante ambígua.

Cabe aqui também esclarecer algumas opções formais no presente trabalho. A expressão estado, entre outras, é escrita com letras minúsculas, pois elas não escapam dos valores e a letra maiúscula é apenas sinal do fetichismo do estado, herança moderna da antiga idolatria de tempos remotos, no qual os seres humanos erigem seus produtos em coisas vivas, passando a adorá-las e deixando de reconhecê-las como seus próprios produtos. O estado é um produto social e histórico, cuja razão de ser é reproduzir a dominação de classe, a exploração e a opressão. Assim, um uso não muito convencional da linguagem é aqui utilizado, visando romper com os fetichismos, eufemismos, cristalizações, tecnicismos, formalismos, que andam de mãos dadas com a dominação, a exploração, a opressão.

Estado Capitalista: Aparelho Privado do Capital

O estado é a principal forma de regularização das relações sociais nas sociedades de classes. Para a compreensão de uma sociedade concreta é necessário analisar tal instituição. Podemos ver a importância do estado desde que o analisemos concretamente e é isto que faremos aqui. Mas, antes de tratarmos do estado propriamente dito, teremos que definir alguns conceitos essenciais para sua compreensão. Por isso, será preciso iniciar definindo os conceitos de poder e política.

O conceito de poder já foi definido por diversas formas. Já se disse que “poder é relação”1, mas isto não quer dizer nada, pois tudo é relação e logo o poder seria tudo e se algo é tudo, ele não é identificável, não pode ser caracterizado ou definido. Ser tudo é ao mesmo tempo ser nada. O poder seria inexistente, estaria em tudo e se confundiria com ele, não se expressando nunca ou, se preferirem, se expressando sempre. O poder é um deus oculto que nos domina e nem podemos compreender porque ele existe, qual sua origem, o que ele realmente é. Essa concepção metafísica de poder expressa por Foucault é, como observou Baudrillard, um discurso do poder2.

Mas também pode-se definir este conceito de outra forma. Poulantzas diz que “o conceito de poder tem como lugar de constituição o campo das práticas de classe” (Poulantzas, 1977). A partir desta definição chega-se à conclusão de que o poder não atua nas relações “interpessoais” e que ele é inexistente nas sociedades simples. Portanto, nas relações familiares (entre marido e mulher, pais e filhos, etc.) e nas sociedades indígenas não existem relações de poder. Esta concepção reducionista de poder não consegue dar conta da realidade que lhe envolve.

O poder só pode ser compreendido como relação de dominação, o que implica a existência de dominantes e dominados. Entretanto, essa relação entre dominantes e dominados não pode ser compreendida como uma relação entre “iguais” como dá a entender Foucault. Existe uma mediação nessa relação. Entre o dominante e o dominado existe a detenção do poder pelo primeiro. Se entre o dominante e o dominado não houvesse aquele que detém o poder (que é garantido por inúmeros meios que variam em cada situação e que vai da força física até a posse de riquezas) não haveria dominação e sim cumplicidade. Entre um assaltante e um assaltado não existe cumplicidade porque o assaltante detém o poder por meio de sua arma. Mas a dominação não é garantida apenas por meio da força mas também por meios culturais. O discurso técnico pode garantir a um tecnocrata o domínio sobre uma coletividade ou o discurso mágico-religioso pode garantir a um sacerdote o domínio sobre uma comunidade. Mas não existiria aqui uma cumplicidade entre os dominados que aceitariam sua submissão aos dominantes sem nenhuma coerção? Entretanto, existe aí uma coerção cultural: o tecnocrata ou o sacerdote por terem o monopólio do “conhecimento” (científico ou religioso) dizem o que a comunidade deve fazer, que ela deve se submeter à dominação. Só não haveria dominação se fosse uma relação entre iguais, em condições iguais, o que não é o caso.

O poder, ou seja, a relação de dominação, se manifesta de diversas formas: cultural, política, financeira, etc. Portanto, é necessário definir o conceito de política. A política é o conjunto de relações sociais que manifestam as lutas de classes. Qualquer conflito social ou relação que é derivada da situação e antagonismo de classe é um conflito político ou relação política3.

Agora que já definimos os conceitos de poder e política podemos definir o conceito essencial do nosso estudo: o conceito de poder político. O poder político é uma relação social de dominação de classe com a mediação da burocracia (organização e classe social). Por isso, o poder político surge com o aparecimento da sociedade de classes. O estado (poder político) não é um fim em si mesmo (embora procure ser) mas sim um meio para atingir determinado fim: manter e reproduzir as relações de produção dominantes.

O poder está presente nas relações de produção, pois nelas se manifestam relações de dominação e resistência entre as classes sociais, ou seja, a luta de classes. O estado, portanto, é uma relação de dominação de classe mediada pela burocracia com o objetivo de manter e reproduzir as relações de produção às quais ele está submetido.

O estado surge com o aparecimento da sociedade de classes. Ao contrário do que coloca P. Clastres, não existe poder político em sociedades sem classes. Pierre Clastres, o antropólogo contra o estado, sustenta que o poder político está presente nas sociedades simples e a qualificação de “sociedades sem poder” é, segundo ele, etnocêntrica. Para ele, o poder político é universal. As sociedades simples possuem poder político não-coercitivo e as sociedades complexas possuem poder político coercitivo. Afirmar a não-existência do poder nas sociedades simples é revelar “o obstáculo permanentemente presente à pesquisa antropológica, o etnocentrismo que mediatiza todo olhar sobre as diferenças para identificá-las e finalmente aboli-las” (Clastres, 1988, p. 13-14). Dizer que as sociedades simples são “sem estado” é demonstrar seu caráter incompleto, ao contrário das sociedades ocidentais que seriam “completas”.

Ao criticar M. Lampierre que afirma o caráter “embrionário” do estado nestas sociedades, Clastres diz: “o biologismo da expressão não é evidentemente senão a máscara furtiva da velha convicção ocidental, muitas vezes partilhada realmente pela etnologia, ou pelo menos de muitos de seus praticantes, de que a história tem um sentido único, de que as sociedades sem poder são a imagem do que é necessário ser” (Clastres, 1988, p. 15). Clastres coloca sua tese: “a história dos povos que têm uma história é, diz-se, a história da luta de classes. A história dos povos sem história é, dir-se-á, com ao menos tanta verdade, a história da sua luta contra o estado” (p. 152).

Deixando de lado a contradição da afirmação (os povos sem história têm história?), o que se vê é que as sociedades “primitivas” possuem um objetivo conservador e metafísico que é lutar contra o estado, contra o inexistente. Como isso é possível? O que Clastres afirma é que existe, nas sociedades simples, um potencial para desenvolver o estado e que estas sociedades vivem em função de impedir a realização desse potencial. O que faz Clastres é mediatizar seu olhar com o etnocentrismo para identificar as diferenças e depois aboli-las (todas as sociedades têm poder político...) mas como na realidade existem as diferenças então se troca as palavras: as “sociedades sem poder político” pelas “sociedades sem poder político coercitivo”. Além disso, ao colocar a existência de um potencial para o surgimento do estado nas sociedades “primitivas”, ele repete o que disse Lampierre, só que trocando a palavra embrionário por uma não-palavra mas que deixa implícito um potencial para esse surgimento.

Portanto, a abordagem de Clastres é tão etnocêntrica e evolucionista quanto a daqueles que ele crítica e o que ele disse sobre Lampierre é aplicável a ele: “se a linguagem mudou, o discurso permaneceu o mesmo”. Este é o dilema da antropologia relativista: ao fazer o seu discurso sobre o “outro” (as sociedades simples) esquece-se que esse discurso é o “nosso”. A solução desse dilema, do ponto de vista relativista, é assumir que o discurso do “outro” só pode ser realizado por ele mesmo pois qualquer discurso “sobre” o “outro” será etnocêntrico (basta ler as obras da antropologia relativista, seja funcionalista, estruturalista, culturalista ou qualquer outra abordagem, para ver o etnocentrismo disfarçado de anti-etnocentrismo). Isto, entretanto, seria o mesmo que defender a incomunicabilidade entre as sociedades simples e as sociedades complexas, o que é igual à defesa da impossibilidade da antropologia. A comunicabilidade entre as sociedades simples e complexas só é possível, por mais que isso irrite os antropólogos, através do materialismo histórico-dialético, pois ele não analisa a cultura por ela mesma mas sim no quadro da produção e reprodução da vida material e do conjunto das relações sociais. Com o desenvolvimento das forças produtivas, combinado com a alteração nas relações de produção, expande-se a divisão social do trabalho e cria-se as classes sociais que se dividem fundamentalmente entre produtores não-proprietários e proprietários não-produtores. Essa divisão da sociedade em classes sociais cria o antagonismo e a luta de classes e a necessidade da classe dominante manter o seu domínio sobre a classe dominada. A luta de classes nascente força a classe dominante assegurar a manutenção e reprodução das relações de produção através do estado.

A formação do estado não pode ser enquadrada em uma forma única. A forma acima descrita é válida apenas para os estados primários, que são aqueles que surgiram como resultado do desenvolvimento interno de uma sociedade. Existem também os estados secundários que são aqueles que surgiram por influência exterior (por conquista, por exemplo). O antropólogo Lawrence Krader cita Ankole como exemplo de estado formado como resultado de uma conquista e o Egito como uma formação estatal por desenvolvimento interno (Krader, 1976; Copans, 1988).

Todo estado é, portanto, um estado de classe. O estado assume as mais variadas formas na história expressando sua inseparabilidade dos modos de produção. Na Europa Ocidental, as formas sucessivas do estado foram o estado escravista, o estado feudal e o estado capitalista. Em outras partes do mundo houveram outras formas de estado tal como o estado tributário nas sociedades do Antigo Oriente Próximo4.

Os primeiros estados capitalistas surgiram da evolução da sociedade feudal para a sociedade capitalista. O estado feudal só pode ser compreendido como prosseguimento do modo de produção feudal. A forma de extração de mais-trabalho no feudalismo é realizada através do “sistema de deveres” que faz com que o servo trabalhe nas terras do senhor feudal, além do trabalho que ele executa para sua subsistência nas terras que o “proprietário” lhe cede em troca do seu trabalho. Estas relações que se dão na propriedade feudal (ou nos “feudos”) se revelam como produção de valores de uso (produção não-mercantil) e quase auto-suficientes. Por isso o feudalismo apresenta como uma de suas características a descentralização política.

Mas esta descentralização não era total e o poder central estava dividido em poder civil e poder eclesiástico. O primeiro detinha uma força apenas parcial e, por isso, estava em constante conflito com a igreja; o segundo era o verdadeiro cume da hierarquia medieval: “nesse mundo rigorosamente hierárquico, o lugar mais importante e o primeiro pertence à igreja. Esta possui, ao mesmo tempo, ascendência econômica e moral. Seus inumeráveis domínios são tão superiores aos da nobreza, por sua extensão, como, ela mesma, é superior à nobreza por sua instrução. Além disso, só ela pode dispor graças às oferendas dos fiéis e às esmolas dos peregrinos de uma fortuna monetária que lhe permite, em tempo de penúria, emprestar aos leigos necessitados” (Pirenne, 1968, p. 18).

O poder civil precisava ser “sancionado” pela autoridade eclesiástica (divina). A igreja executa o papel ideológico de justificar a existência e conservação da sociedade feudal através do seu monopólio do contato com deus. Assim, ela influencia todas as relações sociais, inclusive as cotidianas. Ela também procurava controlar os guerreiros criando a “trégua de Deus” (proibição de lutas em determinados períodos da semana e do ano) e a guerra santa (contra os “infiéis”, ou seja, os pagãos).

A igreja sustentava a coesão da sociedade feudal mantendo e reproduzindo suas relações de produção. É claro que existiam inúmeras divergências no bloco dominante opondo o poder civil e o poder eclesiástico, algo que foi constante durante a Idade Média. Mas esta divisão de poderes terminava com o predomínio da igreja. A descentralização parcial do poder político cria a impressão da não existência de um estado. Se no território já se garantia a extração de mais-trabalho (através da servidão) e se mantinha o domínio cultural através do costume e da influência da igreja, isto não quer dizer que não havia relação entre territórios, revoltas camponesas, “banditismo”, invasões estrangeiras, etc. Os guerreiros realizavam uma intervenção para manter a “ordem” mas também criavam as “guerras privadas” entre senhores feudais e era a igreja (“trégua de Deus”) que procurava manter a unidade da classe dominante.

A principal dificuldade em analisar o estado feudal (poder civil, força militar, poder eclesiástico, força ideológica) está no fato da sua descentralização e na sua falta de autonomia. A descentralização se deve às relações de produção feudais (circunscritas ao feudo e com certa auto- suficiência) que criam domínios territoriais e geram uma auto-suficiência política parcial. Mas, como colocamos acima, a igreja, que tinha como personalidade máxima o papa, executava um papel de coesão que possibilitava a reprodução global do feudalismo.

A falta de autonomia do estado é devido a inexistência de um corpo burocrático dirigente especializado e centralizado (como no estado capitalista). A razão disto é que a classe proprietária (senhores feudais) é, ao mesmo tempo, a classe dirigente (nobreza, clero). Entretanto, as funções de dominação política (tanto em nível local como inter-local) eram executadas e nesse caso o clero e a nobreza, além de proprietários de terras, manifestavam suas funções burocráticas (repressivas ou ideológicas) com o objetivo de reproduzir as relações de produção. O modo de produção feudal com o seu baixo grau de divisão social do trabalho criava a necessidade de ação política permanente nos feudos e uma ação política menos sistemática nas relações inter-locais. Mas a partir do século XII surge uma tendência à centralização e com o desenvolvimento do comércio e o crescimento dos “burgos” (cidades) abre-se caminho para a formação, com o declínio do feudalismo, do estado absolutista.

Mas antes de entrarmos na análise do estado absolutista vejamos a forma assumida pelo estado feudal na época de declínio do feudalismo. O ständestaat (expressão utilizada por G. Poggi, o “estado de cortes”, doravante denominado estado cortesão) se caracterizava por surgir em uma época em que as lutas de classes de radicalizavam e renasciam as cidades e o comércio. Isto criava um equilíbrio entre as forças políticas e, ao mesmo tempo, uma maior necessidade de aprofundamento da centralização e de autonomia para o estado. A importância crescente das cidades tornava necessária sua maior participação nas decisões políticas e com isto elas tendiam a apoiar o poder central em detrimento do senhores feudais: “mas a complexidade dos interesses políticos das cidades não podia encontrar sua expressão unicamente em suas manobras entre as forças dominantes no meio político existente. Novas estruturas tinham de ser geradas que dessem às cidades, além de sua autonomia política, o direito de participação efetiva e permanente na condução do sistema geral de governo. As stände (cortes) – as características assembléias dos finais do período medieval, também chamadas parlamentos, dietas, estados-gerais, etc., associados ao soberano no governo do território (ou a partes do mesmo) – eram as mais significativas de tais estruturas. Elas não envolviam somente as cidades, é claro: com efeito, o clero e o elemento feudal tinha precedência formal em tais instituições sobre os representantes das cidades. Mas, progressivamente, o próprio elemento feudal adquiriu também uma identidade corporativa através e para fins da participação nessas estruturas; e na medida em que isso ocorreu, as próprias relações dos feudatários com os governantes começaram a diferir da típica relação feudal de vassalo e senhor, ou de senhor e suserano” (Poggi, 1981, p. 55).

A centralização política reforça a monarquia e esta procura conciliar seus interesses próprios com os das cortes da sociedade. Mas se a causa disto tudo foi o crescimento das cidades então resta a pergunta: o que fez as cidades crescerem? O modo de produção feudal era altamente predatório e a destruição do solo fazia decrescer o mais-produto apropriado pelos senhores feudais e também os meios de subsistência dos próprios servos. A solução desse problema, era conseguida, por um lado, através da ampliação das terras cultiváveis, o que significava aumento constante de novas áreas geralmente em detrimento da pecuária, o que leva a diminuição da produção de carne, leite, etc.; por outro lado, os senhores feudais exerciam pressão sobre os servos para aumentar o mais-produto e isso criava um maior grau de exploração (principalmente quando aumentava as terras cultiváveis). O desgaste físico dos servos e o aumento populacional (tanto da classe feudal quanto da classe servil) provocavam revoltas e rebeliões crescentes de servos. Esse acirramento das lutas de classes levou a impossibilidade da manutenção da dominação política reduzida ao território e criava a necessidade de uma maior centralização do estado.

Mas a luta de classes não se limitou a revoltas, pressões, e rebeliões (o que muitos chamariam “luta política”) pois ela se reproduziu também ao nível da produção. Isto se expressou tanto na luta por uma maior utilização dos bosques quanto na fuga para as cidades. Nessa época, onde predominava a produção de valores de uso, o comércio se reduzia, na Europa ocidental, a negócios em “pequenos mercados semanais, onde os camponeses dos arredores oferecem a venda alguns ovos, frangos, algumas libras de lã ou pequena quantidade de pano grosseiro tecido em casa” (Pirenne, 1968, p. 16). Mas este pequeno comércio era controlado pelos senhores feudais como demonstra Carlos Magno ao proibir servos de seu domínio de vagarem pelos mercados5. Mas a luta de classes não parava aí: “um outro obstáculo a sua intensificação (dos mercados locais semanais – NV) era a péssima condição das estradas estreitas, mal feitas, enlameadas e geralmente inadequadas para as viagens. E ainda mais, eram freqüentadas por duas espécies de salteadores – bandidos comuns e senhores feudais que fazia parar os mercadores e exigem que pagassem direitos para trafegar em suas estradas abomináveis” (Huberman, 1980, p. 26).

Portanto, os servos buscavam na sua luta com os senhores feudais conquistar vantagens econômicas e podemos supor que esses pequenos mercados serviam de primeira experiência para os jovens mercadores surgidos da classe servil e que procuravam mudar suas condições de vida através do comércio; principalmente a partir da pressão dos senhores feudais para conseguirem uma maior extração de mais-trabalho.

A narrativa do caso de Godric de Finchale no século XI, demonstra o que se tornaria comum no século seguinte: “quando o rapaz, depois de ter passado os anos da infância sossegadamente em casa, chegou a idade varonil, principiou a seguir meios de vida mais prudentes e a aprender com cuidado e persistência o que ensinava a experiência do mundo. Para isso decidiu não seguir a vida de lavrador, mas antes estudar, aprender e exercer os rudimentos de concepção mais sutis. Por esta razão, aspirando a profissão de mercador, começou a seguir o modo de vida do vendedor ambulante, aprendendo primeiro como ganhar em pequenos negócios e coisas de preço insignificante; e então, sendo ainda um jovem, o seu espírito ousou pouco a pouco comprar, vender e ganhar com coisas de maior preço”; “(...) primeiro viveu como mercador ambulante por quatro anos em Lincolnshire, andando a pé, e carregando fardos muito pequenos; depois viajou para longe primeiramente até Saint Andrews na Escócia e depois pela primeira vez até Roma. No retorno, tendo feito uma amizade familiar com certos outros jovens que ambicionavam mercadejar, começou a lançar-se em viagens mais atrevidas e a ir por mar, junto a costa, até as terras estrangeiras que ficavam a volta. Assim, navegando muitas vezes entre a Escócia e a Bretanha, negociou em mercadorias variadas e no meio destas ocupações aprendeu muito da sabedoria do mundo.(...) porque não trabalhava não apenas como mercador, mas também como marinheiro (...) para a Dinamarca, Flandres e a Escócia; na terras onde encontrava certas mercadorias raras e por isso mais preciosas, transportava-as para outras partes onde sabia que eram menos familiares e cobiçadas pelos habitantes a preço de ouro. Fez desta maneira muitos lucros com todas as suas vendas e reuniu avultados bens com o suor do seu rosto, visto que vendia caro num lugar as mercadorias que tinha comprado noutro por um preço inferior” (Apud. Pinsky, 1986, p. 137-138).

As vilas rurais existentes se reduziam aos mosteiros e fortificações militares dos senhores feudais. Os mosteiros e igrejas possuíam direito de refúgio e para lá seguiam os fugitivos que criavam um mercado local ao seu redor. Quando os estabelecimentos feudais de guarnição necessitavam de artesãos e mercadores para satisfazer as suas necessidades apelavam para as vilas. Com o acirramento das lutas de classes provocado pela crise agrária e, conseqüentemente, o crescimento do número de fugitivos e mercadores, estas “vilas rurais” logo se transformaram em cidades (Dobb, 1987; Pernoud, 1986).

O renascimento das cidades, por sua vez, levou a expansão da produção urbana, que se baseia, inicialmente, na produção artesanal e a necessidade de crescimento da produção rural (fundamentalmente agrícola) para satisfazer a demanda urbana. Essa divisão do trabalho entre cidade e campo criava novas contradições de classe tanto no campo (os senhores feudais buscando aumentar a exploração dos servos para consumir os produtos “urbanos” e os servos querendo aumentar sua produção excedente para trocá-los no mercado local) quanto na cidade (onde surge a associação dos mercadores e artesãos com vista a defender seus interesses contra os senhores feudais e pressionar o estado feudal)

O crescimento das cidades, da produção artesanal, das trocas no mercado local, do número de mercadores (que viajam a locais cada vez mais longínquos) levaram à expansão comercial e à autonomização do capital comercial. Por um lado, isto levou ao equilíbrio de forças políticas causado pelo renascimento das cidades, que foi a determinação fundamental da centralização do estado cortesão. Por outro lado, a autonomização do capital comercial e sua expansão passaram a exigir uma maior e mais variada produção (o que muitos se esquecem, ao falar que circulação de mercadorias não é a mesma coisa que produção de mercadorias e que por isso não se pode falar em “capitalismo comercial”, é que não se pode “circular” o que não é “produzido” e que a não existência de um capitalismo comercial ou mercantil no século XII a XV é devido à produção das mercadorias que circulam nessa época não ser predominantemente uma produção capitalista) e, ao mesmo tempo, dissolvia as relações de produção feudais. Isto leva a duas conseqüências: primeiro, aumenta a produção artesanal e cria a produção manufatureira propriamente dita; segundo, cria novas contradições no modo de produção feudal e subordina parte de sua produção à lógica da acumulação primitiva de capital.

Nesse período de transição do feudalismo para o capitalismo se vê o enfraquecimento progressivo do modo de produção feudal e o fortalecimento também progressivo do modo de produção capitalista combinado com novas relações de produção não-capitalistas constituídas pela expansão capitalista sobre formas pré-capitalistas de produção, que se reproduziriam na era capitalista de forma subordinada. O capitalismo surge como modo de produção dominante (mas somente em alguns países como, por exemplo, a Inglaterra) a partir do século XVI.

O movimento do capital comercial incentiva a produção industrial. O capital comercial produz concentração de fortuna monetária e assim cria a supremacia da “produção para o comércio”, ou seja, produção de mercadorias (que possuem valor de troca). O movimento do capital comercial cria o predomínio do capital industrial6. Entretanto, esse movimento só pode criar o capitalismo em determinadas condições históricas, que foram aquelas criadas pelo feudalismo, na sua origem, e consolidadas devido a sua crise.

A separação dos produtores diretos de seus meios de produção, o caso mais típico sendo os enclosures (cercamentos) na Inglaterra, cria uma massa de trabalhadores que só possuem sua força de trabalho e, portanto, apresenta as condições necessárias para se integrarem na produção capitalista. No campo surgem os arrendatários capitalistas como resultado de um longo processo histórico que transforma os parceiros em arrendatários capitalistas que exploravam os trabalhadores assalariados e cediam parte do mais-produto ao Landlord como renda da terra (Marx, 1988a).

Os capitalistas industriais surgem com o processo que faz do produtor um comerciante passando a produzir em larga escala para o comércio (Marx, 1988a). Esse conjunto de transformações sociais, que foram acompanhadas por outras que aqui foram omitidas, criaram o proletariado, a burguesia e os arrendatários capitalistas. Esse processo de acumulação primitiva de capital (separação dos produtores dos meios de produção) foi acompanhada por outras formas como o sistema colonial, o sistema de crédito público e o sistema protecionista. A acumulação primitiva de capital decrescia simultaneamente com o crescimento da acumulação capitalista propriamente dita. Em outras palavras, o modo de produção feudal em declínio criou as condições históricas para a expansão comercial e o desenvolvimento do capital comercial e que se tornou as condições históricas que possibilitaram a ascensão do modo de produção capitalista, agora devido ao movimento de retorno sobre a produção do capital comercial nas condições favoráveis da pequena produção herdada do feudalismo.

O modo de produção capitalista em expansão realiza o processo de subordinação do capital comercial e monetário ao capital industrial. Entretanto, no período anterior, o estado cortesão já havia, em alguns países, sido substituído pelo estado absolutista. Este é considerado por muitos como um estado feudal ou então um estado de transição7.

O estado absolutista, entretanto, não era nem “feudal” e nem de “transição”. Ele expressa, em seu nascimento, a tentativa de uma “reação feudal” que procura transformar o estado cortesão (estado de cortes) no ponto de apoio de manutenção dos privilégios de classe da nobreza. Mas ela foi uma “reação” a que? E em que consistiu? Foi uma reação ao poder crescente das cidades e das novas camadas sociais. Os senhores feudais abriram mão do poder local porque já não tinha forças para, por conta própria, enfrentar seus subordinados e seus adversários. Portanto, o caminho a ser percorrido era o da centralização do poder político, ou, para ser mais exato, a constituição do estado absolutista.

Pode-se pensar que o estado absolutista, sendo obra dos senhores feudais, seria necessariamente um estado feudal. Acontece que o poder financeiro e a força política dos senhores feudais estavam muito reduzidos e se ele atendesse apenas os seus interesses seria de se esperar uma reação negativa de todo o resto da sociedade. Entretanto, a burguesia nascente, os camponeses, etc. também apoiaram e foram beneficiados com o novo estado. A classe que ganhou mais com o estado absolutista foi a burguesia. O estado absolutista, em termos de classes, se constituía como uma aliança entre nobreza e burguesia mediada pela burocracia monárquica. A partir disto pode-se concluir que ele é, na verdade, um “estado de transição”.

Mas como se caracteriza o caráter de classe de um estado? Dificilmente pode-se fazê-lo através da “classe” que dirige diretamente o estado, pois geralmente esta tarefa é atribuída a burocracia e nos casos em que a classe dominante é ao mesmo tempo a burocracia isto não quer dizer, obrigatoriamente, que ela o utilize de acordo os seus interesses exclusivos. Do ponto de vista marxista, a definição do caráter de classe de um estado não pode se limitar a análise do estado em si mesmo mas sim através de suas determinações e pode ser identificado em sua prática. A prática geral de um estado permite compreender qual é o seu caráter de classe, quais são as determinações que o fazem agir. Portanto, é na prática geral de um estado sobre determinadas relações de produção e no sentido em que esta prática se efetiva é o que têm importância fundamental. Se a ação de estado serve aos interesses do desenvolvimento e reprodução de determinadas relações de produção, ela fortalece a classe que retira sua força destas relações.

O estado absolutista só pode ser compreendido no quadro da ascensão do modo de produção capitalista. A burocracia monárquica para sobreviver precisava manter a estabilidade social e impedir o colapso da sociedade. Uma volta ao feudalismo era impossível e a estagnação capitalista seria o caos. Para a burocracia monárquica a estabilidade só seria conquistada dentro da reprodução do modo de reprodução capitalista e este só se “estabiliza” em constante expansão e reprodução ampliada. As burocracias de todos os estados buscam sempre a estabilidade social reproduzindo o poder econômico e impedindo que as forças políticas em luta (burguesia, nobreza, campesinato, proletariado nascente, etc.) ameacem tal reprodução. O estado é, por natureza, conservador. E o capitalismo só se conserva mudando constantemente.

O estado absolutista não só proporcionou a acumulação primitiva (não-capitalista) de capital como incentivou a acumulação capitalista propriamente dita. Segundo Marx: “embora o poder real, ele mesmo um produto do desenvolvimento burguês, em sua luta pela soberania absoluta tenha acelerado violentamente a dissolução desses séqüitos (feudais – NV), ele não foi, de modo algum, sua única causa. Foi muito mais, em oposição mais teimosa a realeza e ao parlamento, o grande senhor feudal quem criou um proletariado incomparavelmente maior mediante expulsão violenta do campesinato da base fundiária, sobre a qual possuía o mesmo título jurídico feudal que ele, e usurpação de sua terra comunal. O impulso imediato para isso foi dado, na Inglaterra, nomeadamente pelo florescimento da manufatura flamenga de lã e a conseqüente alta dos preços da lã. A velha nobreza feudal fora devorada pelas grandes guerras feudais, a nova era uma filha de seu tempo, para a qual o dinheiro era o poder dos poderes. Por isso, a transformação de terras de lavoura em pastagens de ovelhas tornou-se sua divisa” (Marx, 1988a, p. 254). Como se vê, não só o estado absolutista, mas os próprios senhores feudais são engolidos pelo movimento do capital. Marx estava muito longe das análises positivistas que querem definir o caráter de classe do estado absolutista descobrindo quem está sentado no trono, seja um rico de ar nobre ou um burguês com calo nos dedos de tanto contar dinheiro.

É claro que o capitalismo não “criou” o estado absolutista, assim como não criou a mercadoria. Tanto o estado quanto a mercadoria são anteriores ao capitalismo mas este realiza uma apropriação de ambos, subordinando-os às suas relações de produção. O estado absolutista é resultado da centralização maior do estado cortesão promovido por um conjunto de forças sociais e que foi cada vez mais submetido à lógica do capital8.

A prática dos estados absolutistas comprova essas teses: “todas as monarquias européias do século XVI, com maior ou menor felicidade, maior ou menor continuidade, enveredaram por esta via do intervencionismo econômico. Entre os seus conselheiros, seus oficiais de finanças, as preocupações relativas à balança comercial, ao desenvolvimento das manufaturas e aos movimentos internacionais das espécies, se tornavam cada vez mais obsedantes” (Deyon, 1973, p. 17)9.

A centralização do estado reforça a formação de uma burocracia (que não era exclusivamente “monárquica”) e o desenvolvimento das forças produtivas que transformam até a arte da guerra com os novos instrumentos de guerra, que deixam os velhos guerreiros “nobres” e “medievais” impossibilitados de sustentarem suas armas e a nova situação cria a necessidade de um exército permanente e profissional (sobre a “obsolescência dos guerreiros”, veja: Poggi, 1981).

A igreja que já havia se enfraquecido com o estado cortesão e com o declínio do feudalismo acompanhado com as lutas religiosas, acaba perdendo o poder cultural, econômico e político que possuía10. O estado absolutista traz a modernização da instituição estatal abrindo espaço para o futuro estado capitalista pós-absolutista.

Ao definir o estado absolutista como capitalista deve-se perguntar pela razão das revoluções burguesas. Onde o capital comercial já é uma potência mas a produção capitalista é muito fraca e apenas se iniciando o peso da nobreza feudal é o que predomina, além da realeza possuir uma maior autonomia. Mesmo assim este estado deve ser caracterizado como capitalista, pois tanto sua ação política e intervenção na esfera da produção-distribuição quanto no que se refere às classes que possuem a maior “fatia” do poder no regime político (baseado numa “aliança de classes” entre as classes feudais e a “burguesia” mercantil), beneficiava a classe capitalista. No entanto, esta teve que fazer concessões mas isto não lhe retirava o seu caráter de classe. A prática geral do estado absolutista aponta para a realização dos interesses da classe capitalista nascente, bem como suas determinações, o movimento do capital, colocam isto como necessidade. O problema residia nos limites impostos por esta aliança e as concessões que só tem sentido enquanto a classe capitalista não se acha suficientemente forte para implantar sua dominação isoladamente.

Além disso, as revoluções burguesas se realizaram nos estados capitalistas absolutistas por cinco motivos principais: 1) com o desenvolvimento do modo de produção capitalista a forma de funcionamento do estado absolutista se tornou obsoleta; 2) a forma de recrutamento de funcionários (principalmente, junto aos “nobres”) se tornou desatualizada; 3) a tentativa desse estado de preservar alguns interesses e privilégios da nobreza depois desta estar completamente derrotada e decadente economicamente passa a não ter mais nenhum apoio social significativo para esse tipo de atividade e incentiva à burguesia buscar a criação de um estado capitalista livre das impurezas do pré-capitalismo; 4) a necessidade de modernização e de “racionalização” (no sentido de uma racionalidade capitalista; 5) a falta de legitimidade, ou seja, de justificativa ideológica da existência de um estado comandado por “nobres”, o que o torna indesejável.

A partir das revoluções burguesas encontramo-nos diante do estado capitalista pós-absolutista. Surge, assim, o estado capitalista “puro”. Podemos, a partir disto, definir o estado burguês livre dos resquícios absolutistas. Apresentaremos, então, o conceito de estado capitalista em sua forma “pura”. Mas antes de tratarmos disso devemos fazer algumas observações sobre a teoria marxista do estado.

Para Marx “o governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa” (Marx & Engels, 1988, p. 78). Esta concepção é considerada por muitos autores como “instrumentalista” (Afonso, 1988). Consideramos, entretanto, que se deve esclarecer o que se entende por “visão instrumentalista”. Um “instrumento” é geralmente tido como “neutro” que pode ser utilizado para qualquer coisa: o problema não está nele mas sim na sua “utilização”. Uma faca, por exemplo, foi criada, digamos, para cortar alimentos. Entretanto, ela pode ser utilizada para se cometer um assassinato. Portanto, é o uso que se faz dela que determina sua razão de ser, ela é um instrumento (neutro).

A faca, como “objeto dado”, pode ser utilizada para diversas coisas mas também não pode ser utilizada para inúmeras outras coisas. Estas possibilidades limitadas de uso significam que ela não tem uma “neutralidade absoluta”. Esta análise vale somente para ‘instrumentos simples” que apresentam uma “neutralidade relativa”. É claro que existem aqueles que defendem a neutralidade absoluta dos instrumentos simples e costumam utilizar estes como exemplo para “provar” a “neutralidade absoluta” dos “instrumentos em geral”. Acontece que existem outros tipos de instrumentos: são os “instrumentos complexos” que são criados no interior de determinadas relações com outros instrumentos e também de determinadas relações sociais. Nesse caso, não existe nenhuma neutralidade. A técnica capitalista, por exemplo, como já foi demonstrado por diversos teóricos (Illich, 1978; Gorz, 1988; Habermas, 1988) não tem nada de neutra: ela é capitalista, e, por conseguinte, não pode ser “utilizada” em uma sociedade socialista.

Se utilizarmos o conceito vulgar de instrumento (“neutro”) ou tornarmos esse como “simples” (neutralidade relativa) não podemos dizer que Marx tinha uma “visão instrumentalista” do estado. A tese de Marx, que afirma ser o estado o instrumento da classe dominante, só pode significar que o estado é um instrumento da burguesia, ou seja, complexo, pois se mantém fiel à finalidade para o qual foi criado. A outra concepção de instrumento (neutro) não se encaixa na abordagem de Marx e apenas revela uma intenção ideológica de falsificar a realidade e sustentar que o estado burguês pode ser “utilizado” pela classe operária e em seu “benefício”. O estado só pode ser compreendido como um instrumento complexo que ao ser criado já contém uma determinada finalidade e esta, por sua vez, escapa ao controle do seu “criador” e se volta contra ele criando sua própria lógica: esta é sua autonomia relativa.

Em resumo, pode-se dizer que para Marx todo estado é um estado de classe, isto é, expressa os interesses da classe dominante. O estado capitalista também é um estado de classe. Entretanto, Marx não elaborou uma teoria acabada e sistematizada do estado embora planejasse fazê-lo (o mesmo se pode dizer à respeito das classes sociais e do método dialético). Essa “lacuna” na teoria marxista permitiu o surgimento de teses pretensamente complementares, tais como as de Engels, Lênin, Rosa Luxemburgo, Trotski, Gramsci, P. Mattick, Althusser, Poulantzas, Miliband, escola derivacionista (Hirsch, Salama, etc.), O’Connor, Offe, etc. isto sem falar nos reformistas (Kautsky, Bobbio, etc.). Cada uma dessas teses coloca a ênfase em um “aspecto” do estado, confundindo-o com estado em geral. Marx já dizia que retirar uma parte do todo e depois defini-lo por essa parte abstraída é criar uma ideologia (inversão da realidade). A ênfase que alguns colocam no estado, seja em seu aspecto “burocrático” (Offe), “derivado do modo de produção” (escola derivacionista), “repressivo” (Lênin) ideológico (Althusser e outros) é, portanto, limitada e não dá conta da realidade complexa do fenômeno estatal.

Consideramos que o essencial da teoria do estado se encontra em Karl Marx, mas, obviamente, é preciso atualizar e aprofundar a teoria marxista do estado e algumas das análises mais recentes sobre o estado capitalista serão aqui acrescentadas. Para Marx, como já observamos, todo estado é expressão dos interesses da classe dominante. A partir desta premissa, a conclusão de que o estado na sociedade capitalista é “burguês” se torna óbvia. Entretanto, os ideólogos do estado “neutro” (acima das classes sociais) nos perguntarão: como se define o caráter de classe de um estado? A resposta é: observando as determinações do estado (e pode ser identificado também pela prática geral do estado em questão). A determinação fundamental do estado é o modo de produção dominante. São as relações de produção dominantes, que são relações de classes (Viana, 1997) que constituem o estado e é a dominação de classe na esfera da produção que constitui o estado e lhe determina.

O estado capitalista não pode ser separado do modo de produção capitalista. O estado não está fora da sociedade, pois ele é parte integrante dela. O modo de produção mantém uma unidade com suas formas de regularização das relações sociais e, por conseguinte, com o estado, e, ao mesmo tempo, uma oposição. Por enquanto, nos limitaremos a tratar do momento de sua unidade. Vimos anteriormente que a dissolução do modo de produção feudal ao criar inúmeros pequenos proprietários isolados possibilitou a expansão do capital comercial que influenciou o conjunto das relações sociais criando a produção capitalista propriamente dita. A partir do momento em que o modo de produção dominante se torna capitalista, o movimento do capital invade todas as esferas da vida social. Entretanto, esta invasão não é realizada em terras virgens e sim sobre os escombros da sociedade feudal. O modo de produção capitalista submete a mercadoria, a cultura, o estado, etc., ao conjunto das relações que ele implanta. Portanto, o estado não é exterior ao capitalismo, como propõe alguns, mas sim anterior. As relações de produção capitalistas envolvem e subordinam o estado.

O estado envolvido na dinâmica do modo de produção capitalista se torna, para utilizar expressão de Engels, o “capitalista coletivo ideal”. Ele, como demonstra o estado absolutista, interfere nas relações de produção e distribuição e busca criar as condições de reprodução das relações de produção capitalistas, que só se reproduzem em escala ampliada. O estado torna-se elemento do processo de reprodução do capital. O capitalista coletivo ideal busca desenvolver as forças produtivas em países atrasados, criar as condições de desenvolvimento do capital nos locais nos quais os “capitais individuais” não podem fazer isto, criação de infra-estrutura necessária, integrar a força de trabalho no mercado de trabalho, criação de contra-tendências à queda da taxa de lucro médio, etc.11.

O estado, independente da burocracia estatal e da classe dominante, tem que reconhecer a relação-capital e as implicações derivadas daí: produção de mais-valor, a reprodução ampliada do capital, a tendência à queda da taxa de lucro médio. Ele é parte integrante dessa relação.

Esta é a determinação fundamental do estado, mas ele possui outras duas determinações que reforçam seu caráter de classe (capitalista): a burocracia estatal e a força da classe dominante na esfera da sociedade civil. O estado capitalista é o estado mais complexo da história das sociedades humanas. Isto também é produto do modo de produção capitalista que expande a divisão do trabalho e torna o estado uma organização altamente complexa e especializada. Se existe uma unidade entre modo de produção e o estado também existe uma oposição. Esta expressa a autonomia relativa do estado que surge da divisão capitalista do trabalho12.

Mas antes de tratar da autonomia relativa devemos abrir parêntesis para analisar algumas teorias sobre ela. Alguns autores entendem que a autonomia relativa do estado significa que este pode atender a interesses divergentes aos da classe dominante. Esta possibilidade se expressa, para alguns, na classe ou partido que detém o “poder” do estado (esta é a visão das representações cotidianas nos meios políticos partidários da esquerda institucional). Isto, na verdade, é uma forma camuflada de defender a tese do estado como “instrumento neutro” que pode ser utilizado por qualquer classe social. O que existe nessa tese é a negação da autonomia relativa do estado, pois ele se torna mero instrumento de quem detém o “poder” do estado e que o utiliza ao seu bel-prazer.

Para outros, a autonomia relativa do estado se expressa no fato dele representar uma “correlação de forças” (esta é a posição de alguns gramscianos). O estado, nessa análise, se torna “acima” da classe dominante devido à luta de classes que o obriga a atender aos interesses das classes dominadas. Novamente se defende a tese do estado como “vazio”, “instrumento neutro”, mas agora não é “utilizado” por uma classe e sim pela relação de forças entre várias classes. O estado deixa de ser “classista” para ser “policlassista” ou então um estado classista “móvel” (é expressão da classe mais forte no momento). Portanto, aqui também se nega qualquer autonomia ao estado. Todas essas duas teses da autonomia relativa do estado acabam demonstrando que ele não possui autonomia nenhuma. Isto, entretanto, não é gratuito. As duas teses são quase idênticas e colocam que o estado pode ser utilizado de acordo com os interesses de qualquer classe social, inclusive as classes exploradas. Assim, os ideólogos revestem o estado burguês de uma positividade e elasticidade para justificar a linha política reformista que é a variante mais esclarecida do conservadorismo. Outra tese da autonomia relativa do estado é aquela que diz que ela se expressa no discurso do estado (Neto, 1988). Acontece que um discurso, por si só, não expressa autonomia nenhuma. Ele precisa, para se efetivar, expressar alguma base material (que é o estado, pois ele é um discurso do estado).

Para definirmos o que é a autonomia relativa do estado temos que definir o que é o estado capitalista: é uma relação de dominação de classe (no qual a burguesia domina as demais classes sociais) mediada pela burocracia para manter e reproduzir as relações de produção capitalistas. A materialidade do estado é a burocracia (classe social), que é composta pelos indivíduos que são os seus agentes reais. Portanto, a manifestação da autonomia da organização (seu funcionamento) e da classe social (os agentes envolvidos nesse funcionamento e com interesses sociais próprios) significa a autonomização da burocracia estatal e isto expressa o conceito de “autonomia relativa do estado”13.

Se o estado é uma relação de dominação de classe mediada pela burocracia porque foi afirmado anteriormente que a burocracia confirma o caráter burguês do estado? Isto ocorre pelos seguintes motivos: a) a burocracia (classe social) incorpora o estado se iludindo com a sua função “pública” e com o papel de mantenedora da ordem; b) a manutenção do estado (recursos financeiros) só é possível com o prosseguimento do processo de acumulação capitalista, já que seus recursos provém dos impostos14; e c) a luta de classes do proletariado provoca instabilidade financeira e política, o que é contrário aos interesses da burocracia, provocando a ação estatal no sentido de defender “a ordem” (o que é um interesse também da burguesia).

É por esses motivos que a burocracia estatal procura criar todas as condições favoráveis para a reprodução do capital. É isto que explica o fato da burocracia estatal reprimir até elementos da classe dominante em época de radicalização da luta operária. Quando a “democracia” se torna perigosa para o capitalismo até a parte da burguesia recalcitrante deve ser anulada em nome da ordem.

Mas se o estado defende o interesse geral da burguesia mesmo quando se opõe a parte dela, onde está sua autonomia? Esta se encontra nos seus interesses específicos de classe: a sua própria reprodução enquanto classe e organização e a manutenção e ampliação dos seus privilégios, o que a leva a tentar uma maior burocratização da sociedade15. Entretanto, essa ação é limitada e a burocracia estatal não pode criar uma ditadura burocrática não-capitalista devido sua incapacidade de transformar as relações de produção. Por isso, a autonomia do estado é “relativa”.

A terceira determinação, e a menos importante, do caráter de classe do estado capitalista é a força da classe dominante, da burguesia. Sob os regimes democrático-burgueses a classe capitalista busca colocar os seus representantes no poder executivo e legislativo. As frações da burguesia, com interesses diferenciados, digladiam-se na luta eleitoral para conquistar o maior número de representantes e com isso influenciar a política estatal em seu benefício. Mas, além da pressão política, a burguesia pode utilizar a pressão financeira ou apelar para a ação de massas. A pressão financeira é mais utilizada em regimes ditatoriais do que em democráticos (greves de investimento, sonegação de impostos, investimentos no exterior, etc.). Quanto ao apelo à ação de massas raramente acontece porque a burguesia é uma classe medrosa em relação as massas; pois estas, uma vez em movimento, pode ultrapassá-la. Estas frações e suas ações adquirem mais importância no que se refere à forma assumida pelo estado capitalista em determinado momento histórico.

A esta altura poderão nos perguntar: e a luta de classes? A esta pergunta respondemos: a luta de classes acontece na sociedade (nas fábricas, bairros, escolas, etc.). O estado não é, como pretendem alguns, o lugar da lutas de classes. O estado tem como objetivo manter e reproduzir as relações de produção e por isso atua sobre a sociedade sob diversas formas (por enquanto, vimos apenas sua ação financeira), inclusive sobre as classes exploradas. A luta de classes não se dá no “interior” do estado, aí a única luta que ocorre é a do bloco dominante.

A influência das classes exploradas sobre o estado é mínima. Quando o estado burguês atende alguma reivindicação das classes exploradas é porque ela não afeta de forma mais radical os interesses da classe dominante e ainda lhe traz retorno em legitimidade e, conseqüentemente, estabilidade política. As classes exploradas não têm poder de decisão e sim poder de reivindicação16. O estado é uma organização de classe e está envolvido na luta de classes em favor da classe dominante mas não é, ele mesmo, o palco dessa luta. O estado burguês reage e busca controlar as lutas de classes na sociedade.

Antes de prosseguir devemos analisar o que vem sendo chamada “teoria ampliada do estado”. Esta teoria vem sendo defendida por diversos teóricos e se baseiam em Gramsci (e Althusser). Para Gramsci, o estado integral é: sociedade civil + sociedade política = hegemonia revestida de coerção. Coutinho afirma que “em Marx e Engels, que nisso seguem essencialmente Hegel, ‘sociedade civil’ designa sempre o conjunto das relações econômicas capitalistas, o que eles chamam de ‘base material’ ou ‘infra-estrutura’. Em Gramsci, ao contrário, o termo ‘sociedade civil’, designa um momento ou esfera da ‘superestrutura’. Designa o conjunto de instituições responsáveis pela elaboração e/ou difusão de valores simbólicos, de ideologias, compreendendo o sistema escolar, as igrejas, os partidos políticos, as organizações profissionais, os sindicatos, os meios de comunicação, as instituições de caráter científico e artístico, etc.” (Coutinho, 1985, p. 60-61).

Outro responsável pela “teoria ampliada do estado” é o famoso positivista francês Louis Althusser. Este procura responder porque considera instituições privadas que não possuem estatuto público como “aparelhos ideológicos do estado”: “como marxista consciente, Gramsci já respondera a essa objeção. A distinção entre o público e o privado é uma distinção intrínseca ao direito burguês, é valida nos domínios (subordinados) aonde o direito burguês exerce seus ‘poderes’. O domínio do estado lhe escapa, pois este está ‘além do direito’: o estado, que é o estado da classe dominante, não é nem público nem privado, ele é ao contrário a condição de toda distinção entre o público e o privado. Digamos a mesma coisa dos nossos aparelhos ideológicos do estado. Pouco importa se as instituições que os constituem sejam ‘públicas’ ou ‘privadas’. O que importa é o seu funcionamento. Instituições privadas podem perfeitamente ‘funcionar’ como aparelho ideológico do estado” (Althusser, 1989, p. 69).

Esta ideologia é muito engraçada. Mas além da diversão ela propõe a deformação da realidade. O problema é que sempre temos que retomar o ABC: não é o estado que cria a sociedade mas, ao contrário, a sociedade que cria o estado. O estado surge como produto da sociedade de classes. O estado capitalista surge com o desenvolvimento das lutas de classes entre as classes antigas e novas e também entre estas últimas. O estado assume o papel de reprodutor das relações de produção e age, portanto, no interesse da classe dominante. Com a expansão da divisão social do trabalho provocada pelo capitalismo, surgem, por iniciativa do estado e\ou da sociedade civil, diversas instituições (sindicatos, partidos, etc.) que passam a somar com as existentes (igrejas, por exemplo). Assim, expande-se a sociedade civil. A sociedade civil, além de não ser uma criação do estado, não serve aos seus interesses. A sociedade civil apresenta interesses particulares (de classe, religião, corporação, localidade, etc.) de acordo com cada organização específica (partido, sindicato, igreja, etc.). O estado se apresenta como representante do interesse geral da sociedade e as instituições da sociedade civil como representante de interesses particulares. Portanto, o estado é “público” e a sociedade civil é privada. Mas, como diz Althusser, isto não é apenas uma ideologia jurídica burguesa? A sociedade civil expressa uma multiplicidade de interesses (de “classes”) e o estado expressa o interesse da classe dominante (uma “única” classe, embora também beneficie uma fração da burocracia, a estatal). Se o direito burguês separa o público do privado, ele apenas retira o caráter de classe do estado: burguês. Isto não tira o caráter privado e múltiplo dos interesses expressos na sociedade civil (de classes, frações de classes, etc.) mas coloca o caráter unitário do estado (burguês). A oposição entre o público e o privado, retirando sua veste ideológica, é a oposição entre o capital (capitalista coletivo ideal) e o “resto” da sociedade.

O maior problema da ideologia de Althusser é a sua análise mecânica da relação entre modo de produção e estado: ao não ver o momento de unidade entre ambos e o caráter histórico de sua relação, ele autonomiza o estado de tal forma que este acaba invadindo (ideologicamente) o espaço privado. As instituições da sociedade civil tornam-se, assim, aparelhos ideológicos do estado ao invés do estado ser um aparelho privado do capital. Por conseguinte, a dominação de classe na sociedade civil transforma-se em “dominação estatal”. É claro, já que Althusser defende o caráter de classe do estado, que a “dominação estatal” é uma dominação burguesa. A questão está no fato de Althusser inverter a fonte do poder que da sociedade (relações de produção) passa para o estado (seus aparelhos ideológicos e repressivos) e com isso as instituições da sociedade civil se tornam “aparelhos de estado”. Citemos um exemplo para esclarecer esta crítica: os meios de comunicação de massas são Aparelhos Ideológicos do estado para Althusser. Estes, na verdade, são, na verdade, “propriedade privada” da burguesia. Nestes meios de comunicação é possível ver constantemente críticas ao estado a aos governos nestes meios de comunicação. Obviamente não se vê neles uma crítica às relações de produção capitalistas. Por quê? A burguesia é a proprietária desses meios e os utilizam de acordo com os seus interesses e que podem inclusive se opor à política estatal. Isto significa que na “sociedade civil” se expressa a dominação de classe da burguesia, a ideologia burguesa. O estado também expressa a ideologia burguesa mas mediada pela ideologia do estado que se baseia no “interesse nacional” e sua ação se baseia nas regras jurídicas.

O que existe na sociedade civil são aparelhos privados de classe. Entre estes, os aparelhos das frações da classe dominante buscam controlar em seu favor o “capitalista coletivo ideal”. Portanto, o mais correto é considerar o estado como aparelho privado do capital ao invés de considerar as instituições da sociedade civil como aparelhos ideológicos do estado. Em outras palavras, a análise de Althusser é a-histórica: existe a dominação de classe e as lutas de classes e, para reproduzir as relações de produção e controlar as classes exploradas, a burguesia precisa de uma força “extra”-sociedade: o estado. Se até aí Althusser foi perspicaz, isso não durou muito tempo: Althusser autonomizou tanto o estado que as organizações de classe da sociedade civil se tornaram “do estado”. Onde está a base material do estado? Na sociedade. Mas, na visão de Althusser, o estado lança seus tentáculos maquiavélicos sobre a sociedade. Essa estranha “dialética” que Althusser cria entre base e superestrutura é a-histórica. A base condiciona a superestrutura e esta cria uma ação de retorno sobre a base. O problema é que Althusser “esquece” que a base é o ponto de partida e transforma a superestrutura neste ponto de partida e que atua sobre a base. O que é próprio da base se torna elemento da superestrutura, ou, nas palavras de Althusser, aparelhos ideológicos do estado.

Mas se tanto Gramsci quanto Althusser defendem essa “teoria” ampliada do estado, qual é a diferença entre os dois? Os dois concordam que a sociedade política mais a sociedade civil formam o estado, embora utilizando conceitos diferentes, mas discordam no que se refere ao núcleo gerador do poder político (ou da “hegemonia”, para utilizar expressão de Gramsci): para Althusser tal núcleo é o estado (em sentido estrito) e para Gramsci é a sociedade civil.

Passemos a analisar a ideologia do famoso positivista italiano. A hegemonia é conquistada na sociedade civil. Gramsci abstrai as relações de produção e o que é derivado daí. A riqueza da burguesia faz suas organizações serem mais poderosas do que as das classes exploradas e, como na sociedade burguesa a riqueza é a fonte da sua supremacia (ideológica, política, etc.), a hegemonia na sociedade civil será sempre burguesa.

Em resumo, a fonte do poder político não é nem a sociedade política nem a sociedade civil. Além disso, tanto um como outro colocam o papel do estado apenas como repressivo e ideológico esquecendo-se do seu papel financeiro, etc.

Façamos agora algumas considerações sobre a “teoria” ampliada do estado: O estado é: sociedade civil + sociedade política? Marx, então, elaborou uma teoria restrita do estado? A teoria da ampliação do estado dificilmente pode se compatibilizar com o marxismo, ou se colocar como desenvolvimento das idéias de Marx. É verdade que após a época de Marx surgiram novas instituições da sociedade civil criadas pela crescente divisão capitalista do trabalho. Mas daí afirmar que Marx vendo este desenvolvimento histórico colocaria estas instituições como sendo do estado é ultrapassar todas as evidências existentes nos escritos de Marx. Vejamos alguns exemplos. Sabe-se que para Marx “a corporação é uma tentativa da sociedade civil para chegar a ser estado” (Marx, 1983) e “como o estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade de uma época, segue-se que todas as instituições comuns são mediadas pelo estado e adquirem através dele uma forma política” (Marx & Engels, 1991). Juntando- se a essas afirmações gerais com a análise marxista do capitalismo e ao materialismo histórico-dialético a que resultado chegaremos?

O desenvolvimento da divisão social do trabalho e das lutas de classes fez surgir novas instituições na sociedade burguesa. Surgem e se desenvolvem cada vez mais os partidos políticos, os sindicatos, etc. O estado continua aparecendo como universalidade em contraposição à particularidade da sociedade. Surgem, na sociedade civil, as “corporações” que buscam “ser o estado” e o estado é que “sanciona” o caráter “político” das “instituições comuns”. Há uma convergência entre o crescimento das “corporações” (que Marx chamou de “burocracia incompleta”) e o aceitamento destas pelo estado. No início era a guerra do estado capitalista contra as instituições da sociedade civil, no final era a conciliação. O estado capitalista institui a democracia representativa, o que significa que os cidadãos não participam diretamente da administração mas sim através dos seus “representantes”. Entretanto, o cidadão que quiser ser um representante tem que se filiar a um partido político. Entre o cidadão e o estado surge a figura mediadora do partido: quem quer ser um representante tem que estar nele, bem como quem quer escolher um representante tem que apoiá-lo.

Os defensores da democracia representativa podem argumentar que a “pressão” sobre o estado pode se realizar fora do sistema democrático-burguês. Os sindicatos profissionais mantêm uma relação com o estado buscando defender seus interesses particulares. O sindicato de uma profissão pode exigir um reajuste salarial e até fazer greves para consegui-lo. O trabalhador dessa profissão, no entanto, não pode fazer greve “sozinho”. Então, para se relacionar com o estado tem que se “sindicalizar”, ou seja, o sindicato é outra figura mediadora entre sociedade e estado.

Um católico para se relacionar com o estado tem que apelar para a mediação da igreja católica; um morador da periferia para se relacionar com o estado precisa da mediação da associação de bairro; o estudante para se relacionar com o estado tem que passar pela mediação da organização estudantil,etc., etc. Entre estado e sociedade surge a necessidade de mediação, que não é a escolha de delegados como em Hegel. Com o desenvolvimento do capitalismo surge a sociedade civil organizada.

A relação dos indivíduos concretos com o estado é mediada pela organização mas “quem fala em organização falta em tendência à oligarquia. Em cada organização, seja um partido ou uma união de profissões, etc., a inclinação aristocrática manifesta-se de uma maneira muito acentuada. O mecanismo da organização, ao mesmo tempo que lhe dá uma estrutura sólida, provoca na massa organizada grave modificações. Ela altera completamente as respectivas composições de chefes e massas. A organização tem o efeito de dividir todo o partido ou sindicato profissional em uma minoria dirigente e uma maioria dirigida” (Michels, 1982, p. 21).

O modo de produção capitalista cria o moderno estado capitalista e as organizações da sociedade civil reforçadas por este último (Motta, 1985; Lapassade, 1977). Daí que como desenvolvimento capitalista a relação entre estado e sociedade passou a ser mediada pela sociedade civil organizada. A luta de classes foi institucionalizada pela democracia burguesa. A classe operária não luta mais diretamente por sua libertação, pois para isso ela precisa de organização (oligarquia, diria Michels), precisa de partidos e sindicatos.

A burocracia cria seus próprios interesses: “o burocrata identifica-se completamente com a organização e confunde seus interesses com os interesses desta. Ele considera como uma ofensa pessoal toda censura objetiva ao partido por quem quer que seja” (Michels, 1982, p. 131)17.

Assim, a sociedade civil organizada é uma mediação burocrática entre sociedade civil e estado. Embora seja uma mediação, ela tem suas raízes nas relações de produção e por isso só pode ser considerada como parte da sociedade. A “hegemonia” na sociedade civil é uma hegemonia burguesa (devido às relações sociais e a força da burguesia). O estado no capitalismo é sempre um estado burguês. A perda da hegemonia na sociedade civil não significa conquista do estado, que pode conviver com esta em conflito e/ou abolir suas organizações (passagem da democracia burguesa à ditadura burguesa aberta). A conquista do estado por uma força não-burguesa, mesmo sendo uma força hegemônica também na sociedade civil organizada, não altera nada: é necessário transformar as relações de produção. Portanto, o ponto de partida é a transformação na produção mas para que essa não fracasse é necessário destruir o estado burguês. O socialismo só pode ser realizado através da luta simultânea para transformar as relações de produção e destruição do estado burguês, o que destrói as fontes da “sociedade civil organizada”.

Mas voltemos à questão do estado capitalista. Ele procura manter e reproduzir as relações de produção. Isto é uma característica comum a todos os estados mas a forma como isto é feito está relacionada com o modo de produção específico em questão. O capitalismo é um modo de produção que expande como nenhum outro a divisão social do trabalho, complexifica as relações sociais, desenvolve as forças produtivas em escala jamais vista, e também cria o estado mais complexo da história. Este assume um papel de intervenção na produção-distribuição-circulação só comparável em sua importância ao do estado tributário. Mas, além deste papel, ele desempenha inúmeras outras atividades das quais iremos tratar agora.

A atividade de intervenção no processo de produção-distribuição do estado capitalista nos países com fraco desenvolvimento das suas forças produtivas é incentivá-las (o estado absolutista no surgimento do capitalismo na Europa Ocidental e o estado nos países capitalistas subordinados – “terceiro mundo” – buscando a industrialização são bons exemplos). Nos países imperialistas, que atingiram um alto grau de desenvolvimento das forças produtivas, o estado tem que combater a tendência à queda da taxa de lucro médio e criar contra-tendências. Além disso, neste países, a burguesia e a dinâmica do capital internacional levam o estado a assumir um caráter “nacional” para efetivar sua política imperialista. A ação intervencionista do estado capitalista na esfera da produção- distribuição tem vários outros elementos, que podem ser específicos ou gerais, mas todos têm em comum a complementação da “relação-capital” generalizada na sociedade.

O estado capitalista exerce também uma atividade repressiva para conter as lutas de classes e a deterioração das relações sociais burguesas. Em tempos de democracia burguesa (ditadura burguesa oculta) o estado utiliza principalmente de “órgãos legais” legitimados pelo sistema jurídico e político. A polícia e o sistema penitenciário são os principais instrumentos da repressão, mas não são os únicos. Pode-se acrescentar o “serviço de informação”, entre outros.

Em tempos de ditadura burguesa aberta as funções desses instrumentos de repressão são ampliadas e são reforçadas pela presença do exército. A censura e diversas outras formas de impedir a manifestação de oposição são amplamente utilizadas.

Mas além dessa repressão direta existe uma outra mais sutil e que se encontra nas instituições “públicas” (estatais) que se baseia no “vigiar e punir”. A trama da repressão nessas instituições já foi explicitada em diversos estudos (Foucault, 1983).

O papel ideológico do estado burguês se refere, em especial, a ele mesmo. Ele apresenta-se como “público”, “imparcial”, “neutro”, etc.; apresenta-se como aquele que representa o interesse geral da sociedade, o interesse nacional. O egoísmo dos interesses particulares da sociedade civil encontra a barreira do estado, corporificação do interesse geral, desinteressado, altruísta. O estado cria também a cidadania e os direitos iguais do cidadão. Perante ao estado todos são iguais, independentes de sexo, raça, classe, ideologia política, etc. Todos podem ultrapassar a desigualdade real na sociedade civil através da igualdade imaginária no estado.

O estado burguês “democrático” procura se legitimar através da democracia burguesa (que veremos mais adiante quando tratarmos de seu papel político). Ele como é “imparcial” permite a todos participarem da disputa política. Só utiliza a força da repressão quando a lei é infligida. A lei, por sua vez, se baseia nas regras do direito e são elaboradas, quando o regime político é a democracia burguesa, pelo parlamento (que também é burguês) e são julgadas pelo sistema jurídico burguês18.

O conjunto de leis que regem a sociedade burguesa regulariza as relações de classe e servem de justificativa para a repressão inclusive às greves (declaradas “ilegais” ou não). Além disso, as universidades estatais (“públicas”) são o maior centro de criação de ideólogos da burguesia e fornecem informação útil para a ação repressiva do estado (Tragtenberg, 1990). Outras instituições estatais, como os meios de comunicação do estado ou utilizados por ele, segundo determinação da lei, cumprem o mesmo papel de inculcar a ideologia dominante que justifica o estado e a sociedade.

O papel político-institucional do estado é realizado na organização do sistema político que é expresso no sistema partidário e eleitoral. O sistema partidário procura regularizar a ação partidária dentro dos limites aceitos pela sociedade burguesa e o sistema eleitoral procura regularizar da mesma forma tal ação e ambos são tentativas de “institucionalizar” as lutas de classes e assim amortecê-la e com isso aumentar sua própria legitimação.

O estado burguês desempenha também uma “política social”. Esta tem como principal objetivo tentar “resolver o problema da transformação duradoura de trabalho não assalariado em trabalho assalariado” (Lenhardt & Offe, 1984, p. 15). Segundo Offe e Lenhardt, a passagem da proletarização “passiva” (destruição de formas de trabalho não assalariadas, etc.) à ativa (oferecimento da força de trabalho no mercado) não se dá automaticamente, pois existem algumas alternativas (roubo, mendicância, etc.) – que preferimos denominar “lumpemproletarização” para a proletarização ativa. Portanto, o estado exerce diversas atividades (repressivas, ideológicas, etc.) com o objetivo de reproduzir a força de trabalho. Desde o serviço de saúde, oferecido aos trabalhadores para manter a capacidade da força de trabalho de se manter ativa e com isso servir o capital, até a educação “gratuita”, que serve à reprodução da força de trabalho nos diversos graus de profissionalização exigida pelo capital, são atividades do estado capitalista (o capitalista coletivo ideal) ao lado de inúmeras outras19. O papel social do estado burguês expressa os interesses do capital e convergem com as exigências das classes exploradas quando estas se limitam a reivindicações puramente reformistas e imediatas necessárias à sua reprodução. As lutas sociais e as necessidades do capital geram o assistencialismo estatal e criam a necessidade de uma política social do estado capitalista.

De tudo isto que vimos chegamos a conclusão que o “capitalista coletivo ideal” é condição necessária para a conservação do modo de produção capitalista não somente através da repressão e da ideologia mas também através da intervenção na produção, na política, na atividade social, etc. É claro que uma ação estatal está ligada à outra (por exemplo: a ideologia justifica e “legítima” a repressão). Cabe observar que, em determinados períodos históricos e em determinados países, a ação estatal se diferencia assumindo graus e ênfases diferentes. Assim, o papel dominante do estado pode ser, em determinado momento, o financeiro e, em outro, o repressivo ou, ainda, os dois ou nenhum deles. A forma como o estado capitalista intervém na sociedade é determinada pela dinâmica do modo de produção capitalista, isto é, das lutas de classes. As lutas de classes na produção, fundada em torno do mais-valor, e nas formas de regularização, se articulam e determinam o regime de acumulação e a forma do estado capitalista, tal como veremos no último capítulo deste trabalho. As crises do regime de acumulação, por sua vez, geram transformações formais no estado capitalista. Assim, a passagem do estado absolutista para o estado burguês moderno foi apenas uma das transformações do estado capitalista, que sofreu novas alterações, tal como a formação do estado democrático que entrou em crise no início do século 20 e foi substituído pelo estado social-democrata e este, na recente crise do regime de acumulação, foi substituído pelo estado neoliberal.

O estado capitalista é, sem dúvida a máquina mais poderosa do capitalismo e só com a sua destruição acompanhada pela destruição das relações de produção capitalistas será possível construir a sociedade comunista.



Democracia Burguesa: Essência e Metamorfose



O estado capitalista irá, historicamente, utilizar duas formas de regime político: a ditadura burguesa aberta e a ditadura burguesa oculta, a democracia. A dinâmica do desenvolvimento capitalista irá promover mudanças na democracia burguesa e isto está intimamente ligado ao processo de transformação do estado capitalista, resultado da luta de classes. Para compreender este processo, o ponto de partida é analisar a democracia representativa e suas mutações.

O primeiro passo é saber o significado da palavra democracia. Eis uma tarefa difícil, tendo-se em vista as diversas definições deste termo. A polêmica em torno deste termo se deve ao fato de que vivemos em uma sociedade dividida em classes sociais antagônicas que buscam interpretar o mundo de acordo com os seus interesses e sua mentalidade.

A perspectiva da qual partimos é a do proletariado, ou seja, daqueles que estão submetidos à dominação e buscam superá-la. A partir deste pressuposto, é preciso compreender a diferença existente entre a idéia de democracia e a democracia realmente existente. Já observamos que existem diversas concepções de democracia que correspondem a interesses diversos, portanto, a primeira questão a ser resolvida é qual é a relação entre idéia e realidade. Isso só pode ser resolvido tendo por base uma teoria do conceito. Partindo da concepção marxista, podemos dizer que o conceito é uma expressão da realidade (conceito expressivo) ou um projeto para o futuro (conceito antecipador) (Viana, 1997).

Pois bem, a partir disto temos que definir se trataremos da democracia como realidade existente ou como projeto político. Se tomarmos a democracia como conceito antecipador, como um projeto político, temos que admitir que a democracia não existe, e talvez nunca existiu, em nenhum lugar do mundo, dependendo da forma que a definirmos. Se tomarmos a democracia como conceito expressivo, como realidade existente, então teremos que analisar suas manifestações concretas no interior de determinadas relações sociais e daí retirarmos sua definição.

Preferimos a segunda opção, pois é somente através dela que poderemos manter uma certa coerência. Se considerássemos a democracia um conceito antecipador, teríamos que lhe conceder um estatuto de algo ainda não existente. Isto, por sua vez, nos faria ter que procurar uma definição de algo que ainda não existe concretamente. Tal dilema poderia se resolvido com a retomada da raiz etimológica da palavra: democracia = governo do povo, o que é equivalente a autogoverno ou autogestão.

Nesse caso, não se pode falar em “democracia grega” ou “democracia representativa” e o uso comum da palavra democracia, incluindo aí os usos científicos (sociologia, historiografia, ciência política, etc), seriam, doravante, considerados errados. Entretanto, se nós não vivemos em um regime democrático, então em que forma de governo vivemos? Neste caso teríamos que encontrar uma palavra que substitua a democracia no sentido usual.

Por conseguinte, tomar a democracia como um conceito antecipador traz muito mais problemas do que soluções. Além disso, isto seria desnecessário pois já possuímos um conceito antecipador que materializa este projeto político: a autogestão20.

Sendo assim, tomamos por democracia um conceito expressivo. O que é a democracia? Para Décio Saes, a democracia é, simultaneamente, uma forma de estado e um regime político. Para ele, forma de estado é o “padrão de organização interna do corpo de funcionários” e regime político é “a relação entre o corpo de funcionários e os membros da classe exploradora no âmbito específico do processo de definição/execução da política de estado” (Saes, 1987).

Sem dúvida, Décio Saes fornece elementos para o desenvolvimento da teoria marxista democracia, mas consideramos esta definição como problemática, principalmente quando ele acrescenta que “recorremos à multimilenar e controversa expressão democracia, para designar, ao mesmo tempo, uma forma de estado e um regime político” (Saes, 1987, p. 22).

Discordamos desta definição pelos seguintes motivos: a) Se forma de estado e regime político são idênticos21, então porque utilizar duas expressões ao invés de uma? b) A definição de regime político nos parece muito restrita se considerarmos que se exclui as demais classes sociais do processo de definição/execução das políticas estatais. No entanto, preferimos distinguir regime político e forma de estado. A forma de estado, do nosso ponto de vista, não é o padrão de organização interno do corpo de funcionários e sim uma determinada configuração da ação estatal em determinado momento histórico (é por isso que podemos falar em estado liberal, estado liberal-democrático, estado integracionista, estado neoliberal). Sendo assim, a democracia não é uma forma de estado.

Preferimos considerar que a democracia é um regime político. O que é um regime político? Existem várias definições de regimes políticos, que no entanto, discordamos22. Para nós, um regime político é uma forma de relação do estado com as classes sociais existentes. Portanto, o regime político é a forma como o estado se relaciona com as classes sociais e não apenas com a classe exploradora.

Desta forma, podemos compreender como um regime político pode ser democrático ou ditatorial. O regime político democrático é aquele no qual o estado se relaciona de uma determinada forma com as classes sociais. Mas dizer que a democracia é um regime político (uma de suas formas possíveis) e dizer o que é um regime político não esclarece o que significa a palavra democracia.

A democracia é um regime político onde se permite uma participação restrita das classes sociais e frações de classes na constituição das políticas estatais, sob formas que variam historicamente. O que fica subentendido nesta definição é que a democracia sendo um regime político e, portanto, uma forma de relação do estado (que é o poder coletivo da classe dominante) com as classes sociais, é uma forma de dominação de classe23.

Uma posição próxima a nossa é a apresentada por Costa, pois, para ela, “(...) O que se entende por democracia – uma reunião onde grupos e classes sociais se contrapõem com diferentes objetivos, para viabilizar seus projetos antagônicos de ação política, contraposição da qual sairá vencedor o grupo ou classe que puder transformar seus trunfos e suas posições em regras do jogo, abrindo caminho para a legitimação dos seus objetivos”, não revela o significado da democracia, pois, “ocorre que, quando diferentes participantes do jogo dizem estar pondo em prática os ideais democráticos, não afirmam explicitamente que o que legitimam, sob o nome de democracia, é apenas uma das possíveis formas de regulamentação do jogo e que essa forma é a que melhor lhes permite defender seus interesses e legitimar seus objetivos. Ao afirmarem que a reunião ou partida é democrática, estão dando um caráter geral, universal, ao que é particular, especifico de sua posição e interesses” (Costa, 1986, p. 13-14).

Esta autora aqui se aproxima da concepção marxista segundo a qual a classe dominante (ou uma classe que aspira tomar-se dominante) apresenta seus interesses particulares em interesse universal. E por isso que certos ideólogos afirmam que a democracia, tal como está instituída concretamente em nossa sociedade, é um “valor universal” (Coutinho, 1980; para uma critica desta concepção: Viana, 1991) Porém, existe uma diferença fundamental: a referida autora assume uma posição relativista ao deixar de lado o problema da dominação (e do estado) e assim assume uma postura ideológica, pois confunde a democracia real com a idéia de democracia, sendo que a primeira é marcada pela dominação de classe e pelo poder estatal, enquanto que a segunda é uma idéia que pode se contrapor ao que existe de fato, seja através do ocultamento da realidade, seja através da busca de uma nova realidade.

A forma como o estado se relaciona com as classes sociais pode ser através da repressão pura e simples (a ditadura) ou da participação restrita delas (a democracia). A partir desta concepção de democracia devemos colocar novas questões: o que é uma “participação restrita”? Quais são suas formas históricas?

A participação ocorre quando um indivíduo ou grupo entra em determinadas atividades pré- estabelecidas por outros (Guilllerm & Bourdet, 1976). A participação restrita é uma participação limitada, ou seja, que encontra em seu caminho diversos limites que não pode ultrapassar. No caso concreto aqui colocado, a democracia é um regime político no qual existe uma participação das classes sociais na constituição das políticas estatais (e na elaboração das leis) que possui diversos limites que elas não podem/conseguem ultrapassar.

As formas históricas de democracia são variadas, mas as duas mais famosas são a democracia escravista e a democracia burguesa, sendo que elas também possuem formas ao se desenvolverem historicamente. Muitos estudos foram dedicados à comparação destas duas formas de democracia. Para alguns, a democracia escravista (ou “democracia grega” ou “antiga”, tal como a maioria as denomina para ofuscar seu caráter de classe) é “mais democrática” e, para outros, a democracia burguesa é que possui tal privilégio.

A distinção entre estas duas formas de democracia varia de autor para autor (Finley, 1988; Moore, 1972). Para Stanley Moore, “quando se diz que o povo governa nas democracias das sociedades escravista e capitalista, tanto ‘povo’ como ‘governa’ estão utilizados em forma ambígua. Nas democracias das sociedades escravistas, ‘governa’ significa todo o governo, porém ‘povo’ só uma parte do povo. Nas democracias das sociedades capitalistas, ‘povo’ significa todo o povo, porém ‘governa’ só uma parte do governo” (Moore, 1972, p. 91).

O que este autor quis dizer é que na democracia escravista somente uma parcela da população (do “povo”) pode exercer uma participação restrita na constituição da política estatal enquanto que na democracia burguesa a população inteira participa em tal constituição, só que de forma mais restrita. Em outras palavras, a democracia escravista permitia uma participação menos restrita, mas tal participação atingia apenas parte da população24 enquanto que a democracia burguesa existe uma participação mais restrita, que, no entanto, atinge toda a população.

É por isso que alguns podem considerar a democracia escravista como mais democrática, pois ela é menos restrita (alguns dizem que se tratava de uma “democracia direta” entre os que podiam participar dela, embora outros contestem tal afirmação, outros podem considerar que a democracia burguesa é mais democrática, pois permite a participação de toda a população, ou melhor, quase toda).

Após a nossa definição proposta do conceito de democracia, podemos tratar agora da democracia burguesa em particular. A democracia burguesa é uma das formas como o estado capitalista se relaciona com as classes sociais isto é, é um regime político burguês – caracterizado por uma participação restrita das classes sociais.

Como ocorre concretamente esta participação restrita? Ela se altera com o desenvolvimento histórico e com as lutas de classes, mas possui algumas características fundamentais que persistem sempre que o regime político é democrático, ou seja, enquanto ele não é substituído pelo regime político ditatorial. Esta participação restrita proporcionada pela democracia burguesa se caracteriza pela mediação burocrática entre as classes sociais e o estado que se dissimula como “representação”. Daí ela também ser chamada, devido a esta ideologia da representação, de “democracia representativa”.

A forma como esta participação restrita ou mediação burocrática se realiza varia historicamente. Podemos dizer, em grandes linhas e deixando de lado as diferenças nacionais, que a democracia burguesa se metamorfoseou em três formas principais, a saber: a) A forma democrática censitária (também chamada de “democracia parlamentar” e “estado constitucional”) e “liberal” que vai até meados do século 19; b) A democracia partidária liberal que predominou do final do século 19 até a Segunda Guerra Mundial; c) A democracia partidária burocrática, que se instaurou após a Segunda Guerra Mundial.

Sem dúvida, juntamente com estas formas concretas de democracia burguesa surgiram ideologias visando justificá-las. A democracia burguesa em seu primeiro período pode ser chamada de democracia burguesa censitária. Segundo Duverger, “(...) os juristas, após os filósofos do Século 18, desenvolveram uma teoria da representação, o eleitor dando ao eleito mandato para lidar e agir em seu nome; dessa maneira, o parlamento mandatário da nação exprime a soberania nacional” (Duverger, 1980, p. 387).

Portanto, nasce, junto com a democracia burguesa, a ideologia da representação. Ela não é uma democracia direta onde as pessoas ou grupos se representam mas uma democracia representativa, onde existem os representantes e os representados. Mas nesta época de democracia burguesa censitária os representantes não representam os indivíduos ou grupos que os elegem, mas sim a nação. O parlamento (o conjunto dos eleitos) representa a nação. É por isso que alguns denominam tal forma de democracia como democracia parlamentar. Entretanto, esta idéia de que o parlamento representa a nação é ideológica, pois ele representa, na verdade, os interesses da classe dominante. Isto é comprovado pela própria forma como se desenvolvia o processo eleitoral. Tal como colocou Poggi, “no século 19 e começos do atual, o principal meio usado para excluir da arena política grupos cujos interesses poderiam ser incompatíveis com a manutenção e prosperidade do sistema capitalista era a restrição do sufrágio, sem o direito a voto, tais grupos estavam limitados no exercício de direitos civis que não possuíam significação política direta, ou as formas não constitucionais de dissensão política suscetíveis de serem contidas através da polícia e de outras ações repressivas uma vez escoimados do processo político, por esses métodos, os interesses incompatíveis, as instituições públicas dos interesses contrastantes que eram gerados dentro do quadro das instituições e dos valores burguês- capitalistas, os direitos de votar e de ocupar cargos restringiam-se, pois, a homens que possuíssem bens de (ou) qualificações educacionais” (Poggi, 1981, p. 131).

A transição da democracia burguesa censitária para a democracia burguesa partidária foi lenta e foi produto das lutas sociais: “Por muito tempo, a democracia era tão somente parcial: os governantes eram eleitos por apenas uma parte dos governados, geralmente os mais ricos (sufrágio censitário). Progressivamente, o corpo eleitoral ampliou-se, sob a pressão dos próprios princípios democráticos. Já em 1948, a França suprimia toda condição de fortuna ou de capacidade para a atribuição do direito de voto, muito embora tenha permanecido válida a condição de sexo. Foi no século 19 que o estabelecimento do voto feminino na maioria dos países tornou o sufrágio realmente universal” (Duverger, 1966, p. 18). Alguns destes dados entram em contradição com os de Bottomore: “poderíamos assinalar, em primeiro lugar, a lentidão do avanço da democracia e os numerosos obstáculos e reveses o que encontrou. Nos países que em geral foram considerados como democracias estabelecidas o voto masculino só foi obtido na maioria dos casos entre o final do século 19 e a primeira guerra mundial, enquanto o sufrágio universal (1919, na Alemanha, 1920, na Suécia, 1945, na França e 1948 na Grã-Bretanha), e igual veio ainda mais tarde e na maior parte do resto do mundo o sufrágio universal (onde fui introduzido), só vigorou após o final da segunda guerra mundial” (Bottomore, 1981, p. 21).

A democracia censitária foi gradualmente substituída pela democracia partidária a partir do século 19. O mesmo ocorreu com a ideologia que a justificava: Segundo Macpherson, Jeremy Bentham foi paulatinamente alterando sua concepção de quem deveria participar do processo eleitoral: “numa obra escrita entre 1791 e 1802 ele era a favor de uma franquia limitada, excluindo os trabalhadores, os não instruídos, os dependentes e as mulheres. Em 1809 que defendia uma franquia para chefes de família que tivessem casa própria, limitada aos que pagassem imposto direto sobre propriedade. Em 1817 ele falava de uma franquia ‘virtualmente universal’ excluindo apenas os de menor idade e os analfabetos e possivelmente as mulheres (para dar uma decisiva opinião sobre o que ‘seria inteiramente prematuro neste lugar’); Mas naquela mesma obra ele declarava que embora se tivesse convencido ‘das razões e consistência com as quais, para o bem da união e da concórdia, muitas exclusões deviam ser feitas, pelo menos por certo tempo e para fins de uma experiência tranqüila e paulatina’. Em 1820 ele era a favor da franquia para adultos do sexo masculino; mas mesmo nessa ocasião declarava que com prazer apoiaria a franquia limitada para o chefe da família exceto que não podia ver como isso satisfaria os excluídos, que ‘talvez constituam uma maioria de adultos do sexo masculino’. Assim é que Bentham não se mostrava entusiasmado quanto a uma franquia democrática: foi levado a ela, em parte por sua avaliação do que o povo na época exigiria, e em parte pelas agudas exigências da lógica tão logo dedicou seu espírito às questões constitucionais” (Macpherson, 1978, p. 40).

A democracia partidária foi surgindo gradualmente com a extensão do direito de voto. A luta pela extensão do direito de voto e a ampliação gradual deste direto ocorreu simultaneamente com a formação dos partidos políticos. Na verdade, a classe dominante não permitiria uma extensão do direito de voto sem uma garantia de que esse direito adquirido não pudesse subverter a ordem. Desta forma, o sistema eleitoral expandiu o direito de voto mas, ao mesmo tempo, criou novas instituições “representativas” para realizar uma mediação burocrática entre eleitores e estado. Este papel de mediação burocrática foi atribuído ao sistema partidário. Segundo Duverger, “o fato da eleição, como a doutrina da representação, foram profundamente transformados pelo desenvolvimento dos partidos. Não se trata doravante de um diálogo entre eleitor e eleito, nação e parlamento: um terceiro se introduziu entre eles, que modifica, radicalmente, a natureza de sua relações. Antes de ser escolhido pelos eleitores, o deputado é escolhido pelo partido: os eleitores só fazem participar dessa escolha” (Duverger, 1980, p. 387).

Segundo C. B. Macpherson, o ideólogo liberal John Stuart Mill temia que o sufrágio para todos os adultos masculinos produzisse a predominância da classe trabalhadora nos países mais industrializados, mas Macpherson afirma que isto foi impedido através da atuação do sistema partidário em todas as democracias ocidentais, embora isto tenha ocorrido de forma diferente em diferentes países. Mas em todo lugar o sistema partidário desempenha a mesma função básica: “acho que não é exagero dizer que a principal função do sistema partidário concretamente desempenhada nas democracias ocidentais desde o advento da franquia democrática tem sido a de amenizar o conflito de classes ou, se preferirmos, moderar e conciliar um conflito de interesses de classes de modo a salvar as instituições da propriedade existentes e o sistema de mercado de um ataque eficaz” (Macpherson, 1978, p. 69).

A democracia partidária de meados do século 19 e início do século 20 é, porém, qualitativamente diferente da democracia partidária pós-segunda guerra mundial. A democracia partidária, em sua primeira fase, pode ser chamada de democracia partidária liberal. Sem dúvida, o sistema partidário já existia e era o principal elemento de mediação entre estado e classes sociais (outras instituições, tais como igrejas, associações, sindicatos, etc., também mantém relações com o estado, mas não da mesma natureza que os partidos políticos, cuja ação se volta diretamente para o exercício do poder).

Ocorre que a democracia partidária em sua primeira fase inicia-se quando os partidos políticos foram efetivamente integrados na disputa eleitoral. Eles já cumpriam o papel de amortecer as lutas de classes, inclusive os partidos de “esquerda”, mas eles tinham uma maior margem de liberdade do que atualmente.

Os partidos políticos cumprem o papel de amortecer os conflitos de classes devido ao seu desenvolvimento interno e/ou ao desenvolvimento externo. É claro que um tipo de desenvolvimento está relacionado com o outro e exercem uma influência recíproca. O desenvolvimento interno de um partido político é como evolui sua organização, as ideologias, etc. O desenvolvimento externo é a mudança social no que se refere às lutas sociais, à legislação eleitoral, ao processo de expansão ou crise da acumulação de capital, às alterações da opinião pública, etc.

Os partidos políticos de “esquerda” serviam para amortecer as lutas de classes devido ao caráter crescentemente burocrático de sua organização, do crescimento da burocracia partidária e sindical, e, por conseguinte, do crescimento quantitativo de frações de classe da burocracia, o que provoca uma metamorfose ideológica no partido25. Os partidos de direita faziam isto porque era de interesse da classe capitalista, tanto os partidos de direita quanto os partidos de esquerda reproduziam a ideologia da representação, onde uns diziam representar “o povo”, “a nação”, ou seja, um “falso universal” que ofusca a luta de classes; e outros “os trabalhadores”, isto é, a maioria da população e sua “base eleitoral”, invertendo a realidade, pois representa na verdade os seus interesses próprios de burocracia partidária.

Este era o principal fator que provocava a corrupção e, por conseguinte, a ineficácia (do ponto de vista revolucionário) política dos partidos social-democratas e comunistas. Mas o desenvolvimento externo também reforçava esta situação com a burocratização dos sindicatos, o predomínio da ideologia burguesa, a estabilidade da acumulação de capital até o início do século 20, etc.

Apesar disso, a democracia partidária liberal apresentava determinadas brechas que em momentos de acirramento das lutas de classes possibilitavam o desencadeamento da luta operária contra o estado capitalista. Na Alemanha, por exemplo, ao lado dos partidos reformistas (e surgindo como dissidências deles) surgiam grupos (que também se denominavam partidos) revolucionários, tal como a Liga Espartaquista de Rosa Luxemburgo (Almeida, 1982) e o KAPD — Partido Comunista Operário da Alemanha, dos comunistas conselhistas (Rühle, Korsch, Pannekoek, etc.) (Authier, 1975), que condenava os partidos reformistas e se declarava um não-partido ou que não era um “partido propriamente dito”. A tentativa de revolução alemã surgiu com a intensa colaboração destes grupos. A partir deste momento, tais coletivos revolucionários compreenderam o caráter contra-revolucionário dos partidos políticos em geral (incluindo o social-democracia e o “comunista”, isto é, bolchevique) e passaram a combatê-los.

O caso espanhol é outro exemplo da fragilidade relativa da democracia partidária liberal. A derrota da Frente Nacional (união de partidos de direita) para a Frente Popular (que contava com a União Republicana, a Esquerda Republicana, o Partido Socialista Operário Espanhol, o Partido Comunista Espanhol, o Partido Operário de Unificação Marxista e um pequeno Partido Sindicalista de origem anarquista), provocou uma verdadeira ação de massas que acabou gerando a guerra civil espanhola26.

Por conseguinte, era necessário, para a classe dominante, não permitir que a democracia burguesa possibilitasse o desenvolvimento de ações anti-capitalistas. Após a segunda guerra mundial a burguesia estava fortalecida o suficiente para transformar a democracia partidária liberal em democracia partidária burocrática.

Esta nova fase da democracia burguesa fez dela uma muralha intransponível para qualquer tentativa revolucionária. Isso foi possível graças a três motivos principais, a saber: a) A expansão da acumulação de capital após a Segunda Guerra Mundial e a constituição de um novo regime de acumulação; b) O intervencionismo estatal e a reorganização legal da democracia burguesa; e) O processo de crescente burocratização e mercantilização das relações sociais.

A relação entre expansão da acumulação de capital (ou, segundo a ideologia dominante, o “desenvolvimento econômico”) e estabilidade da democracia burguesa é amplamente reconhecida27. Segundo A. Wolfe, “na longa onda posterior à segunda guerra mundial ocorreu um número de transformações estruturais no modo de produção capitalista que teriam conseqüências nocivas para a democracia. No entanto, durante um período considerável de tempo, estas características se mantiveram ocultas atrás da prosperidade substancial gerada pela onda” (Wolfe, 1980, p. 19).

Após a segunda guerra mundial ocorreram mudanças no modo de produção capitalista que, sem dúvida, tornaram a democracia burguesa ainda mais conservadora do que antes, diminuindo ainda a participação já extremamente restrita das classes exploradas. Ocorre, porém, que consideramos, ao contrário de Wolfe, que estas mudanças tem como elemento fundamental a própria expansão da acumulação capitalista com suas características e conseqüências, produzidas pela mudança no regime de acumulação.

Esta expansão da acumulação capitalista ocorreu graças à destruição em massa das forças produtivas durante a segunda guerra mundial e pela transferência de mais-valor dos países capitalistas subordinados para os países capitalistas superdesenvolvidos. Tal expansão também permitiu uma rápida invasão da produção capitalista em setores dominados pela produção não-capitalista e provocou outros efeitos que afetaram indiretamente a democracia burguesa, tal como colocaremos mais adiante.

Desta forma, torna-se possível a melhoria do nível de renda da população, a diminuição do desemprego, etc., e, conseqüentemente, a legitimação do estado capitalista. A expansão da acumulação capitalista nos países superdesenvolvidos provoca, então, o chamado “estado de bem estar social” e os problemas políticos tomam-se, de acordo com a ideologia dominante, problemas técnicos (Habermas, 1988).

O intervencionismo estatal (também chamado de keynesianismo) e a reorganização legal da democracia burguesa também serviram para impedir o surgimento de qualquer brecha revolucionária no seu interior. Mas o intervencionismo estatal a que nos referimos não se limita apenas à intervenção na esfera da produção mas também nas instituições sociais, na esfera jurídica, etc. O estado capitalista, após a segunda guerra mundial, passou a intervir de forma muito mais ampla não só através da expansão das instituições estatais (escolas, hospitais, meios de comunicação, universidades, etc.) como também através de sua interferência nas instituições privadas (através de relações jurídicas, convênios, dotação de recursos, etc.) e com isto exerceria um maior controle sobre a sociedade e incentivaria o seu processo de burocratização. Este estado onipresente reforça a hegemonia burguesa e dificulta o aparecimento de qualquer movimento revolucionário em grandes proporções, o que contribui com a estabilidade da democracia burguesa.

A reorganização legal da democracia burguesa é outro elemento que restringe mais ainda a participação das classes exploradas nos processos políticos institucionais. Esta reorganização constitui na elaboração de um conjunto de leis, que varia de país para país, que buscam regularizar o processo eleitoral e o sistema partidário de tal forma que fica cada vez mais difícil a participação das classes exploradas e de grupos revolucionários na democracia burguesa.

Segundo Geoffrey Barraclough, “com efeito, só na última geração — na maioria dos casos, depois de terminar a segunda guerra mundial — é que os partidos políticos escaparam do limbo de órgão extra-constitucionais ou convencionais, sem lugar legalmente definido no sistema de governo, e foram explicitamente admitidos no mecanismo constitucional, na Inglaterra, a mudança foi registrada pelos ministers of the crown act de 1937, os quais, ao estabelecer a posição oficial do líder da oposição, implicitamente reconheceram e sancionaram o sistema de partidos. Na Alemanha, a carta fundamental da República Federal — ao invés da constituição de Weimar, que adotava ainda uma atitude ambivalente em relação ao sistema de partidos — tratou estes como elementos integrais da estrutura constitucional (art. 21), ao passo que a constituição de Berlim menciona, especificamente, as tarefas que competem aos partidos, segundo a lei constitucional (art. 27). Cláusulas semelhantes foram incorporadas nas constituições de certos alemães — por exemplo, Baden (Art. 120) — na constituição italiana do pós-guerra (Art. 49) e na constituição brasileira de 1946 (Art. 141)” (Barraclough, 1983, p. 125-126).

Assim, novas leis passaram a regularizar a participação na democracia burguesa, dificultando até mesmo a participação das classes auxiliares da burguesia, o que gerou o protesto dos partidos reformistas (“socialistas” e “comunistas”)28. No caso do Brasil, um país continental e dividido em diversos e distantes Estados, a legislação eleitoral exige que os partidos estejam organizados em um número mínimo de Estados, que tenham um número mínimo de filiados, que só os partidos que possuem um certo número de deputados eleitos que pode ter acesso à propaganda eleitoral gratuita e o número de deputados delimita o tempo de cada partido, que os candidatos precisam ter uma idade mínima para concorrer aos cargos mais importantes, tal como os candidatos a prefeito, governador e presidente. Sendo que no caso deste último é preciso ter no mínimo 36 anos (o que é totalmente contrário ao princípio de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de credo religioso, ideologia política, sexo, raça e idade...”).

Um outro aspecto contribui para a formação da democracia partidária burocrática: o processo crescente de burocratização e mercantilização das relações sociais. Este processo nasce com o surgimento do próprio modo de produção capitalista, mas ele assume uma nova fase de desenvolvimento extensivo e intensivo após a segunda guerra mundial. Este processo de burocratização foi acompanhado por um amplo processo de mercantilização das relações sociais, com a invasão capitalista do cotidiano, transformando tudo em forma-mercadoria, tal como os serviços, o lazer, etc. e ampliando a produção de bens de consumo, sendo que estes dois processos (burocratização e mercantilização) são simultâneos e complementares (Viana, 2002a). Como colocamos anteriormente, a expansão da acumulação capitalista e o intervencionismo estatal contribuíram com este processo. Tal processo provoca o fortalecimento da burocracia enquanto classe social e enfraquece o movimento operário nas instituições da sociedade civil. Tal processo também reforça a hegemonia burguesa ao fortalecer a sociabilidade capitalista e criar uma verdadeira mentalidade burguesa que atinge até mesmo as classes exploradas.

Portanto, temos a partir do pós-guerra a transformação da democracia burguesa de democracia partidária liberal para democracia partidária burocrática. A democracia censitária já era “liberal”, mas a democracia partidária em sua primeira fase deixa de ser censitária e produz os partidos políticos como mediadores da participação restrita das classes sociais, mas mantendo alguns elementos da época em que predominava na prática a ideologia liberal. A nova transformação significa a superação do liberalismo político e o surgimento de novas formas de participação, marcadas por um amplo processo de burocratização. Ou seja, aqui temos a permanência da democracia partidária, mas sob nova forma, agora burocrática. Esta transformação da realidade ocorreu juntamente com uma transformação na esfera ideológica. Segundo Macpherson o grande ideólogo desta forma de democracia foi o economista Joseph Schumpeter, que subsumiu a democracia numa visão mercantil e elitista (diríamos que esta ideologia também é um produto do processo de burocratização e mercantilização das relações sociais). Segundo Macpherson: “A democracia é tão-somente um mecanismo de mercado; os votantes são os consumidores: os políticos são os empresários. Não surpreende que o homem que primeiramente propôs esse modelo fosse um economista que passou toda a sua vida profissional elaborando modelos de mercado. Não surpreende que os teóricos (e depois os publicistas e o público) tomassem esse modelo como realista, porque também eles viveram e trabalharam numa sociedade impregnada de conduta mercantil. Não apenas o modelo do mercado parece corresponder, e portanto explicar, ao verdadeiro comportamento político das principais partes componentes do sistema político — os votantes e os partidos; ele parece também justificar aquela conduta, e daí todo o sistema” (Macpherson, 1978, p. 82-83).

Isto gera, segundo Macpherson, o oligopólio dos partidos, onde as elites apresentarão programas políticos que cabe ao eleitor-consumidor escolher dentre eles e cada partido político irá utilizar os recursos da propaganda política, inspirada na propaganda comercial, para apresentar seu programa, ou seja “mercadoria”, ao eleitor-consumidor. Outras características da democracia burguesa nesta sua terceira fase são colocadas pela ideologia schumpeteriana e são discutidas por Macpherson, mas deixaremos de lado a ideologia da democracia partidária burocrática para tratar da sua realidade concreta.

Lembrando que a democracia burguesa é uma forma pela qual o estado capitalista se relaciona com as classes sociais, devemos então entender o que significa a expressão ditadura. A ditadura também é uma forma de relação do estado capitalista com as classes sociais. O que diferencia ditadura e democracia é a forma como o estado capitalista se relaciona com as classes sociais. A democracia se caracteriza pela participação restrita das classes sociais na constituição do poder estatal enquanto que a ditadura se caracteriza pela participação restrita apenas do bloco dominante.

Na democracia burguesa, a participação restrita se dá principalmente das regras jurídicas que regularizam tal participação (legislação eleitoral, civil, etc.). O estado capitalista busca garantir sua legitimidade através principalmente da ideologia. E permite certas concessões visando impedir um descontentamento popular de grande envergadura.

Na ditadura burguesa, a participação restrita do bloco dominante é feita de acordos que buscam satisfazer, na medida do possível, os interesses da classe e frações de classes para evitar um conflito interno. Ao restringir a participação apenas ao bloco dominante, o estado capitalista acaba tendo que manter um novo tipo de relação com as classes e frações de classes excluídas dela. A principal forma encontrada para se efetivar isto é a repressão. Esta repressão atinge os meios de comunicação de massa (censura), o controle policial da sociedade impedindo a organização e/ou ação de grupos e partidos contrários ao poder instituído, etc.

Daí se deriva diversas diferenças, mas destacaremos apenas duas: para haver participação restrita das classes sociais e sustentar a ideologia que busca legitimar o estado capitalista, o regime democrático-burguês deve permitir uma ampla “liberdade civil” e também uma autonomia relativa dos “três poderes” (executivo, legislativo e judiciário). Entretanto, o regime democrático-burguês não se sustenta apenas com base na participação restrita, na legalidade burguesa e na ideologia dominante, mas também através de outros recursos secundários, tais como a cooptação dos dissidentes, a corrupção dos movimentos sociais, a repressão, nesse caso, é usada principalmente (mas não unicamente) contra aqueles que rompem com a legalidade burguesa.

A ditadura burguesa, por sua vez, para manter sua dominação arbitrária e a exclusão de grande parte da população de participação na política institucional, deve garantir o seu domínio sobre a elaboração da legislação e chamar para si parte (ou totalidade) do direito de julgar, entrando assim nos domínios do poder legislativo e judiciário, abolindo a autonomia relativa dos três poderes29. Também a ditadura burguesa utiliza recursos secundários, pois o uso exclusivo da força tende a aumentar o descontentamento e diminuir a legitimidade do estado capitalista. Tais recursos são, entre outros, a ideologia (seja a da segurança nacional ou qualquer outra) e a cooptação.

A forma como a democracia burguesa realiza a cooptação é diferente da forma que a ditadura burguesa faz. A cooptação realizada pela ditadura burguesa é feita através da troca entre benefícios (um cargo público, por exemplo) e lealdade ao regime ditatorial, enquanto que a cooptação feita pela democracia burguesa é efetuada através da integração nas instituições estatais ou nas instituições privadas ligadas ao regime democrático (partidos, por exemplo), o que provoca a lealdade para com o regime.

Para a classe dominante, a alternativa entre democracia e ditadura envolve uma diversidade de questões. Em primeiro lugar, existem frações da classe dominante e das classes auxiliares que são permanentemente a favor da democracia ou da ditadura. Podemos citar, no primeiro caso, os setores ligados à indústria eleitoral, à burocracia partidária dos partidos social-democratas, comunistas, etc. No segundo caso, podemos citar o caso de latifundiários, a burocracia militar, etc.

Em segundo lugar, existem forças políticas que são permanentemente favoráveis à ditadura (fascismo, por exemplo) e outras à democracia (social-democracia, por exemplo). Em terceiro lugar, tal alternativa varia em cada país, de acordo com sua posição na hierarquia do capitalismo mundial e se suas características próprias (cultural, desenvolvimento das lutas de classes, etc.).

Geralmente, a classe dominante não tem nenhuma preferência pela democracia ou pela ditadura, embora a predominância histórica tem sido da primeira, pelo menos em alguns países (EUA, Europa Ocidental). Para alguns, a democracia burguesa é a forma política mais apropriada ao capitalismo30. No entanto, o que interessa para a classe dominante (e, por extensão, “ao capitalismo”) é a manutenção de sua dominação sob qualquer forma.

O que faz a burguesia alterar o regime político (de democrático para ditatorial, ou vice-versa), é a dinâmica das lutas de classes. A crise da hegemonia burguesa no regime democrático sempre leva a classe capitalista a se refugiar na ditadura. Quando a luta das classes exploradas contra o regime ditatorial ameaça ultrapassar o próprio estado capitalista, ela não hesita em realizar a redemocratização burguesa.

A crise da hegemonia burguesa ocorre em períodos marcados por uma série de acontecimentos, onde se destaca a instabilidade da acumulação capitalista, que gera a busca de aumento de exploração, desemprego, etc., a crise de legitimidade do estado capitalista, devido a corrupção, arbitrariedade, etc., a ascensão do movimento operário e dos demais movimentos sociais, etc. É de se notar que nos países capitalistas imperialistas a democracia burguesa é mais estável justamente pelo motivo de que estes países, devido a exploração imperialista e tudo que decorre dela, conseguem manter uma maior estabilidade social, o que não ocorre nos países capitalistas subordinados, que revezam constantemente democracia e ditadura.

A democracia e a ditadura burguesas emergiram historicamente com o desenvolvimento das lutas de classes. O surgimento do regime democrático-burguês ocorreu através de avanços e recuos, onde a burguesia buscava instaurar sua dominação de classe. A burguesia buscava implantar sua dominação e para isso precisava do apoio de outras classes e frações de classes, especialmente as classes exploradas, objetivando combater a nobreza. Ao conquistar o poder político, a burguesia passa a temer cada vez mais as classes exploradas e começa a restringir a participação das classes sociais na política institucional recém criada. A aliança com a nobreza torna-se uma tentativa de fortalecimento contra as classes exploradas. Tal foi o que aconteceu na revolução francesa, o melhor exemplo de revolução burguesa.

A partir da revolução francesa instaura-se democracia burguesa sob a forma de democracia censitária31. A luta de classes na França demonstra claramente que a burguesia queria instaurar uma dominação irrestrita sobre as demais classes sociais e foi somente a emergência de outras classes sociais que fez com que ela fizesse concessões para manter sua dominação. A democracia burguesa nasceu e se desenvolveu como resultado da luta de classes mas tal desenvolvimento marcou a continuação da dominação burguesa, independentemente das formas que assumiu historicamente.

Desta forma, não tem o menor sentido dizer que a democracia burguesa foi uma conquista da classe operária. Dizer que “o sufrágio universal, uma medida essencial para tornar viável a efetivação daquele princípio igualitário no plano formal, só foi conquistado na maioria dos países desenvolvidos

— e graças às lutas da classe operária — em final do século 19 ou início do 20” (Coutinho, 1980, p. 26), significa dizer nada, pois a sociedade burguesa como um todo é produto da luta de classes (e, por conseguinte, da luta operária), só que com o predomínio da burguesia. A ditadura burguesa também surgiu graças à luta operária (se ela ficasse passiva não haveria motivo para a burguesia substituir a democracia pela ditadura) e, sendo assim, ela também seria um “valor universal”?

Na verdade, a democracia burguesa é um “valor universal” apenas para os setores da sociedade ligados intimamente a ela (a burocracia partidária dos partidos social-democratas, por exemplo), pois a burguesia não pensa duas vezes para ultrapassá-la e substituí-la pela ditadura e o proletariado, sempre que realizou uma ofensiva de classe, a desprezou por ela ser incompatível com o seu modo de produção e por este se caracterizar pela abolição do estado e das classes sociais (e, por conseguinte, na forma de relação entre ambos) e da dicotomia entre “economia” e “política”, instaurando a autogestão social.

Os ideólogos da democracia burguesa como valor universal se “esquecem” que existe uma diferença radical entre os modos de produção e, por conseguinte, em suas formas de regularização. O modo de produção feudal é radicalmente distinto do modo de produção capitalista, e, por conseguinte, também é radicalmente distinto sua forma de estado, sua mentalidade, sua sociabilidade. E estas diferenças radicais se encontram entre dois modos de produção classistas, e isto significa que existem aspectos comuns (existe a luta de classes, a dominação de classe, o estado, a ideologia, etc., só que sob formas radicalmente diferentes). Tais diferenças se tornam ainda maiores quando se compara um modo de produção classista com um modo de produção não classista (onde não existe classes e lutas de classes, estado, ideologia, democracia, etc.). Por conseguinte, a democracia burguesa é um regime político do estado capitalista e derivada do modo de produção capitalista e não pode ser vista de forma isolada do conjunto das relações sociais que lhe dão origem e consistência, pois isto seria uma abstração metafísica.

É preciso reconhecer a historicidade da democracia burguesa (e o seu caráter dependente da historicidade da sociedade em geral) e, portanto, ela não é um valor universal e sim um valor burguês defendido por setores da sociedade que tem interesse em sua permanência.

A idéia de que a democracia burguesa é um valor estratégico e permanente para a realização do socialismo é outra ideologia reformista e burguesa. A luta operária pela autogestão social ocorre tanto num regime político ditatorial quanto num regime político democrático. Sem dúvida, isto ocorre sob formas diferentes. No regime democrático-burguês existe uma maior liberdade para divulgação de idéias, de reunião, etc. Mas sempre com inúmeras limitações (para as classes exploradas, tais liberdades são restringidas por suas condições financeiras e para os grupos revolucionários isto também vale, em menor grau, mas para eles existem outras limitações: as legais, que não permitem determinados excessos). Esta maior “liberdade” no regime democrático-burguês é acompanhada pela corrupção de grupos políticos e indivíduos das classes exploradas, através tanto da participação na própria democracia burguesa quando na sua integração em instituições burguesas.

No regime ditatorial-burguês não se pode contar com as liberdades civis e políticas e nem com garantias jurídico-legais. Porém, a cooptação e corrupção dos grupos políticos e dos movimentos sociais é menor. Isto, por sua vez, permite uma maior autonomia das classes exploradas.

Desta forma, observamos que tanto o regime democrático quanto o regime ditatorial oferecem vantagens e desvantagens para o movimento revolucionário. Qual dos dois regimes é mais estratégico para a luta operária? Do ponto de vista histórico, as principais tentativas de revolução proletária ocorreram sob ambos os regimes. Tomando a tentativa de revolução proletária na Rússia, na Polônia na década de 80, entre outras, veremos que elas se desencadearam sob o regime ditatorial. Se observarmos o caso da guerra civil espanhola em 36, a tentativa de revolução alemã no inicio do século, veremos que elas se concretizam sob regime democrático. Isto significa que a revolução proletária pode ocorrer sob qualquer um destes dois regimes. Em ambos há também a possibilidade de contra-revolução.

Isto quer dizer que do ponto de vista do movimento revolucionário é indiferente qual dos dois regimes políticos burgueses é predominante? A resposta é negativa, pois é preferível o regime democrático-burguês. A revolução proletária sob regimes ditatoriais possui uma grande desvantagem que é a reprodução do autoritarismo do regime em setores do movimento oposicionista (e não somente o revolucionário), tal como se vê no partido Bolchevique na Rússia, que era uma cópia da autocracia czarista. Além disso, sob o regime democrático-burguês é possível iniciar um processo de revolução cultural em alguns espaços no interior da sociedade burguesa (graças à ausência “relativa” de censura, à círculos e grupos que se formam visando uma ação anti-capitalista, à espaços nos movimentos sociais e entidades de base, etc.). Além disso, o regime ditatorial é marcado por uma forte repressão marcada por arbitrariedade e excesso de perseguição.

Estes motivos deixam entrever que é mais vantajoso para o movimento revolucionário lutar sob o regime democrático-burguês. Entretanto, isto não deve nos iludir e fazer com que pensemos que a democracia burguesa é “um valor estratégico e permanente”. A democracia burguesa é apenas um pouco mais favorável e por isso mais desejável para a efetivação da luta revolucionária.

Isto significa que a outra idéia que acompanha a ideologia da democracia burguesa como valor universal – a de que a democracia burguesa (“representativa”) deve continuar existindo no socialismo juntamente com a “democracia direta” dos conselhos operários — também é falsa. Este é o caso de Coutinho, que, retomando Max Adler e outros reformistas, sustenta a tese de que é possível uma “dualidade de poderes” num regime socialista, onde haveria, de um lado, a democracia representativa, de outro, a democracia direta. Ele, utilizando a estratégia gramsciana de “conquistar os intelectuais tradicionais”, busca apoio em diversos autores (Adler, Kaustky, Togliatti, Poulantzas, Gramsci, etc.) e às vezes até colocando na boca deles afirmações categóricas que, na verdade, não passam de dúvidas. Veja o exemplo de Agnes Heller: “igualmente no quadro de uma concepção processual” da revolução, Agnes Heller defende explicitamente a atualidade do ‘duplo poder’: “segundo penso, o ‘duplo poder’ é um ótimo ponto de partida para a transformação socialista. Pensemos, por exemplo, como seria positivo, na Europa de hoje, um sistema de duplo poder, no qual – ao lado da direção parlamentar – atuasse concretamente um sistema de conselhos populares” (Coutinho, 1985, p. 73). Lendo tal trecho podemos supor que Heller concebia o “duplo poder” como a forma de governo em um regime socialista. Mas vejamos o que ela diz: “segundo penso, o ‘duplo poder’ é um ótimo ponto de partida para a transformação socialista, pensemos, por exemplo, como seria positivo, na Europa de hoje o sistema de duplo poder, no qual — ao lado da direção parlamentar — atuasse concretamente um sistema de conselhos populares. Não sei que conseqüências essa revolução teria se não fosse a irrupção de outubro, não é possível saber” (Heller, 1982, p. 72). Assim observamos que Heller diz que o “duplo poder” é um ótimo “ponto de partida”, para a “transformação socialista”, tal como a revolução de fevereiro na Rússia, cujas conseqüências, caso não houvesse a contra-revolução bolchevique, seriam imprevisíveis. Por conseguinte, não há nenhuma defesa do duplo poder como algo que fizesse parte de uma sociedade socialista.

A sociedade socialista é uma sociedade autogerida e, por conseguinte, não há nenhum sentido em falar em democracia, seja direta, representativa ou ambas, pois nesta sociedade há a abolição do estado e das classes sociais, e, por conseguinte, dos regimes políticos, incluindo o democrático em suas diversas formas. Autogestão não é sinônimo de “democracia direta” e ela é antagônica a toda forma de democracia – tal como foi definida aqui – e é uma relação social que se generaliza em toda sociedade, abolindo toda e qualquer necessidade de processo eleitoral tal como praticado na democracia burguesa.

A democracia burguesa contemporânea se fundamenta em alguns elementos básicos que são: A) o domínio do direito; B) a separação dos “três poderes”; C) o sistema eleitoral; D) o sistema partidário. Todos estes elementos tendem a reforçar o caráter burguês e/ou burocrático da democracia moderna.

O domínio do direito, como já foi colocado, significa o predomínio da lei e, portanto, da igualdade formal dos cidadãos frente ao estado. A ideologia dominante chama isso de “estado de direito”. Porém, não devemos nos iludir com este “predomínio de lei”, pois existem muitas formas de burlá-la e os poderosos sempre o fizeram. De qualquer forma, o direito é uma das formas de regularização das relações sociais sob o capitalismo, tanto pela legislação que cria e que é indiscutivelmente burguesa quanto pela legitimação que ela fornece ao estado e ao conjunto das relações sociais (incluindo as relações de produção), já que a lei é uma regra geral que se aplica a todos os indivíduos.

Este direito, ou melhor, o conjunto das leis existentes, é produzido pelo estado, sendo que no regime democrático-burguês isto é feito via, principalmente, o parlamento (poder legislativo). Além disso, uma parte destas leis visa regularizar a própria democracia burguesa (legislação eleitoral, partidária, etc). As leis produzidas pelo parlamento refletem os interesses da classe dominante e, em alguns casos, das suas classes auxiliares. As leis que regularizam a democracia burguesa não fogem a esta regra, tal como veremos mais adiante quando formos tratar do sistema eleitoral e do sistema partidário.

A separação dos três poderes, por sua vez, cumpre o papel de dificultar qualquer colaboração com a transformação social através do processo eleitoral. Através do processo eleitoral se elege aqueles que vão assumir o poder executivo e o poder legislativo. Isto quer dizer que o poder judiciário, que cumpre o papel de fiscalizar e julgar as infrações à lei, não é acessível a qualquer cidadão que tenha o direito (e as condições, como veremos a seguir) de se candidatar a qualquer “cargo público”. A forma de recrutamento dos integrantes do poder judiciário, na maioria dos casos, é através de concurso público (o sistema de exame, qualificado por Marx como “batismo burocrático do saber”), o que impede que aqueles que discordam da ideologia do poder judiciário sejam aprovados. Além disso, o concorrente precisa ter um currículo que lhe permita participar do concurso, tal como possuir o diploma do curso de direito, o que lhe garante quatro ou cinco anos de doutrinação, além de todo o processo requerido para o acesso, permanência, conclusão, etc.

O poder legislativo, por sua vez, possui uma autonomia bastante restrita. Esta restrição vem, em primeiro lugar, do próprio regimento interno do parlamento. Além disso, a existência de uma Constituição Federal que só pode ser alterada através de uma maioria esmagadora (isto varia de acordo com o país e a época, mas geralmente gira em tomo de dois terços, ou seja, 66% dos votos), cria inúmeras limitações a qualquer tentativa de alterar radicalmente o sistema de leis. O poder executivo também interfere no poder legislativo, seja enviando projetos de lei, seja recusando aprovar certas leis (pois, geralmente, todas as leis aprovadas no parlamento devem receber a anuência do presidente). Por fim, os indivíduos que compõem o parlamento são escolhidos através da via eleitoral e por isso (como colocaremos a seguir) são provenientes maciçamente da classe dominante e de suas classes auxiliares, o que reforça o seu caráter conservador.

O poder executivo que é eleito pelo voto da população não é todo o estado capitalista, mas apenas parte dele. Na verdade o governo é uma pequena parte do estado capitalista, que é composto ainda pelas forças armadas, pela burocracia do aparato do estado e pelas instituições estatais, etc. Por conseguinte, o governo também sofre diversas limitações para desenvolver suas atividades (a legislação em vigor, a burocracia permanente no estado, etc). Além disso, não é de seu interesse criar confrontos, pois o governo eleito geralmente representa a classe dominante, ou, em alguns casos, as suas classes auxiliares, e para se manter no poder precisa não só do apoio das classes privilegiadas como também necessita da estabilidade financeira e social.

O sistema eleitoral, tal como instituído pela lei, cria inúmeros obstáculos para a participação das classes exploradas e subalternas. Em primeiro lugar, ele impõe aos indivíduos que pretendem se candidatar determinadas exigências (isto também varia de acordo com o país e a época, tais como referentes à nível de renda escolarização, idade, filiação partidária, etc) que beneficiam os membros da classe dominante e de suas classes auxiliares. Em segundo lugar, determinadas formas de voto e de contagem deles beneficiam uns partidos e prejudicam outros. Além destes, poderíamos acrescentar diversos outros obstáculos que o sistema eleitoral cria para a participação das classes exploradas e das classes subalternas na democracia burguesa.

Mas o sistema eleitoral consolida este papel conservador quando institui o sistema partidário. Tal sistema impõe limites legais à formação de partidos, exigindo uma certa forma de organização, número mínimo de filiados e candidatos às eleições, etc. Todas essas exigências servem para reforçar o processo de burocratização dos partidos e, conseqüentemente, o processo de corrupção dos partidos que possuem no seu interior uma quantidade grande de membros provenientes das classes exploradas e das classes subalternas.

Por fim, observamos os limites legais que a democracia burguesa cria para a participação das classes sociais (que atinge principalmente as classes exploradas e subalternas). Mas além destes limites legais existem outros obstáculos que são produzidos pela própria essência da sociedade capitalista. O conjunto das chamadas “liberdades democráticas” são menos acessíveis às classes exploradas e subalternas. A sociabilidade capitalista e a mentalidade burguesa, juntamente com o sistema partidário, corrompem indivíduos e até mesmo grupos inteiros32.

Desta forma, observamos que a democracia moderna é uma forma de dominação burguesa e, assim como o estado capitalista, deve ser destruída e substituída pela autogestão.



A Face Oculta da Cidadania



O desenvolvimento do estado capitalista e da democracia burguesa foi, principalmente a partir do século 18, acompanhado pelo desenvolvimento da cidadania. A compreensão das mudanças na política institucional passa pela necessidade de compreender o processo de desenvolvimento da cidadania e das ideologias que se inspiram nela.

O que é a cidadania? Sem dúvida poderíamos retomar a concepção grega de cidadania, mas isto seria muito pouco útil tendo em vista as enormes diferenças tanto em relação à idéia quanto em relação à realidade que ela busca expressar. Ao contrário do estado e da democracia, o significado desta expressão não é muito polêmico. Desde a declaração dos direitos e deveres do homem e do cidadão, o cidadão é um indivíduo portador de determinados direitos e deveres. Conseqüentemente, a cidadania é o reconhecimento destes direitos, mas um reconhecimento de fato, ou seja, a cidadania é a concretização destes direitos e deveres1.

Quais são estes direitos? Hoje se concorda que estes direitos são os direitos civis, políticos e sociais. Os direitos civis são aqueles referentes à liberdade individual, tal como a liberdade de ir e vir, de imprensa, de pensamento, etc.; os direitos políticos são aqueles referentes ao direito de votar e ser votado, entre outros; os direitos sociais são aqueles referentes ao bem estar físico e mental, tal como o direito à saúde, educação, habitação, etc. Os deveres são os deveres para com o estado: pagar impostos, votar, etc.

A cidadania é um privilégio de quem tem concretizado estes direitos e deveres. Entretanto, tal como observou T. H. Marshall, a cidadania é uma instituição em desenvolvimento e, portanto, transformou-se com o processo histórico (Marshall, 1967; Barbalet, 1989). Segundo Marshall, “quando os três elementos (civil, político e social) da cidadania se distanciam uns dos outros, logo passaram a parecer elementos estranhos entre si. O divórcio entre eles era tão completo que é possível, sem destorcer os fatos históricos, atribuir o período de formação da vida de cada um, a um século diferente – os direitos civis ao século XVIII, os políticos ao XIX e os sociais ao XX. Estes períodos, é evidente, devem ser tratados com uma elasticidade razoável, e há algum entrelaçamento, especialmente entre os dois últimos” (Marshall, 1967, p. 66).

Desta forma, a cidadania se desenvolveu e atingiu o seu ápice no século 20, com a conquista dos direitos sociais. Neste momento se unifica os três direitos e os deveres do cidadão e surge a cidadania plena. Porém, isto não ocorre da mesma forma em todos os países, pois tal acontecimento ocorre na Europa Ocidental e em mais alguns poucos países.

Porém, parece que existe algo oculto por detrás desta aparente “inocência” política da cidadania. Será que cidadania significa somente isto? Não existirá um lado oculto da cidadania que é omitido pela ideologia dominante? A nosso ver sim, e o primeiro ponto que encontramos é a relação entre cidadania e estado.

O cidadão é um ser abstrato criado pelo direito. Se a lei diz que “todos os homens são iguais perante a lei”, a realidade diz: “os seres humanos são desiguais perante a sociedade”, devido à divisão social do trabalho. A desigualdade real existente entre os homens é substituída por uma fictícia igualdade, “perante a lei”. Uma vez que a lei é igual para todos, pressupõe-se que existe uma igualdade jurídica entre os homens. Porém, esta igualdade jurídica é fictícia e isto ocorre porque existe uma desigualdade de fato que corrói esta igualdade fictícia. O indivíduo burguês pode usufruir de seu direito de liberdade, pensamento, expressão, reunião, etc., pelo simples motivo que ele possui as condições materiais para efetivar tais direitos. Qualquer disputa jurídica entre um burguês e um proletário, que são “iguais perante a lei”, tende a ser resolvida em favor do primeiro, pois eles são “desiguais perante a realidade”. O primeiro conta com o poder do dinheiro e isto quer dizer os melhores advogados, as melhores provas, a melhor imagem, etc.

Desta forma observamos que o aparato jurídico do estado Capitalista anuncia a igualdade fictícia dos indivíduos perante a lei (o que significa, no final das contas, perante ao próprio estado). Tal como colocou Marx, “o Estado anula, a seu modo, as diferenças de nascimento, de status social, de cultura e de ocupação, ao declarar o nascimento, o status social, a cultura e a ocupação do homem como diferença não políticas, ao proclamar todo membro do povo, sem atender a estas diferenças, coparticipante da soberania popular em base de igualdade, ao abordar todos os elementos da vida real do povo do ponto de vista do Estado. Contudo, o Estado deixa que a propriedade privada, a cultura e a ocupação atuem ao seu modo, isto é, como propriedade privada, como cultura e como ocupação, e façam valer sua natureza especial. Longe de acabar com estas diferenças de fato, o Estado só existe sobre tais premissas, só se sente como Estado político e só faz valer sua generalidade e contraposição a estes elementos seus” (Marx, 1980, p. 25).

Marx coloca que o cidadão só é cidadão perante o estado. É o estado que, ao declarar os direitos do cidadão, lhe concede a cidadania. “Já se demonstrou como o reconhecimento dos direitos humanos pelo estado moderno tem o mesmo sentido que o reconhecimento da escravidão pelo Estado antigo” (Marx, 1980, p. 93).

O cidadão do estado capitalista é o indivíduo portador dos direitos burgueses, separados entre os direitos civis e os direitos políticos. Os direitos civis são os direitos próprios do indivíduo burguês (o direito à propriedade é o exemplo mais típico) e do indivíduo proletário submetido ao indivíduo burguês (o direito de ir e vir é uma necessidade do capital para que ele possa explorar a força de trabalho). Os direitos políticos são os direitos do indivíduo frente ao estado, o que torna este legítimo, bem como sua ficção da igualdade jurídica.

O cidadão, enfim, é um indivíduo que cumpre com seus deveres e direitos, ou seja, é aquele que respeita a propriedade privada, a liberdade de imprensa, etc., paga os impostos, legitima o estado capitalista reconhecendo o processo eleitoral, etc. O cidadão é o indivíduo conservador, o indivíduo que aceita o mundo existente, ou seja, a sociedade burguesa (modo de produção capitalista e formas de regularização não-estatais) e o estado capitalista. A cidadania, por conseguinte, é a concretização dos direitos do cidadão, e, portanto, significa a integração do indivíduo na sociedade burguesa por intermédio do estado.

Por isso talvez seja interessante retomar o desenvolvimento histórico da cidadania desde o surgimento da sociedade burguesa. O movimento do capital comercial engendrou o predomínio do capital industrial e este se consolidou e transformou em uma nova força dominante. Este processo gerou a necessidade do mercado livre, que se manifesta através da instituição do trabalhador juridicamente livre e da propriedade privada burguesa, ao lado da instituição de um mercado consumidor e um mercado distribuidor igualmente livres. Desta forma, os chamados direitos civis (liberdade de ir e vir, de propriedade, etc.) são conseqüências naturais da emergência da civilização burguesa2.

Trata-se de um período marcado pela formação das classes sociais fundamentais do modo de produção capitalista e que se consolida com a ascensão da burguesia ao poder político. Para efetivar esta ascensão da burguesia tinha que apresentar seus interesses particulares como sendo interesse universal de todas as classes sociais opostas à antiga classe dominante (a classe feudal) e se dizer representante geral da sociedade (cf. Marx, 1978). A burguesia fala em nome do terceiro estado e consegue unificar este a seu redor. Isto quer dizer que a burguesia apresenta seus interesses particulares como interesse geral da sociedade, mas isto é apenas uma ideologia (sistematização de uma falsa consciência), e não uma realidade e por isto não tem o menor sentido se dizer hoje que a burguesia carregava em si “valores” ou “idéias universais”, tal como alguns colocaram.

Os direitos políticos, em sua forma limitada tal como se apresenta na democracia burguesa censitária, são conseqüências naturais da implantação da dominação burguesa. Surge o estado capitalista moderno e com ele os direitos políticos que lhes são correspondentes. A expansão dos direitos políticos (a passagem para a democracia burguesa partidária) revela simplesmente a emergência do proletariado e de sua luta contra a sociedade burguesa e a tentativa do estado capitalista em integrar tal classe social e assim amortecer a luta de classes através do sufrágio universal e do sistema partidário.

Isto, porém, não foi suficiente para impedir a luta operária e o ciclo revolucionário do início do século 20 comprova isto. É a partir da Segunda Guerra Mundial que a classe dominante busca, através do seu poder coletivo, o estado capitalista, consolidar sua dominação e impedir o surgimento de qualquer brecha revolucionária. A reorganização legal da democracia burguesa e a expansão dos direitos sociais são as formas encontradas para integrar as classes exploradoras na sociedade capitalista, ou seja, a cidadania burguesa entra numa nova fase, onde há algumas alterações nos direitos políticos e a expansão dos chamados direitos sociais, com o surgimento do famigerado estado do bem-estar social.

A passagem da democracia partidária liberal para a democracia partidária burocrática é marcada pela restrição da participação das classes exploradoras na política institucional. Porém, isto vem acompanhado por um crescimento quantitativo das classes auxiliares da burguesia, que recruta indivíduos inclusive provenientes das classes exploradoras, que são cooptados e passam a integrar a burocracia partidária, a burocracia sindical, etc. Isto significa que a expansão das classes auxiliares da burguesia acaba amortecendo a luta de classes.

Iremos abordar rapidamente esta questão das classes auxiliares no contexto desta discussão. Muitos falam do “crescimento da classe média” (sem dúvida, o construto de classe média é bastante útil para a ideologia dominante e está intimamente ligado à ideologia da estratificação social que busca ofuscar a teoria marxista das classes sociais), tal, como, Bottomore: “A luta de classes foi também moderada e está cada vez mais voltada para canais reformistas, pelas mudanças na natureza de estrutura de classes, e em especial pelo crescimento das classes médias” (Bottomore, 1981, p. 29). Este crescimento também foi notado por Poggi, que destaca que tal “classe média assalariada” passa a imitar e superar a classe trabalhadora em sua pressão sobre o estado para satisfazer seus interesses particulares. Ela “procura preservar através da ação estatal essa segurança econômica e posição social que deixou de poder basear na posse de um patrimônio de família (...), ou na capacidade para manter a sua independência enquanto coloca no mercado serviços valiosos e sofisticados”(Poggi, 1981, p. 133).

Poucos são aqueles que percebem que o estado, a democracia burguesa e os partidos políticos são produtores de novos membros das classes auxiliares e por conseguinte, de novos grupos conservadores na sociedade. Robert Michels observou isto em relação aos partidos políticos, que, segundo ele, são produtores de “novas camadas pequeno-burguesas” (Michels, 1982) e Guiducci também observou a expansão das classes auxiliares e seus interesses: “Aqueles que teriam tido o poder de administrar o interesse geral estão impotentes para fazer qualquer coisa sem se autoprejudicar e sem interromper o próprio mecanismo particular de autoconservação através de uma contínua operação parasitária. Portanto, a ‘democracia representativa’, indireta e dominante, consegue representar apenas a si própria, como grupo oligárquico de poder de interesse acima da sociedade civil oprimida. E, em parte notável, também os partidos de esquerda, para continuarem a existir paradoxalmente como partidos de esquerda e/ou diretamente de oposição, entraram no jogo para seu próprio financiamento, tornando-se assim seduzidos e convenientes no jogo particular contra o interesse geral” (Guiducci, 1991, p. 75-76).

Portanto, o que se deve ressaltar é que as classes auxiliares, devido as necessidades de sua própria reprodução, bem como sua inserção social, auxilia a dominação burguesa e se essas classes lutassem contra a burguesia estariam lutando contra a própria existência e privilégios (por exemplo: a luta revolucionária é uma luta pela abolição da democracia burguesa e dos partidos políticos, o que significa a abolição da burocracia parlamentar e partidária... luta que, sem dúvida, elas jamais irão compartilhar, pois assim elas mesmas seriam abolidas enquanto classe, o que significa a perda de seus privilégios).

Este crescimento quantitativo das classes auxiliares juntamente com a expansão dos direitos sociais é possibilitado pela estabilidade e ampliação da acumulação capitalista nos países capitalistas imperialistas a partir da Segunda Guerra Mundial. Esta ampliação da acumulação capitalista foi incentivada pelas condições favoráveis pela situação do pós-Guerra (destruição em massa das forças produtivas, o que serviu como contrapeso temporário ao nível elevado de composição orgânica do capital) e pela exploração imperialista através da transferência de mais-valor dos países capitalistas subordinados para os países capitalistas imperialistas.

Os direitos sociais oferecidos pelo estado integracionista (do “bem estar social”) são, na verdade, formas de integração das classes exploradoras no modo de produção capitalista. O estado capitalista fornece estes direitos sociais (através de sua política social) porque isto é de interesse do capital. O direito à educação, por exemplo, é uma exigência de muitos setores das classes exploradoras e estes exercem pressão sobre o estado, sendo que contam com o apoio de partes das classes auxiliares (principalmente as produzidas e/ou ligadas aos partidos reformistas). O não-atendimento desta reivindicação fortalece a oposição (tanto a reformista quanto a radical que pode se aproveitar da situação e radicalizar o discurso oposicionista e buscar a hegemonia) e por isso o estado capitalista se vê constrangido a atendê-la. Mas, mesmo que não houvesse reivindicação, o estado capitalista poderia ampliar o atendimento oferecida pela rede escolar estatal, pois isto é de interesse do capital. Qual é o interesse do capital nisto? A escola estatal é uma instituição útil para o capital por vários motivos: a) Ela repassa a ideologia e os valores dominantes e assim contribui com o amortecimento das lutas de classes; b) Ela prepara a força de trabalho necessária ao capital; c) Ela corrompe diversos indivíduos que são incluídos na burocracia escolar ou em posições que fornecem status ou adquirem autoridade sobre outros por conseguinte, o estado capitalista adquire legitimidade ao atender reivindicações populares e ao mesmo tempo reforça a integração dos indivíduos nas suas instituições.

O exemplo da educação revela o que é comum à todos os chamados “direitos sociais”. O seu papel, apesar das diferenças na forma como tais direitos atendem os interesses do capital, é o de legitimar o estado capitalista e integrar os indivíduos na sociedade burguesa.

Aqui podemos colocar uma questão importante para os ideólogos da cidadania. Alguns, ao falarem sobre cidadania, a colocam como se ela fosse doada pelo estado capitalista (Marshall, 1967). Outros vociferam contra a “cidadania outorgada” e defendem a “cidadania conquistada”. Sobre este último ponto de vista, podemos ver esse tipo de afirmação: “A luta pela educação, pela cultura, pelo saber e pela instrução encontra sentido, se inserida nesse movimento de constituição da identidade política do povo comum. Essa luta é um momento educativo enquanto representa uma movimentação, organização, confronto, reivindicação e, conseqüentemente, expressão e prática de consciência do legítimo e do devido” (Arroyo, 1987, p. 77).

Segundo este último ponto de vista, a democracia e a cidadania só são válidas se forem conquistadas e não doadas pelo estado e a própria conquista, que pressupõe mobilização, organização, etc., é que oferece valor à cidadania. A ênfase na conquista parece, se formos incautos, um discurso esquerdista. Mas não é isto que ocorre devido ao fato de se enfatizar a ação no sentido de conquistar cidadania. Uma ação só é revolucionária ou só colabora com o processo de libertação dos explorados se ela tiver um objetivo revolucionário. Uma grande mobilização popular não quer dizer nada se não tiver um objetivo revolucionário ou tiver no seu interior tendências que tenham tal objetivo e busquem torná-lo hegemônico.

Tomemos um exemplo. O impeachment do presidente Fernando Collor de Melo no Brasil. Houve uma grande mobilização popular e esta acabou atingindo os seus objetivos: a derrubada do governo Collor. Porém, isto não provocou nenhum acúmulo para a luta operária e a luta de outros setores explorados, e nem mesmo para o movimento estudantil, um dos principais articuladores da mobilização. Quais foram as razões disto? Isto ocorreu porque tal mobilização foi hegemonizada, inicialmente, pelo bloco reformista (partidos de “esquerda”, que queriam derrubar o governo e convocar novas eleições presidenciais, para lançar seu candidato, Lula), e posteriormente, pelo bloco dominante, que queria tão somente a derrubada do presidente Collor e sua substituição pelo vice- presidente. Poucas vozes discordantes se manifestaram.

Terminada a mobilização, todo mundo, ou melhor, os cidadãos, voltaram para casa e assistiram pela televisão a lição de cidadania que deram ao país. E tudo continuou como antes, com exceção da presidência, que proporcionou uma substituição que nada alterou. Mas o resto estava lá: o conformismo, a consciência fetichista, etc. Apenas outra coisa mudou além do fato do presidente Collor e alguns “bodes expiatórios” terem sido “punidos”: o estado capitalista recuperou sua legitimidade perdida.

Por conseguinte, se a cidadania é outorgada ou conquistada, não faz a menor diferença. A luta pelos direitos sociais só seria proveitosa para o proletariado se fosse uma luta autogerida e com objetivos revolucionários (aliás, uma coisa gera outra), embora um movimento possa começar heterogerido e reformista, defendendo da correlação de forças, se tornar autogerido e revolucionário ou pelo menos fortalecer essa posição junto à sociedade ao disputar a hegemonia no movimento. No entanto, o engajamento nesta luta só tem sentido se existir esta possibilidade concreta.

Neste momento, podemos colocar outra questão muito discutida pelos ideólogos da cidadania: a questão da inclusão e da exclusão. Os excluídos são aqueles que estão fora das esferas burguesas de produção e consumo, dos direitos sociais. Os incluídos são os cidadãos que usufruem da cidadania. Existem os excluídos da cidadania. Resta saber quem são estes indivíduos excluídos que devem, segundo os ideólogos da cidadania, ser incluídos, o que significa serem integrados na sociedade capitalista.

O próximo passo após ter definido que o grande problema social hoje é a exclusão e que a solução é a inclusão (integração) é propor, para os excluídos, o acesso ou a conquista da cidadania e, para os já incluídos, a ampliação da cidadania (claro que esse discurso é mais comum nos países capitalistas subordinados).

Encontramos aqui o mesmo problema anteriormente colocado referente à opção pela “cidadania conquistada”. Conquistar ou ampliar a cidadania significa realizar a integração, ou intensificá-la, na sociedade capitalista. O desempregado (um excluído) teve que receber um emprego (ser incluído) e assim se submeter ao trabalho alienado, à exploração capitalista. Um analfabeto não- eleitor (excluído dos direitos políticos, por não ter o direito de voto) teve ser “educado” pelo estado e/ou deve se tornar um eleitor. Desta forma, ele deve ser oprimido na escola (através da inculcação da ideologia dominante) e deve se tornar mais um legitimador do estado capitalista que o oprime através da participação no processo eleitoral.

Mas o que se deve fazer? Aceitar o desemprego, o analfabetismo, o desrespeito ao direito de votar? Devemos aceitar a exclusão? O problema não se encontra em lutar contra o desemprego, o analfabetismo, etc., e sim na forma como se faz isto, ou seja, o problema se encontra em buscar superar esta situação de miséria e opressão de parte da população através da integração dela na sociedade capitalista. O direito ao voto, por exemplo, deve ser reconhecido legalmente, mas não deve ser um dever (ou seja, não deve ser obrigatório). O direito à educação deve ser reconhecido de fato, mas a própria forma de educação deve ser acompanhado com a transformação da escola e o mesmo ocorre com o emprego, mas trata-se de propor uma transformação na “forma de emprego” no sentido de contribuir com a transformação social. Não se trata também de ampliar a cidadania mas de superá- la, ou seja, o problema não está em conquistar direitos (civis, políticos e sociais) e deveres e sim em transformar a sociedade.

Se lembrarmos que cidadania significa a integração do indivíduo no capitalismo por intermédio do estado, veremos que todas estas reivindicações de direitos são dirigidas ao estado capitalista. A cidadania cedida pelo estado (não interessa se é outorgada ou conquistada) é controlada por ele, pois o sistema de saúde, o sistema escolar, o sistema eleitoral, etc., é tudo dirigido pelo estado capitalista. A conquista da cidadania legitima o estado capitalista e reafirma o processo de exploração capitalista.

Enfim, a busca de cidadania significa a luta por uma integração na sociedade capitalista, isto é, significa lutar por compartilhar do processo de exploração e opressão efetivado por esta sociedade, e significa reconhecer o estado capitalista como legítimo e como a instituição que deve controlar a população. Isto ocorre porque tal luta se fundamenta nos “direitos do cidadão”, mesmo que estes incluam os direitos sociais, pois tais direitos são direitos do cidadão do estado capitalista. É por isso que Marshall, com o seu conservadorismo muito mais esclarecedor do que a ideologia progressista de outros, pôde dizer que: “as diferenças de status podem receber a parcela da legitimidade em termos de cidadania democrática, desde que não sejam muito profundas, mas ocorram numa população unida, numa civilização única; e desde que não sejam expressão de privilégio hereditário. Isto significa que desigualdades podem ser toleradas numa sociedade fundamentalmente igualitária desde que não sejam dinâmicas, isto é, que não criem incentivos que se originam do descontentamento e do sentimento de que ‘este tipo de vida não me agrada’, ou ‘estou decidido a fazer tudo para que meu filho não passe pelo que passei’ ” (Marshall, 1967, p. 108).

O que Marshall quis dizer é que, deixando de lado os seus eufemismos, as diferenças de status e as desigualdades podem ser toleradas graças à cidadania e a “igualdade” que ela proporciona. Substituindo esta linguagem ideológica, podemos dizer que a exploração de classes (e,conseqüentemente, a divisão da sociedade em classes sociais, o que implica em “desigualdade” e “diferença de status”) pode ser tolerada havendo a igualdade fictícia proporcionada pela cidadania. Marshall busca nos convencer da possibilidade da cidadania reduzir as desigualdades mas nós sabemos que isto é impossível por vários motivos, entre os quais, a existência, em todos os países do mundo, de setores que não possuem cidadania. Mas, além disso, podemos dizer que a cidadania não pode e nem quer reduzir as desigualdades e diferenças de status, pois ela é a própria aceitação e reprodução da “desigualdade” e “diferenças de status”, ou melhor dizendo, da exploração de classe.

A classe capitalista não busca o atendimento de “direitos sociais”, pois ela possui o poder financeiro. As migalhas que o estado capitalista cede às classes exploradas servem apenas para reproduzir a situação que gera a necessidade de migalhas por parte delas. A busca da cidadania tão propagandeada pelos reformistas é simplesmente isto: o reconhecimento da exploração e a tentativa de amenizar tais efeitos através do estado capitalista para que se dê continuidade ao processo de exploração.

Se as classes exploradas lutam por migalhas é porque elas realmente precisam de migalhas e é isto que possibilita a reprodução de sua situação de necessitar de migalhas. Se o estado capitalista, o poder coletivo da burguesia, cede migalhas, isto se deve ao fato de que ceder tais migalhas permite a continuidade da apropriação de um mundo de riquezas, a permanência da exploração de classe. Desta forma, reconhecemos que a luta pela cidadania é um projeto do bloco reformista que serve para a reprodução da sociedade burguesa e que a “cidadania conquistada” significa um amortecimento das lutas de classes, o que pressupõe a continuidade da existência das classes sociais e, conseqüentemente, da exploração, da opressão e da miséria.

Os defensores mais ingênuos da conquista da cidadania, mesmo os que buscam um discurso “progressista” se referindo a Marx e ao socialismo, revelam ser portadores de uma ideologia burguesa que buscam integrar as classes exploradoras na sociedade capitalista, principalmente com o discurso de que a cidadania é “uma categoria estratégica para uma sociedade melhor” (Covre, 1991).

A argumentação ideológica é muitas vezes simplista mesmo quando busca se apresentar como “progressista” ou de “esquerda”. Num pequeno livro introdutório ao tema da cidadania (Covre, 1991), a autora busca legitimar, por diversas vezes, a discussão em torno deste tema através do apelo ao fato da “derrocada do socialismo da URSS e Leste Europeu”. Numa dessas passagens podemos ler o seguinte: “Numa era em que os modelos revolucionários desencadeadores do socialismo do Leste perdem credibilidade, o que colocar em seu lugar para satisfazer o sonho – que o homem sempre terá

– de alcançar uma sociedade melhor? Para refletir sobre isso, retornemos ao período riquíssimo da burguesia revolucionária e bebamos em suas fontes, naquilo que se propôs e não realizou. Bebamos também na fonte marxista, no que acenou e igualmente não realizou” (Covre, 1991, p. 62. Grifos meus). Deixando de lado que nunca houve socialismo no Leste e sim capitalismo de estado, observamos uma concepção conformista (o sonho que o homem sempre terá, e que, portanto, nunca será realizado...) e reformista (sociedade “melhor” e não uma sociedade radicalmente diferente) que busca assimilar o marxismo (bebamos “também” na fonte marxista) a partir do ponto de vista da burguesia (que mesmo em seu período revolucionário já era burguesia...).

Este ponto de vista está tão ligado à ideologia burguesa que podemos observar, simultaneamente, uma visão europocêntrica do mundo (a Europa Ocidental foi o “berço” da civilização burguesa) e uma mentalidade burguesa na busca em assimilar outras ideologias: “A base de sua inspiração (da ideologia burguesa), estava na releitura dos clássicos (gregos e romanos), que teve sua grande expressão na Renascença, aprendendo tudo o que de melhor houve na humanidade” (Covre, 1991, p. 25). Não deixa de ser cômico ficar sabendo que o escravismo antigo e sua ideologia constitui “tudo o que de melhor houve na humanidade” (sem citar o fato de que o Oriente e o resto do mundo devem ser esquecidos...). Até a ascensão da burguesia que os resgatou e “melhorou”.

Outras afirmações brilhantes são feitas sobre o estado, que não serve somente à reprodução do capitalismo, pois este é “ambivalente” e graças a isto nos permite “acenar à igualdade”: “a ambivalência do capitalismo: de um lado exploração e desigualdade; de outro, caminhando concomitantemente, o aceno à igualdade e à construção da cidadania mais plena” (Covre, 1991, p. 36). Além da ideologia do “estado neutro” temos a ideologia do capitalismo que (acreditem se puderem) acena à igualdade (!). De onde se retira tão extravagante idéia? De Marx! Vejam só: “retiramos do próprio marxismo esse jogo de possibilidades: os homens fazem a história, mas sob determinadas condições. Para manter-se o mais fiel às proposições de Marx, é preciso não pender para nenhum dos lados”; “A mudança entre estrutura e sujeito é complexa; tanto um quanto o outro mudam-se reciprocamente, e é preciso, de forma contínua, apreender-se o novo, a nova estrutura, o novo sujeito” (Covre, 1991, p. 36-37).

Sem dúvida Marx falou que os homens fazem a história sob condições determinadas mas isto não tem nada a ver com uma “ambivalência do capitalismo”, pois ele não acena para a igualdade e sim a sua negação, o proletariado, que faz isto, mesmo sob as condições determinadas pelo capitalismo. A autora troca “faz a história” por “faz o capitalismo”. O discurso sobre “novo sujeito” e “nova estrutura” não vem acompanhado por nada de “novo”, nem a estrutura (que continua capitalista, só que “melhorada” e “mais democrática”) e nem o “sujeito” (o cidadão em busca da cidadania). Por fim, ficamos sabendo que “a luta mais ampla direciona-se para o estado, e que capital e trabalho podem, de certa forma, conviver, embora conscientes do conflito, e estabelecer normas que permitam construir uma sociedade melhor” (Covre, 1991, p. 37), que “determinados empresários e administradores de alto nível podem ter uma visão avançada do processo social, de tal modo que suas empresas tornem-se, de certo modo, patrimônio da sociedade” (Covre, 1991, p. 67), que “a própria constituição é um processo, e não uma carta estagnada” (Covre, 1991, p. 73) e que “a cidadania é o próprio direito à vida no sentido pleno. Trata-se de um direito que precisa ser construído coletivamente, não só em termos de atendimento às necessidades básicas, mas acesso a todos os níveis de existência, incluindo o mais abrangente, o papel do (s) homem (s) no universo” (Covre, 1991, p. 11). Assim, o estado capitalista torna-se uma “forma de dominação legítima”; o conflito capital-trabalho pode conviver e proporcionar uma sociedade melhor; alguns empresários poderão contribuir com isso, bem como as normas jurídicas, tal como a constituição; e devemos buscar integrar o homem num nível mais abrangente da existência, com um apelo místico ao seu “papel no universo”. O capitalismo é prodigioso em produzir ideólogos e ideologias, sustentando as classes auxiliares da burguesia, principalmente os intelectuais, especialistas em falsificar a realidade de acordo com os interesses do capital.

Assim sendo, a cidadania revela sua face oculta: ela significa a integração dos indivíduos na sociedade capitalista por meio do estado. A ideologia da cidadania, por sua vez, é uma concepção que corresponde aos interesses de frações das classes auxiliares da burguesia e que é convergente com o interesse da classe capitalista, sendo, pois, uma ideologia burguesa. Sem dúvida, em determinados momentos históricos e países (devido sua posição na divisão internacional do trabalho), a cidadania pode se converter num obstáculo para a realização dos interesses da classe capitalista ou de algumas de suas frações. Este é o motivo pelo qual a cidadania é mais débil nos países capitalistas subordinados e também a razão de ser do ataque neoliberal a ela, pois a crise do regime de acumulação cria novas necessidades para o capital, que entram em contradição com a cidadania. Este será o ponto que analisaremos a seguir, a dinâmica da política institucional envolvida na luta de classes e no desenvolvimento capitalista.

Desenvolvimento Capitalista, Luta de Classes e Política Institucional

A luta de classes é o motor das transformações da política institucional. As mudanças políticas- institucionais são provocadas pelo desenvolvimento capitalista, marcado pela luta entre as classes sociais. Esta é a tese que apresentaremos aqui e que já foi esboçada nos capítulos anteriores. Poderíamos ter iniciado com este capítulo, mas preferimos encerrar com ele, invertendo a ordem tradicional, pois agora, após uma análise histórica (embora incompleta, o que nos faz, aqui, completar parcialmente o que já havia sido esboçado nos capítulos anteriores) do desenvolvimento do estado capitalista, da democracia burguesa e da cidadania, ficará mais perceptível nossa tese.

As lutas de classes assumem duas formas fundamentais: luta de classes na produção e luta de classes na sociedade civil. Sem dúvida, estas duas formas estão intimamente ligadas e entrelaçadas, mas também possuem algumas especificidades, das quais trataremos brevemente aqui. A luta de classes na produção é aquela que se realiza no processo de trabalho capitalista, que é, simultaneamente, processo de valorização (Marx, 1988a). Trata-se de uma luta em torno do mais- valor, o que traz implicações para a organização do trabalho, o uso da tecnologia, a burocracia, etc. A classe operária, nesta luta, utiliza desde a resistência passiva (ações individuais, desinteresse, absenteísmo, etc.) passando por diversas ações até chegar ao processo de radicalização, expresso pelas greves, formação de conselhos de fábrica, ocupação de fábrica e autogestão das unidades de produção. Em síntese, a luta de classes na produção é aquela realizada no processo de produção, que, no capitalismo, é uma luta em torno do mais-valor, ocorrida no processo de valorização, manifestação do processo de trabalho nesta forma específica de sociedade.

A luta de classes em torno do mais-valor é, inicialmente, por parte do proletariado, uma luta pela diminuição da extração de mais-valor e, em momentos de acirramento das lutas de classes, uma luta pela abolição do mais-valor. Para a burguesia, trata-se, num primeiro momento, de uma luta pelo aumento de extração de mais-valor, e, num segundo, quando há o acirramento da luta operária, uma luta pela manutenção da extração de mais-valor. Isto ocorre, independentemente da consciência concreta destas classes, pois é a própria posição diante das relações de produção que provoca isto. A burguesia precisa, devido a competição capitalista, aumentar a extração de mais-valor e quanto o movimento operário ameaça a relação-capital, precisa se unir para garantir a reprodução desta relação. O proletariado luta contra o aumento e pela diminuição do mais-valor pelo motivo de que isto é um processo que marca sua vida cotidiana e lhe suga o sangue, sendo que o capital é como um vampiro para os indivíduos proletários. Esta luta é a recusa natural do trabalho alienado, da destruição psíquica do trabalhador, da opressão durante a jornada de trabalho. Nos momentos de ascensão da luta operária ocorre o questionamento da própria relação-capital, isto é, da produção de mais-valor. Isto ocorre com a autogestão da luta operária pela própria classe operária, que já instaura a autogestão nas fábricas e do conjunto das relações sociais, abolindo a base da produção de mais-valor.

A luta de classes na sociedade civil já ocorre fora da esfera da produção. O conceito de sociedade civil expressa, tal como em Hegel, a esfera privada em contraposição à esfera pública (estatal) (Hegel, 1979; Lefebvre & Macherey, 1999), posição que será a mesma de Marx, embora este use este termo poucas vezes, e não entra no seu arcabouço teórico. Aqui utilizamos a expressão sociedade civil num sentido bem específico: é o conjunto das formas privadas de regularização das relações sociais. Em outras palavras, além do modo de produção dominante e dos modos de produção subordinados, temos as formas de regularização das relações sociais (“superestrutura”), que podem ser divididas em formas privadas e estatais. As formas estatais são constituídas pelo estado, pelas instituições estatais (fundações, autarquias, etc.), pelos seus aparelhos (jurídico, policial, etc.) por suas ideologias, etc. enquanto que as formas privadas são a cultura, a sociabilidade, as instituições civis (igrejas, partidos, associações, escolas, hospitais etc.), etc. A sociedade civil é constituída, em nossa concepção, por estas formas privadas. A relação entre sociedade civil e estado, entre as formas privadas e as formas estatais de regularização é marcada por conflitos e pelo predomínio da burguesia em ambas. O estado, tal como colocamos anteriormente, é um aparelho privado do capital e a sociedade civil é hegemonizada pela burguesia, pois ela é a classe dominante, comandando o modo de produção e o estado, possuindo o domínio tanto financeiro quanto repressivo e institucional na sociedade civil. Mas esta hegemonia não é absoluta e é por isso que existe luta de classes na sociedade civil.

A luta de classes na sociedade civil é aquela realizada na esfera cultural, nas instituições, nos locais de moradia, etc. Segundo a ideologia dominante, são as lutas sociais em geral, em contraposição às lutas políticas, que só ocorreriam sendo direcionadas para o estado, precisando de sua sanção para conseguir o título de “político”. Tais lutas, na verdade, são lutas políticas institucionais, isto é, uma parte reduzida das lutas políticas, que mantém uma relação com o estado. Mas a parte mais ampla das lutas de classes na sociedade civil ocorre sem apelar para o reconhecimento estatal. Uma delas está na luta cultural cotidiana realizada pelas classes exploradas, movimentos sociais, grupos revolucionários. A esquerda tradicional sempre enfatizou esta esfera da luta, através de suas ações partidárias, mas a direcionou no sentido de conquistar o poder estatal, expressão dos interesses de classes que a anima. Daí sua concepção de partido e consciência exterior (leninismo, social-democracia), revelando sua vocação dirigista e burocrática, expressão dos interesses de classe da burocracia.

Sem dúvida, a luta de classes dirigida ao estado pode ser efetivada pelo conjunto dos explorados e oprimidos, mas isto depende do tipo reivindicação feita e nunca assume uma importância central nas lutas sociais. A luta pela diminuição da jornada de trabalho, por exemplo, foi uma luta da classe operária na sociedade civil que teve repercussão na luta de classes na produção. O mesmo ocorre coma expansão de uma cultura revolucionária. A luta em torno do mais-valor, por sua vez, também interfere na lutas de classes na sociedade civil. Quando a classe dominante quer aumentar a extração de mais-valor absoluto, ela precisa mudar a legislação trabalhista, isto é, interferir na esfera da sociedade civil ou, quando o proletariado realiza um amplo movimento grevista, isto influencia as lutas na sociedade civil, reforçando a cultura revolucionária e aumentando o temor da classe dominante.

Após apresentar esta breve definição de lutas de classes na produção e na sociedade civil, podemos partir para o processo de desenvolvimento das lutas de classes e as mudanças que elas provocam no desenvolvimento capitalista e na política institucional. O desenvolvimento capitalista é marcado pela sucessiva mudança no regime de acumulação. Um regime de acumulação é constituído por uma determinada forma assumida pelo processo de valorização, uma determinada forma de organização estatal e um modo específico de relação entre os países capitalistas, ou seja, de relações capitalistas internacionais.

A passagem da acumulação primitiva de capital para a acumulação capitalista propriamente dita significa a instauração de um novo regime de acumulação, agora especificamente capitalista, dentro dos países capitalistas imperialistas. O regime de acumulação instaurado é o extensivo, no qual a classe capitalista extrai, fundamentalmente, mas não unicamente, mais-valor absoluto. É neste momento histórico que surge o estado capitalista, sob a forma de estado liberal, e o neocolonialismo1, elementos necessários e complementares para a acumulação capitalista.

O regime de acumulação extensivo, no qual predomina a extração de mais-valor absoluto, se caracteriza por um alto grau de exploração da força de trabalho realizada pela classe capitalista. A luta de classes na produção demonstra o predomínio do capital e a imposição de longas jornadas de trabalho, baixos salários, amplo uso de força de trabalho precoce (crianças e jovens) e feminina, etc. A luta operária era expressa em ações como o cartismo, a quebra de máquinas, etc. As lutas de classes na sociedade civil se manifestavam, por um lado, como luta operária para mudar as condições de trabalho (jornada de trabalho, luta contra o uso de força de trabalho precoce e feminino, etc.), salários, legalização de sindicatos, e pela ampliação dos direitos civis e políticos, etc.

O estado liberal evitava a ampliação da participação restrita das classes sociais na elaboração das políticas estatais (democratização), pois temia, tal como expressava seus ideólogos, que o direito de voto estendido aos trabalhadores resultasse em seu predomínio na esfera estatal (Macpherson, 1978). A democracia censitária e a cidadania civil (direitos civis) era o máximo que poderia ceder o estado liberal, pois as reivindicações operárias (tal como a diminuição da jornada de trabalho) comprometiam o regime de acumulação e este exige um estado repressivo. A década de 40 do século 19 marca uma ascensão das lutas operárias e a dificuldade de reprodução deste regime de acumulação. Na década de 50 tal regime de acumulação entra verdadeiramente em crise e culmina com a Comuna de Paris, em 1871, a primeira tentativa de instauração da autogestão social. “Este modelo de acumulação se esgota a partir dos anos 70: a crise se instaura através da acentuação da luta de classes, marcada pela Comuna de Paris, e só será vencida, através da superação do laissez faire dos anos 50- 70 – único período de verdadeiro liberalismo capitalista –, da constituição dos monopólios e da expansão do imperialismo” (Amin, 1977, p. 9)2.

A ascensão da luta operária marca uma derrota temporária da classe capitalista. A diminuição da jornada de trabalho foi um duro golpe para a classe capitalista e, juntamente com outras determinações, decretou a crise do regime de acumulação extensivo do capitalismo livre-concorrencial e sua substituição pelo regime de acumulação do capitalismo oligopolista. Marx descreveu o longo processo de lutas operárias pela diminuição da jornada de trabalho que perpassa todo o século 19. Segundo Marx, “a criação de uma jornada normal de trabalho, é, por isso, o produto de uma guerra civil de longa duração, mais ou menos oculta, entre a classe capitalista e a classe trabalhadora. Como a luta foi inaugurada no âmbito da indústria mais moderna, travou-se primeiro na terra natal dessa indústria, na Inglaterra” (Marx, 1988a, p. 227).

A guerra civil oculta em torno da jornada de trabalho na Inglaterra (e as lutas operárias em outros países capitalistas, tal como na França) teve conseqüências de alcance mundial. Esta luta de classes na sociedade civil provocou alterações na luta de classes na produção. Mas o que ocorreu nesta esfera, num primeiro momento, foi a ofensiva capitalista que buscava compensar a diminuição de extração de mais-valor absoluto devido a diminuição da jornada de trabalho com o aumento da extração de mais-valor relativo. Trata-se da passagem do regime de acumulação extensivo para o regime de acumulação intensivo.

A obra de Taylor e a “administração científica do trabalho” são a resposta do capital, já esboçada de forma não sistemática antes do surgimento do taylorismo, a este recuo na extração de mais-valor absoluto. Assim se institui um novo regime de acumulação, complementado pelo uma nova forma estatal, o estado liberal-democrático, e uma nova forma de exploração internacional, o imperialismo. O taylorismo buscava, através da organização do processo de trabalho, aumentar a extração de mais-valor relativo. Sem dúvida, este processo foi acompanhado pela resistência operária, em parte descrita pelo próprio Taylor ao relatar suas experiências (Taylor, 1987). O estado liberal- democrático significou uma concessão ao movimento operário, ao regularizar partidos, sindicatos, etc., ampliar a legislação trabalhista, entre outras ações, sendo que na esfera da política institucional isto tudo significou a passagem do estado liberal para o estado liberal-democrático e também a passagem da democracia censitária para a democracia partidária liberal, ao lado da ampliação da cidadania, que passa a englobar os direitos políticos. No entanto, o estado liberal-democrático, ao mesmo tempo em que realizou estas concessões, buscou integrá-las em sua lógica de reprodução, anulando o caráter potencialmente subversivo destas mudanças.

Este processo foi acompanhado pela centralização e concentração de capital originária do período anterior, o que proporcionou a formação dos oligopólios e a dinâmica do capitalismo oligopolista passou a ser centrada na acumulação intensiva. O capital oligopolista gerou uma nova política estatal, o protecionismo e, juntamente com isso, a exportação de capital-dinheiro (Benakouche, 1980), formando a base do imperialismo financeiro, que tornou a forma predominante de exploração internacional, convivendo com as formas neocoloniais que continuavam sobrevivendo de forma secundária a partir desse momento. O capital oligopolista necessitava de ampliar os investimentos e a exportação de capital-dinheiro resolvia parcialmente esta questão, embora provoque o acirramento dos conflitos internacionais com os demais países imperialistas na busca de novos domínios nacionais. A produção capitalista se expande nos países subordinados, tal como a Rússia, o Brasil, entre outros.

O capitalismo oligopolista, com seu regime de acumulação intensivo, entra em crise já no início do século 20. Este regime de acumulação é substituído por uma versão reformada da acumulação intensiva, o que gera novas transformações na sociedade capitalista.

A luta operária no início do século 20 assusta a burguesia dos países capitalistas imperialistas. A social-democracia crescia eleitoralmente, bem como outras organizações reformistas (sindicatos, por exemplo). As tendências revolucionárias também se alastraram (anarquismo, sindicalismo revolucionário, as correntes esquerdistas do marxismo, etc.) e o movimento operário como um todo mostrava sua força. A luta de classes na produção ia desde a resistência cotidiana ao taylorismo até os fortes movimentos grevistas enquanto que a luta de classes na sociedade civil se manifestava no apoio eleitoral aos partidos social-democratas, o fortalecimento das tendências revolucionárias, a produção cultural contestadora, etc. A revolução russa de 1905 e as greves na Europa nos primeiros anos do século 20 foram seguidas pelas diversas tentativas de revolução social nos anos seguintes, a formação dos conselhos operários e o fortalecimento do anarquismo e do esquerdismo3, tal como as tentativas de revolução na Alemanha, na Itália, na Hungria, na Rússia, etc. A derrota do movimento operário na Rússia, graças à contra-revolução burocrática realizada pelo bolchevismo, bem como a influência crescente deste em partidos e sindicatos, apareceu, aos olhos da burguesia, como uma “vitória proletária” e como uma “ameaça comunista”.

Em alguns países capitalistas, tal como na Alemanha, o estado liberal-democrático e a classe capitalista resistiram, num primeiro momento, cedendo o governo para a social-democracia, pensando que ela pudesse conter o ímpeto revolucionário devido sua influência na população e sua força nos meios sindicais. Ao ver que tal estratégia não funcionava, teve que apelar para a repressão e o fascismo. Este foi um momento de crise generalizada na Europa, gerando as guerras mundiais. O capitalismo de guerra (os economistas utilizam o eufemismo “economia de guerra”, deixando claro o caráter ideológico da expressão que busca dar aparência de neutralidade ao processo destrutivo assumido pelo capital em momentos de fortes crises) se instaurava e salvava o modo de produção capitalista da destruição.

A segunda guerra mundial abriu caminho para um novo regime de acumulação, pois a destruição em massa das forças produtivas possibilitava uma ampla e generalizada acumulação de capital, principalmente tendo em vista a capacidade tecnológica existente. O novo regime de acumulação se fundamentava no fordismo, no estado integracionista (também chamado de welfare state, keynesiano, social-democrata ou “de bem estar social”) e no imperialismo oligopolista. O fordismo tem suas origens remotas no início do século 20, mas é somente no pós-guerra que irá se tornar hegemônico: “a data inicial simbólica do fordismo deve por certo ser 1914, quando Henry Ford introduziu seu dia de oito horas e cinco dólares como recompensa para os trabalhadores da linha automática de montagem de carros que ele estabelecera no ano anterior em Dearbon, Michigan. Mas o modo de implantação geral do fordismo foi muito mais complicado que isso” (Harvey, 1992, p. 121).

Harvey sustenta que Ford apenas aprimorou algumas tendências tecnológicas e organizacionais e aprofundou a racionalização do processo de trabalho, ação iniciada por Taylor. “O que havia de especial em Ford (e que, em última análise, distingue o fordismo do taylorismo) era a sua visão, seu reconhecimento explícito de que produção de massa significava consumo de massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista” (Harvey, 1992, p. 121).

Na verdade, o fordismo se distingue do taylorismo, enquanto forma de organização do trabalho, pela busca de extração de mais-valor relativo via uso da tecnologia (Viana, 2001), ou seja, enquanto Taylor buscava aumentar a produtividade via organização (controle e gerência) do processo de trabalho, Ford ia além e buscava aumentar a produtividade com o uso de novas tecnologias que determinam o ritmo e a intensidade do trabalho. Isto, sem dúvida, não só proporcionava e incentivava a produção em massa, como exigia ela e não tinha aplicabilidade fora dela, pois aumentava os custos de produção (derivados do uso de novas tecnologias) e a tecnologia aplicada proporcionava a produção em massa, o que inviabilizava seu uso em produção de pequena escala. A ampliação das empresas oligopolistas era pré-condição para a generalização do fordismo.

Outra característica do fordismo é que este processo de intensificação do trabalho tendia a aumentar a insatisfação e resistência dos trabalhadores e daí ele ser complementado por um sistema compensatório visando impedir a manifestação desta tendência. Foi por este motivo que H. Ford forneceu aumento salarial aos seus operários, o que, sem dúvida, corroia parte do mais-valor relativo adquirido com o aumento da produtividade4, mas garantia a estabilidade na empresa e servia de “incentivo material” para os trabalhadores.

Este foi o motivo pelo qual o taylorismo foi predominante durante o capitalismo oligopolista, pois o fordismo exigia maiores gastos com tecnologia e maiores salários. É somente a partir do pós- guerra que o fordismo se torna predominante nos países capitalistas imperialistas: “a internacionalização propriamente dita do fordismo começou apenas após a Segunda Guerra Mundial, impulsionada ativamente pelos EUA. O plano Marshall, a partir de 1949, poderia à primeira vista ser interpretado como uma tentativa de prover de dólares as economias européias desorganizadas e destruídas pela guerra, para vaciná-las contra o ‘perigo comunista’ e assegurar economicamente a aliança ocidental. Numa focalização mais aprofundada, entretanto, tratava-se de um projeto para abrir possibilidade de mercado à produção americana, facilitando assim a difícil conversão da economia de guerra em economia de paz” (Altvater, 1995, p. 164).

Aqui temos a razão de ser da expansão do fordismo: a produção capitalista após 1945 visa conter suas contradições, buscando integrar a classe operária no capitalismo e aumentando a produção dos meios de consumo (Viana, 2002). A partir desta época, os investimentos são crescentemente investidos na produção de meios de consumo em detrimento da produção de meios de produção (o que não significa, de forma alguma, que tenha diminuído os investimentos na produção de meios de produção, mas sim que houve um deslocamento de investimento para a produção de meios de consumo, o que significou um aumento proporcional deste em relação à produção de meios de produção, que, caso não ocorresse, geraria um ritmo ainda mais acelerado de desenvolvimento tecnológico que aumentaria excessivamente a composição orgânica do capital)5.

Este crescimento da produção de meios de consumo, por sua vez, trazia a necessidade de ampliação do mercado consumidor. Os aumentos salariais possibilitavam um aumento do mercado consumidor, mas ainda insuficiente. Por outro lado, as lutas operárias e o movimento socialista anterior à guerra tinha colocado em questão o capitalismo e a derrota do nazi-fascismo teve a contribuição de diversas correntes socialistas e da União Soviética, que ainda era vista como “ameaça comunista” pela burguesia e como “socialismo” por grande parte dos trabalhadores.

Isto provocou a transformação do estado liberal-democrático em estado integracionista (também chamado estado do bem estar social e estado keynesiano, sendo que a primeira expressão destaca a política social e o suposto “bem estar” gerado por ela, enquanto que a segunda destaca o intervencionismo estatal na esfera da produção e reprodução do capital), cujo objetivo primordial era integrar a classe operária no capitalismo. A política estatal de seguridade social e o conjunto de políticas voltadas para a educação, saúde, etc., visavam integrar a classe operária, melhorando seu nível de vida e a qualificação de parte dela, e, ao mesmo tempo, buscava ampliar o mercado consumidor, pois a força de trabalho ao ser liberada de determinados gastos e receber seguro- desemprego, entre outros benefícios financeiros, passava a ter um maior poder aquisitivo. No entanto, esta nova forma estatal, bem como a nova estratégia do capital no processo de valorização (fordismo) ao mesmo tempo aumentava a extração de mais-valor relativo, aumentava os gastos estatais e os aumentos salariais que anulavam parte do mais-valor que poderia ser extraído com o aumento de produtividade.

Este dilema do capital foi resolvido com a expansão capitalista transnacional. O imperialismo, neste momento histórico, passa a se caracterizar pelo predomínio da exportação de capital-produtivo, e as empresas transnacionais se instalam em diversos países, abrindo uma nova fase de exploração imperialista, realizando uma ampla transferência de mais-valor dos países capitalistas subordinados para os países capitalistas imperialistas6 (Viana, 2000). Assim, o capitalismo oligopolista transnacional inaugura um novo regime de acumulação, o intensivo-extensivo, marcado pela extração de mais-valor relativo nos países imperialistas e pelo predomínio da extração de mais-valor absoluto nos países capitalistas subordinados. Assim, a acumulação intensiva no capitalismo imperialista era reforçada pela acumulação extensiva no capitalismo subordinado, através da transferência de mais-valor.

Este novo regime de acumulação amortece as lutas de classes nos países capitalistas imperialistas, pois o estado integracionista não só busca integrar a classe operária através de sua política de “bem estar social”, o que significa, simultaneamente, a constituição da “cidadania social” (inclusão dos direitos sociais na cidadania, tal como descrita por T. H. Marshall, seu principal ideólogo), bem como as empresas oligopolistas concedem aumentos salariais, mas também pelo intervencionismo estatal nas instituições da sociedade civil (através da regularização jurídica, incentivos, recursos, controle, etc.), reforçando o processo de burocratização e mercantilização das relações sociais. O processo de mercantilização das relações sociais faz parte da estratégia de ampliação do mercado consumidor, fazendo os serviços sociais não-estatais assumirem a forma- mercadoria7. O processo de burocratização das relações sociais significa a formação da “sociedade civil organizada”, isto é, burocratizada. Estes processos são complementares e proporcionarão a instituição da democracia partidária burocrática em substituição à democracia partidária liberal.

O regime de acumulação intensivo-extensivo, que alguns chamam de “fordista”8, se desenvolveu, em cada país, de acordo com suas peculiaridades, tal como no caso francês já abordado, que, por ter sofrido uma destruição maior no processo da segunda guerra mundial, teve um desenvolvimento peculiar, utilizando o processo inflacionário como estratégia para viabilizar a reconstrução da produção nacional (Mauro, 1973). Este regime de acumulação garantiu a estabilidade no capitalismo oligopolista transnacional até o final da década de 60, quando começa o seu declínio. “Em retrospecto, parece que havia indícios de problemas sérios no fordismo já em meados dos anos 60. Na época, a recuperação da Europa Ocidental e do Japão tinha se completado, seu mercado interno estava saturado e o impulso para criar mercados de exportação para os seus excedentes tinha de começar. E isso ocorreu no momento em que o sucesso da racionalização fordista significava o relativo deslocamento de um número cada vez maior de trabalhadores da manufatura. O conseqüente enfraquecimento da demanda efetiva foi compensado nos Estados Unidos pela guerra à pobreza e pela guerra do Vietnã. Mas a queda da produtividade e da lucratividade corporativas depois de 1966 marcou o começo de um problema fiscal dos Estados Unidos que só seria sanado às custas de uma aceleração da inflação, o que começou a solapar o papel do dólar como moeda-reserva internacional estável. A formação do mercado do eurodólar e a contração do crédito no período 1966-1967 foram, na verdade, sinais prescientes da redução do poder norte-americano de regulamentação do sistema financeiro internacional. Foi também perto dessa época que as políticas de substituição de importações em muitos países do Terceiro Mundo (da América Latina em particular), associadas ao primeiro grande movimento das multinacionais na direção da manufatura no estrangeiro (no Sudoeste Asiático em especial), geraram uma onda de industrialização fordista competitiva em ambientes inteiramente novos, nos quais o contrato social com o trabalho era fracamente respeitado ou inexistente. Daí por diante, a competição internacional se intensificou à medida que a Europa Ocidental e o Japão, seguidos por toda uma gama de países recém-industrializados, desafiaram a hegemonia estadunidense no âmbito do fordismo a ponto de fazer cair por terra o acordo de Bretton Woods e de produzir a desvalorização do dólar. A partir de então, taxas de câmbio flutuantes e, muitas vezes, sobremodo voláteis substituíram as taxas fixas da expansão do pós-guerra” (Harvey, 1992, p. 135).

O regime de acumulação intensivo-extensivo, a partir da década de 60, encontra dificuldades crescentes para sua reprodução (Granou, 1974; Harvey, 1992). As lutas sociais se manifestaram através do movimento de contracultura, autonomização do movimento estudantil (em toda a Europa e em outros continentes, mas com destaque para o Maio de 68 em Paris) e do movimento operário (Itália, França, etc.), bem como o ressurgimento ou fortalecimento de tendências revolucionárias, que já vinha se esboçando anteriormente (anarquismo, situacionismo, etc.).

O esgotamento do regime de acumulação intensivo-extensivo foi provocado, mais uma vez, pela tendência declinante da taxa de lucro. O sucesso deste regime de acumulação dependia do alto grau de exploração dos trabalhadores do capitalismo subordinado, da constante reprodução ampliada do mercado consumidor e da integração da classe operária no capitalismo oligopolista transnacional, elemento que dependia dos dois anteriores. A partir do final da década de 60, estes três elementos encontraram dificuldades crescentes em se reproduzir.

A taxa de lucro começa a cair a partir da década de 60 e continua em queda até o início da década de 70 (Harvey, 1992). A solução do capital não poderia ser fundamentada apenas num novo aumento da exploração dos trabalhadores do capitalismo subordinado, pois isto significaria uma elevação extrema da exploração e teria conseqüências, tal como, além de aumentar a instabilidade dos países capitalistas subordinados, impedir a ampliação do mercado consumidor e este, no capitalismo oligopolista transnacional, já não podia crescer no ritmo necessário para a reprodução ampliada do capital. A conseqüência imediata disto seria o fim do estado integracionista, pois a solução encontrada foi o aumento da exploração, tanto no capitalismo imperialista quanto no capitalismo subordinado, além de uma nova disputa interimperialista pela partilha do mercado consumidor.

Assim, ao ver o recrudescimento do mercado consumidor, a disputa por este se torna cada vez mais acirrada, bem como se busca desacelerar a produção de meios de consumo, seja através da transformação de capital produtivo em capital improdutivo (capital financeiro), seja através de guerras, o que permite um fortalecimento da indústria bélica e a destruição das forças produtivas nacionais que, no pós-guerra, se torna um mercado consumidor subordinado.

Juntamente com isto, e esta é a estratégia fundamental, se aumenta a taxa de exploração, tanto nos países imperialistas quanto nos subordinados. Assim, temos o novo regime de acumulação, que vai sendo gestado no final da década de 60 (com exceção do Japão, que lança suas bases já na década de 50, sendo sua forma de reconstrução nacional, mas apenas no que se refere ao processo de valorização), mas que só começa a existir efetivamente e predominantemente a partir da década de 80. Trata-se do regime de acumulação integral, que busca aumentar, simultaneamente, a extração de mais- valor relativo e mais-valor absoluto. Esta busca de aumento da taxa de exploração vai ser batizada de “reestruturação produtiva” e terá no toyotismo (Viana, 2001) e modelos similares a forma como o capital irá agir no processo de valorização, o que será complementado pelo estado neoliberal e pelo neo-imperialismo.

As mudanças no processo de valorização ocorrem tendo por base a reorganização do processo de trabalho, que, na verdade, é uma continuidade do taylorismo-fordismo, com alterações formais (Viana, 2001). O taylorismo centrava sua busca de aumento de extração de mais-valor relativo na organização do trabalho, no controle e gerencia, e o fordismo no uso da tecnologia. O toyotismo, bem como modelos similares, focaliza os dois processos em conjunto. O sistema toyota subordina o processo de produção à demanda do mercado (o método kan-ban, inspirado nos supermercados norte- americanos), o que gera um processo de revezamento entre intensificação e não-intensificação do trabalho, processo que tem como vantagens: não produzir em excesso; proporcionar descanso que faz os trabalhadores suportarem os momentos de extrema intensificação do trabalho. O trabalho em equipe e a pluri-especialização visa catexizar o trabalhador, ou seja, busca fazer com que ele invista suas energias físicas e mentais no processo de trabalho para aumentar a produtividade. O controle de qualidade é apenas uma nova roupagem da vigilância proposta por Taylor, agora realizada pelos próprios trabalhadores (embora não totalmente).

Ao lado disso, temos os fenômenos da terceirização, da sub-contratação, do trabalho “autônomo”. Estes são métodos secundários de exploração capitalista (Marx, 1986b) e que são complementados pela desregulamentação das relações de trabalho e pela lumpemproletarização9, sendo que o primeiro permite a diminuição de custos pela empresa capitalista e o segundo aumenta o desemprego e a competição pelo mercado de trabalho, o que proporciona a desvalorização da força de trabalho e diminuição salarial.

Assim, temos o elemento principal do processo de acumulação integral: busca de aumento de extração de mais-valor relativo e mais-valor absoluto (Viana, 2001; Harvey, 1992), pois este conjunto de mudanças não só afeta os salários como também a jornada de trabalho, que, surpreendentemente, aumenta. “O mercado de trabalho, por exemplo, passou por uma radical reestruturação. Diante da forte volatilidade do mercado, do aumento da competição e do estreitamento das margens de lucro, os patrões tiraram proveito do enfraquecimento do poder sindical e da grande quantidade de mão-de- obra excedente (desempregados ou subempregados) para impor regimes e contratos de trabalho mais flexíveis. É difícil esboçar um quadro geral claro, visto que o propósito dessa flexibilidade é satisfazer as necessidades com freqüência muito específicas de cada empresa. Mesmo para os empregados regulares, sistemas como ‘nove dias corridos’ ou jornadas de trabalho que têm em média quarenta horas semanais ao longo do ano, mas obrigam o empregado a trabalhar bem mais em períodos de pico da demanda, compensado com menos horas em períodos de redução da demanda, vêm se tornando muito mais comuns. Mais importante do que isso é a aparente redução do emprego regular em favor do crescente uso do trabalho em tempo parcial, temporário ou subcontratado” (Harvey, 1992, p. 143)10.

Este processo demonstra a nova preocupação do capital: aumentar a extração de mais-valor absoluto. Assim, o que temos é que o novo regime de acumulação combina a busca de aumento de extração de mais-valor relativo com a intensificação da extração de mais-valor absoluto (Viana, 2001; Harvey, 1992). “Aqui, a acumulação flexível parece enquadrar-se como uma recombinação simples das duas estratégias de procura de lucro (mais-valia) definidas por Marx. A primeira, chamada de mais-valia absoluta, apóia-se na extensão da jornada de trabalho com relação ao salário necessário para garantir a reprodução da classe trabalhadora num dado padrão de vida. A passagem para mais horas de trabalho associadas com a redução geral do padrão de vida através da erosão do salário real ou da transferência do capital corporativo de regiões de altos salários para regiões de baixos salários representa uma faceta da acumulação flexível de capital” (Harvey, 1992, p. 174).

Nada disso seria possível se o estado capitalista continuasse sendo integracionista. As novas necessidades do novo regime de acumulação fazem emergir o estado neoliberal. A ideologia neoliberal surge no pós-guerra com a obra de Hayek e tem desdobramentos em outras obras e pensadores, tal como Milton Friedman (Anderson, 1998), mas tratava-se de “idéias fora da época”. As idéias neoliberais em plena época de regime de acumulação intensivo-extensivo, com seu estado integracionista, não tinha a menor chance de vingar. As novas necessidades do capitalismo produzem a recuperação de velhas idéias. O neoliberalismo vai sendo gestado e chega a ser implantado no final da década de 70 e início da década de 80 (Margareth Tatcher em 1979, na Inglaterra; Ronald Reagan, nos EUA, em 1980).

O estado neoliberal é um complemento necessário para a luta pelo aumento da extração de mais-valor. A desregulamentação das relações de trabalho, o fim da política social de “pleno emprego”, são ações estatais, entre outras, que atingem diretamente o processo de valorização. Além disto, a redução dos gastos estatais e o “livre mercado” buscam proporcionar uma política estatal favorável à retomada da acumulação capitalista, bem como a nova política fiscal e internacional.

Ao romper com a política integracionista (“bem estar social”) e adotar a política neoliberal, o estado capitalista deve se tornar, tal como coloca alguns de seus ideólogos (Bobbio, 1987; Bobbio, 1988), “mínimo e forte”. estado mínimo é aquele que deixa a mão invisível do mercado, isto é, a ânsia pelo lucro das empresas capitalistas, tomar conta de tudo. O livre mercado revela-se, na verdade, livre exploração. O estado forte é o estado repressor, uma necessidade do capitalismo, pois como o estado neoliberal rompe com o integracionismo, a política de integração da classe operária, provocando o aumento da exploração e, principalmente, da lumpemproletarização, o que gera mais conflitos sociais, protestos, violência, criminalidade e, por conseguinte, do ponto de vista do estado capitalista, produz a necessidade um estado repressor. O estado forte tende a se tornar cada vez mais um estado penal, tal como descrito por Wacquant (2001). Com o aprofundamento do regime de acumulação, também ocorre a tendência de acirramento das lutas sociais e o fortalecimento do bloco revolucionário, o que fornece mais material para a repressão.

O fim do integracionismo marca o recuo da cidadania (social), com a limitação dos direitos sociais. O fim do integracionismo estatal é substituído por uma espécie de “integracionismo civil”, incentivado pelo estado e pelo capital, expresso em instituições da sociedade civil, principalmente ONGs, que buscam cumprir parte das funções de integração do estado capitalista e cooptar indivíduos, integrando-os novamente. O recuo da cidadania social ainda não está completo e a ampliação deste processo (que pode até atingir a cidadania política) vai depender das lutas sociais e das necessidades impostas pelo novo regime de acumulação. O mesmo ocorre com a democracia partidária burocrática, que até agora não sofreu grandes alterações, em parte devido a não ter perdido sua eficácia conservadora11, mas somente com a instauração completo do regime de acumulação integral é que será visível a nova forma assumida pela democracia burguesa e o grau de mudanças que sofrerá, sendo que, em muitos países, há a tendência para a volta de regimes ditatoriais.

O imperialismo também tende a assumir uma nova forma. O neo-imperialismo é um imperialismo integral, cuja estratégia fundamental ainda consiste na transferência de mais-valor, em parte através das empresas transnacionais, deslocando seus investimentos para locais onde a força de trabalho é mais barata, e através da criação de nichos exclusivos de mercado consumidor, onde que aumenta a tendência competitiva no interior do bloco de países imperialistas. Isto é complementado pela destruição cíclica e localizada de forças produtivas nacionais, através de guerras rápidas que incentivam a indústria bélica e a produção de “capital improdutivo” (armas) e abrem caminho de ação para investimentos nos países destruídos pela guerra (Afeganistão, Iraque, etc.). Isto, obviamente, aumenta os conflitos internacionais (criando expectativas de novas guerras, que, por sua vez, incentivam a produção bélica e o armamento mundial) e reforça o pacifismo, o antiamericanismo, etc.

O regime de acumulação integral não completou seu ciclo de formação, mas já está avançado no processo de valorização e na regularização estatal, embora ainda devam ocorrer ajustes e aprofundamentos. O neo-imperialismo, por sua vez, está esboçado e já desenvolveu algumas de suas características e tendências (como a ALCA – Aliança do Livre Comércio das Américas, no qual os EUA tentam criar o seu nicho exclusivo de mercado consumidor). Entramos, assim, num novo regime de acumulação, o integral, que é o do capitalismo neoliberal12.

A política institucional, até aqui, já proporcionou o estado neoliberal, o recuo da cidadania social e a permanência da democracia partidária burocrática, mas novos desdobramentos devem ocorrer, havendo a possibilidade de ocorrer um endurecimento do neoliberalismo ou, dependendo do país em questão, a volta do fascismo e de regimes ditatoriais, sendo que neoliberalismo e fascismo podem também fazer uma aliança. Há também a possibilidade, caso o novo regime de acumulação continue frágil como está, a passagem para um capitalismo de guerra (o que alguns chamam de “economia de guerra”, segundo o léxico conservador), no qual a destruição das forças produtivas deixa de ser cíclica e nacional e assume extensão mundial ou em regiões inteiras do globo terrestre.

Obviamente que estas possibilidades históricas são as que ocorrem com a permanência do modo de produção capitalista, sendo que outra possibilidade é a transformação social, pois um novo período de lutas sociais começa a emergir, como o processo crescente de corrosão da hegemonia burguesa na sociedade civil, com o fortalecimento do bloco revolucionário, de concepções (anarquismo, situacionismo, conselhismo, etc.), organizações políticas e dos trabalhadores, ações, manifestações, etc., que marcam uma ascensão das lutas sociais tal como não se vê desde o final da década de 60 do século 20. Assim, a história não acabou e o futuro ainda será decidido pela ação humana, na qual a velha opção continua colocada: autogestão ou barbárie.

Considerações Finais

A luta secular entre as classes sociais produziu o conteúdo e a formas da política institucional, e, junto com ela, a reprodução da dominação capitalista. A hegemonia burguesa dificulta a visão disto e as representações cotidianas reforçam a ilusão de que o estado, a democracia e a cidadania são eternos e imutáveis, tanto em sua forma quanto em seu conteúdo. A ideologia vem para sistematizar esta falsa consciência e dar-lhe uma aparência de pensamento científico e/ou filosófico, fornecendo assim o status de pensamento complexo e “superior”. Deixando de lado o fato de que a ciência e a filosofia também são produtos históricos e envolvidos no processo de dominação, assim se cria uma muralha inexpugnável de ilusões que produzem uma cegueira coletiva.

No entanto, reconhecer a existência da hegemonia burguesa significa perceber, ao mesmo tempo, o que escapa desta hegemonia. Aqui enfatizamos a hegemonia e as instituições burguesas, mas existe uma guerra civil oculta, um movimento subterrâneo no sentido da abolição desta hegemonia, junto com movimentos cíclicos revolucionários, quando emerge a guerra civil aberta. Se tal movimento ainda não proporcionou a necessária transformação social, isto não deve nos fazer cair no pessimismo. As grandes lutas do passado chegaram perto da concretização da abolição do capitalismo e em condições históricas desfavoráveis (a primeira grande chance de revolução mundial ocorreu no início do século passado, sendo que muitos países estavam em transição para o capitalismo, a começar pela Rússia, o que dificultava uma internacionalização da revolução proletária). Hoje o contexto é diferente a abre amplas possibilidades de concretização da autogestão social.

Assim, a história da política institucional burguesa é a história da supremacia burguesa, mas, ao mesmo tempo, uma demonstração de sua fragilidade, de seus limites, e da possibilidade de transformação social. O estado capitalista, aparelho privado do capital, a cada crise do capitalismo, perde sua legitimidade, pois tem que demonstrar publicamente o seu verdadeiro caráter e romper com a aparência de neutralidade. A democracia burguesa cada vez mais revela sua essência, pois o revezamento das maiorias eleitorais nada altera na vida cotidiana das pessoas e não permite nenhuma transformação efetiva. A cidadania, último baluarte do reformismo contemporâneo, se despedaça e soçobra, deixando os explorados e oprimidos enxergarem o seu verdadeiro significado. Assim, nos encontramos hoje diante de uma crise de legitimidade das instituições burguesas, que ainda não assumiu grandes proporções mas que caminha para isto.

Buscamos, com o presente trabalho, realizar um esclarecimento deste processo e colocar a necessidade de se pensar uma alternativa ao mundo decadente que se encontra diante dos nossos olhos. O bloco dominante, devido a crise do regime de acumulação, tem que assumir sua verdadeira face, tem que retirar sua máscara e se tornar transparente. O bloco reformista, se esfacela, pois parte das classes auxiliares da burguesia, aquelas mais serviçais e que preferem a aliança do que o combate, que não aspira a substituir a burguesia, se integra no bloco dominante, tal como fazem os partidos social- democratas, socialistas, etc. A parcela do bloco reformista que permanece pregando o reformismo, além de faltar senso de realidade e força real, se perde na busca de um paraíso social-democrata em ruínas ou então apelando para um neo-reformismo sem fundamentos e perspectivas, mas que podem se tornar os novos representantes do capital para controlar os explorados e oprimidos, na falta de outra alternativa. Ainda tem o fascismo, o capitalismo estatal (bolchevismo) e o capitalismo de guerra como terríveis opções do capital. Mas somente a ascensão do bloco revolucionário, das lutas operárias, dos oprimidos, é que tornará possível o crescimento destas últimas forças, pois a burguesia sempre se unifica em torno daqueles que podem salvá-la, seja de uma forma ou de outra.

Assim, a emergência de uma alternativa vai sendo engendrada nas lutas cotidianas, no processo de autonomização dos explorados e oprimidos, na luta de classes na produção e na sociedade civil, na formação de um forte bloco revolucionário, que tende a se unificar através de uma convergência prática (pois, devido a diversos motivos, cujas raízes se encontram no modo de vida capitalista, ele se encontra fragmentado), rompendo com o isolamento e as diferenças de tradições intelectuais que não passam, como já dizia Marx, do cérebro dos mortos torturando o cérebro dos vivos: “a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos” (Marx, 1986a, p. 17). O próprio pensamento de Marx se tornou parte da tradição opressora, principalmente através de sua metamorfose deformadora chamada bolchevismo e em expressões semelhantes.

No entanto, a tendência existe e o processo de libertação humana é uma necessidade. A emergência de um mundo novo, radicalmente diferente, que concretize as promessas libertárias, enfim, a autogestão social, é uma possibilidade e uma tendência cada vez mais forte. Os obstáculos são muitos, mas vencer o obstáculo mental da incapacidade de pensar o novo e de compreender o presente, é uma necessidade. A consciência antecipadora deve apanhar os sinais e interpretá-los com base na realidade concreta e assim não ver apenas “o que está aí” mas também o “ainda-não- existente”(segundo linguagem blochiana), a história subterrânea da revolução social. O engendramento de um novo mundo é também a formação de uma nova percepção da realidade e um reforça o outro. Superar os fetichismo e compreender que a sociedade é o conjunto das relações sociais instituídas pelos seres humanos e que, por isso, pode ser transformada por eles, é uma conquista que contribui com a libertação humana e que, portanto, é uma necessidade. O futuro é constituído pela ação humana, pelas lutas sociais. Esta é a lição da história. Uma vez que “a lição sabemos de cor”, então devemos colocar em prática o saber adquirido.


Estado Capitalista: Aparelho Privado do Capital

1 O estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma ‘apropriação’, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos, que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade, que um privilegio que se pudesse deter; que lhe seja dado como modelo antes a batalha perpétua que o contrato que faz uma cessão ou a conquista que se apodera de um domínio. Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais que se possui, que não é ‘privilegio’ adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas – efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados” (Foucault, 1983, p. 29).

2 Se Foucault apresenta um discurso do poder porque oculta sua fonte, Baudrillard apresenta outro discurso do poder disfarçado e envolto no construto de “sedução”; ambos convergem na tese de que o “poder não existe”, que em Foucault é subentendida como poder total e em Baudrillard, onde ele é apenas um “simulacro” (cf. Baudrillard, 1984).

3 A palavra “política”, tem dois significados na linguagem corrente: a) a ação planejada do estado em alguma atividade específica (por exemplo, política ambiental, política social, política econômica, etc.) e b) disputa partidária (ou de grupos ou classes) visando conquistar o poder de estado. O primeiro significado é aceitável embora possa ser substituído pelo conceito de planejamento estatal mas o segundo não passa de uma concepção burguesa da política no qual só merece o reconhecimento de luta política aquela que se dirige diretamente para o estado capitalista e é só ele que pode “sancionar” o caráter político dessa luta.

4Alguns devem estranhar a denominação de “estado tributário” ao invés de “estado asiático” por relação com o modo de produção asiático, mas prefiro utilizar o conceito de modo de produção tributário em vez de asiático como definiu Marx. Isto porque, segundo estudos mais recentes, este modo de produção também existiu fora da Ásia e o conceito carregado com uma conotação geográfica se torna impreciso.

5 O historiador H. Pirenne interpretou esta proibição considerando-a uma prova de que esses mercados locais eram tão insignificantes do ponto de vista comercial que os camponeses (servos) iam mais por diversão do que por buscar vantagens econômicas (Pirenne,1968). Entretanto, o “vagar” pode ser apenas um pretexto para a proibição da expansão do mercado e que poderia levar os servos a conseguirem uma maior autonomia. Portanto, isto seria uma expressão das lutas de classes.

6 “Hoje em dia, a supremacia industrial traz consigo a supremacia comercial. No período manufatureiro propriamente dito, é, ao contrário, a supremacia comercial que dá o predomínio industrial” (Marx, 1988a, p. 278).

7 Para conhecer a tese do estado absolutista como “feudal” cf. Anderson (1986); Hill (1989); para a tese do “estado de transição”, cf. Santiago (1988); Falcon, (1984).

8 Barrot diz: “O estado nacional é o produto do capital, mas não se identifica com ele. O capital não cria as condições naturais e políticas - apenas as modifica” (Barrot, 1977, p. 180).

9 A política do estado absolutista a favor do desenvolvimento das manufaturas e do capitalismo está bem documentada neste texto.

10 Sobre a relação da igreja e a ascensão do capitalismo cf. Tawney (1971).

11 É claro que a intervenção estatal na esfera da produção-distribuição-circulação se diferencia em países e épocas diferentes. A esse respeito dois representantes da escola derivacionista nos dão um exemplo: a intervenção do estado “é proporcionalmente mais importante no setor industrial, infra-estrutural e energético nos países subdesenvolvidos. Ao contrário, é menos importante na reprodução da força de trabalho nos países subdesenvolvido em comparação com os desenvolvidos” (Mathias & Salama, 1983, p. 47).

12 “A primeira revolução francesa, em sua tarefa de quebrar todos os poderes independentes – locais, territoriais, urbanos e provinciais – a fim de estabelecer a unificação civil da nação, tinha forçosamente que desenvolver o que a monarquia absoluta começara: a centralização, mas ao mesmo tempo o âmbito, os atributos e os agentes do poder governamental. Napoleão aperfeiçoara esta máquina estatal. A Monarquia Legitimista e a Monarquia de Julho nada mais fizeram do que acrescentar maior divisão do trabalho, que crescia na mesma proporção em que a divisão do trabalho dentro da sociedade burguesa criava novos grupos de interesses e, por conseguinte, novo material para a administração do estado” (Marx, 1986a, p. 114).

13 “Mas sob a monarquia absoluta, durante a primeira revolução, sob Napoleão, a burocracia era apenas o meio de preparar o domínio de classe da burguesia. Sob a restauração, sob Luís Filipe, sob a República parlamentar, era o instrumento da classe dominante, por muito que lutasse por estabelecer seu próprio domínio” (Marx, 1986a, p. 114. Grifos Meus). Que para Marx a autonomia relativa do estado se encontra na burocracia é óbvio. O problema é que a contra-revolução não gosta de ver o óbvio, principalmente nos escritos de Marx. Esta concepção é parecida com a posição de Proudhon: “O Estado, por assim dizer, mandatário ou servidor, não existe, pois ele cria para si um interesse à parte, uma razão de Estado” (apud. Bancal, 1981).

14 Sobre a dependência do estado em relação a acumulação capitalista: cf.: Offe & Ronge (1984).

15 Existe uma concepção, pseudo-marxista, de que a burocracia não é uma classe social. Sem dúvida, são os burocratas “marxistas” os inventores desta tese. A burocracia é uma classe auxiliar da burguesia e vive da exploração que esta realiza sobre o proletariado. A percepção da existência da burocracia enquanto classe tem em Marx um dos primeiros vislumbres mas foi com Makhäisky (1981) que se tornou visível mais amplamente o seu caráter e relação com o movimento operário. João Bernardo (1975) aprofundou a compreensão da burocracia enquanto classe social, que ele denominou, inicialmente, tecnocracia, passando para burocracia e em seus escritos mais recentes passou a denominá-la como “classe dos gestores” (veja sobre a tese de João Bernardo: Bruno, 1986).

16 “Ao contrário da posição reformista, penso que não se pode considerar que as classes dominadas podem apropriar-se do estado, aparelho por aparelho, utilizando ramos ou aparelhos do estado para neles constituírem poderes barricados próprios. O que se vê é que as classes dominadas se exprimem no interior do aparelho de estado como centros de resistência face ao poder da burguesia ou então como movimentos que dividem o pessoal ou os aparelhos de estado. Portanto, as classes-apoio e, mais geralmente, as classes dominadas existem no aparelho de estado, as suas lutas atravessam o aparelho de estado mas, devido precisamente à materialidade institucional do aparelho de estado e à unidade do poder de estado, elas não existem da mesma maneira que as frações próprias e autônomas, verdadeiros poderes de decisão, mas centros de limitação, de resistência, em relação ao exercício do poder das classes dominantes” (Poulantzas, 1978, p. 92)

17 Marx observou isso em relação à burocracia estatal (Marx, 1983).

18 Para uma crítica do direito cf. Mialle (1989).

19 “A concentração dos locais de trabalho, decorrentes da concentração do capital, elevou – tendo em vista o valor da renda da terra – de tal maneira os aluguéis que a necessidade de espaço residencial só pode ser satisfeita através de medidas estatais de apoio (subvenções para moradia, construções de baixo custo, leis do inquilinato). Assim como seguro de saúde combate às conseqüências desintegradoras de uma limitação ou interrupção transitória de trabalho assalariado, o seguro de desemprego tem a função de evitar que os trabalhadores atingidos pelo desemprego se esquivem do controle que sancionam sua disposição para o trabalho” (Lenhardt & Offe, 1984, p. 26). Além dessas pode-se acrescentar inúmeras outras como a política de transporte coletivo que possibilita a locomoção da força de trabalho.

20 Alguns autores buscam definir a democracia tratando-a, simultaneamente, como realidade existente e como projeto político (cf. Saes, 1987). Tal abordagem utiliza o recurso de acrescentar um adjetivo a palavra democracia e com isso temos ao lado da indesejável democracia burguesa, a desejada democracia proletária ou socialista. Entretanto, isto entra em visível contradição com a definição de democracia anteriormente fornecida e, além disso, falar em uma “democracia burguesa” tem sentido por ela se diferenciar da ditadura burguesa (que é uma oposição entre ditadura burguesa oculta — democracia — e ditadura burguesa aberta) e da democracia escravista, mas no caso de uma “democracia operária” isto não tem o menor sentido.

21 “Ali onde varia a forma de Estado, varia simultaneamente o regime político. Assim, a cada forma de Estado corresponde um regime político. Isto nos permite designar uma certa forma de Estado e o regime político que lhe é correlato por uma única expressão” (Saes, 1987, p. 22). Claro que o autor diz que estes termos não são sinônimos mas complementares. Entretanto, se há correspondência entre eles, então é desnecessário usar duas expressões e, a título de exemplo, poderíamos dizer que existe uma forma de Estado democrático quando o padrão de organização interna e a relação entre o corpo de funcionários e os membros das classes exploradoras na definição/execução das políticas estatais são (ambos) democráticos.

22 Além da definição de Saes podemos citar esta: “no sentido amplo, chama-se regime político a forma que, num dado grupo social assume a distinção geral entre governantes e governados. Numa concepção mais restrita, o termo ‘regime político’ aplica-se tão somente à estrutura governamental de tipo particular de sociedade humana: a nação” (Duverger, 1966, p. 09).

23 A partir desta concepção parece se tomar vazios os termos derivados de democracia, tais como democratas, democratização, democratizar, etc. Porém, estes termos continuam se aplicando a determinada realidade. Assim, por exemplo, democrata é um partidário da democracia e democratizar significa ampliar a participação restrita (que continua restrita, ou seja, não ultrapassa os limites intransponíveis do regime democrático-burguês) das classes sociais, principalmente das classes sociais subalternas e exploradas.

24 “Do povo estavam excluídos pelo crivo da cidadania, as mulheres, os escravos, os servos, os pastores e os estrangeiros. Os cidadãos, após a reforma legislativa, constituíam 100% da população. Estavam longe de propor uma forma de poder que reunisse toda população, mesmo aquela restrita população reunida entre os muros da polis” (Costa, 1986, p. 20).

25 Tais aspectos foram descritos, no caso do Partido Social-Democrata Alemão, por Michels (1981).

26 “O ato eleitoral e seus resultados desencadearam uma imediata reação nas massas. Sem esperar o decreto de anistia, elas se jogaram às prisões para libertar os insurretos de 1934. Isto aconteceu em Valencia, em Oviedo (nas Astúrias) e um pouco por toda a Espanha. A essa libertação seguiram-se greves políticas generalizadas pedindo a reintegração imediata dos operários demitidos e o pagamento dos salários atrasados. A elas se juntaram greves de caráter mais reivindicativo, algumas longas. Os patrões respondiam fechando as fábricas. No campo a situação tornou-se ainda mais explosiva. Os camponeses ocupavam imediatamente as terras dos grandes proprietários e começaram a cultivá-las. Isso aconteceu em Badajoz, Cáceres, na Extremadura, na Andaluzia, em Las Tellas e em Navarra. Incidente sangrentos verificaram-se entre trabalhadores rurais e guardas-civis. Os patrões responderam não contratando homens para as colheitas, mesmo ao preço de substanciais perdas econômicas — ao mesmo tempo a igreja tomou-se o alvo da ira popular: a qualquer boato sobre uma ‘conspiração de padres’, conventos e igrejas eram incendiados” (Almeida, 1981, p. 27-28).

27 Esta verdade é admitida tanto por conservadores assumidos como por pessoas influenciadas pelo marxismo. Peguemos o exemplo de Lipset: “talvez a generalização mais comum, associando os sistemas políticos a outros aspectos da sociedade, seja a de que a democracia está relacionada com a situação de desenvolvimento econômico. Quanto mais próspera for uma nação, tanto maiores são as probabilidades de que ela sustenha a democracia” (Lipset, 1967, p. 49). Esta posição é análoga à de Alan Wolfe: “a expansão da democracia tem sido uma característica em cada Ascenso da onda de Kondratiev, da mesma maneira que a desesperança e o pessimismo sobre a democracia caracterizaram as classes dominantes a cada descenso da curva” (Wolfe, 1980, p. 19).

28 Podemos citar este protesto em 1951 de Palmiro Togliatti, do Partido Comunista Italiano, sobre o regime eleitoral inglês: “disserto, tem lugar na Inglaterra eleições regulares, com a conseqüente rotatividade de partidos no poder; mas, nas recentes eleições, por exemplo, o partido trabalhista obteve 300 mil votos a mais que o partido conservador e, apesar disso ficou em minoria no parlamento. Atuou em detrimento dos trabalhistas uma organização eleitoral criada e mantida com a finalidade de fazer com que, na balança eleitoral, pesem mais as forças conservadoras e reacionárias, e, portanto, de tomar particularmente difícil a afirmação dos operários como força de governo. E se trata, vejam bem, de um partido operário como o trabalhista, que não é nem revolucionário nem proletário, mas burguês e timidamente reformista” (Togliatti, 1980, p. 98); “Na França, a consulta eleitoral foi sempre organizada de modo a atribuir ao voto do operário de Paris ou de St. Etienne um valor duas ou três vezes inferior ao voto de um proprietário de terras ou de um pastor da zona montanhosa” (Togliatti, 1980, p. 99) 29 “A ditadura é o poder não submetido à lei. Funciona, sem embargo, não só para suspender e abolir leis mas também para defendê-las e criá-las. Não está submetido aos ditames da lei porque é ela mesma a fonte destes ditames” (Moore, 1972, p. 34).

30 “A onipotência da ‘riqueza’ também é mais segura nas repúblicas democráticas porque não depende de uns ou outros defeitos do mecanismo político nem da má forma política do capitalismo; e, portanto, o capital, ao dominar (...) Esta forma, que é a melhor de todas, alicerça seu poder de um modo tão seguro, tão firme, que não perturba nenhuma troca de pessoa, nem de instituições, nem de partidos dentro da república democrática burguesa” (Lênin, 1987, p. 6l). S. Moore, baseando-se em Engels e Lênin, defende a mesma posição (cf. Moore, 1972).

31 Segundo Albert Soboul, a declaração dos direitos de 1789 reconhece o direito de liberdade econômica, cultural, etc, ou mais do que isso, incluindo também “as liberdades públicas e políticas”. “Ela é um direito natural impresctível, de acordo com o Art. 02 da declaração dos direitos, somente limitada pela liberdade de outrem (Art. 04). Ela é, primeiramente, a da pessoa, liberdade individual garantida contra as acusações e as prisões arbitrarias (Art. 07) e pela presunção de inocência (Art. 09). Senhores de si mesmos, os homens podem falar e escrever, imprimir e publicar livremente, à condição de que a manifestação das opiniões não perturbe a ordem estabelecida pela lei e salvo para responder pelo abuso desta liberdade (Arts. 10 e 11). (...) No plano político, o liberalismo burguês encamou-se na constituição dita de 1791 mas cujas principais disposições foram votadas desde o fim de 1789: com base na soberania nacional e na separação dos poderes (Arts. 03 e 06 da declaração), ela organizou um sistema representativo caracterizado de fato pela predominância da Assembléia Legislativa. A descentralização administrativa, a reforma judiciária, a nova organização fiscal e até a reorganização da igreja pela constituição civil do Clero (12 do Julho de 1790), respondiam à mesma preocupação de liberalismo: no quadro de urna organização corrente nacional, todos os administradores eram eleitos, e mesmo os bispos, por sufrágio censitário” (Soboul, 1985, p. 49-50). A ditadura Jacobina aproximou se em alguns aspectos da liberdade burguesa, embora não tenha colocado todos eles em prática, sob a justificativa de que era um governo de guerra. Tal como colocou A. Z. Manfred., a partir do 9 do termidor de 1794 (quando jacobinos foram derrotados), “as maiores realizações sociais e democráticas da ditadura jacobina foram anuladas. Em 1795 foi elaborada uma constituição que abolia o sufrágio universal e restaurava as classificações eleitorais baseadas na propriedade” (Manfred, 1982, p. 43-44).

32 Sobre isso, cf. Viana, 1991. Esta tese também é defendida pelo sociólogo T. Bottomore, que expressa algumas das dificuldades dos indivíduos das classes exploradas em participar da democracia burguesa: “grandes desigualdades de riquezas e rendimentos influenciam nitidamente o grau de participação dos indivíduos na direção da comunidade. Um rico pode ter dificuldades em penetrar no reino dos céus, mas encontrará relativa facilidade para penetrar nos altos conselhos dum partido político ou em algum ramo do governo. Pode também exercer influência sobre a vida política de outras formas: controlando os meios de comunicação, travando relações nos círculos políticos mais altos, assumindo um papel proeminente nas atividades de grupos de pressão e órgãos consultivos de diversos tipos. Um pobre não tem nenhuma destas vantagens: não possui relações influentes, pouco tempo ou energia lhe restam para dedicar à atividade política e tem pouca oportunidade de adquirir um conhecimento profundo de idéias ou fatos políticos. As diferenças que têm sua origem em desigualdades econômicas são acrescidas de diferenças educacionais. Na maioria das democracias ocidentais o tipo de educação ministrado às classes que fornecem, fundamentalmente, os dirigentes da comunidade diferencia-se nitidamente do ministrado às classes mais numerosas dos dirigidos” (Bottomore, l974, p. 111- 112).

A Face Oculta da Cidadania

1 “A cidadania é uma status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status” (Marshall, 1967, p. 76.).

2 “Houve um tempo em que a burguesia, então emergente, defendia idéias universais, como a cidadania, proposta para todos” (Buffa, 1987, p. 11); “Se foi com as revoluções burguesas que a burguesia tomou o poder estatal, e se foi com a Revolução Francesa que se instauram de vez a burguesia como classe dominante e o capitalismo como forma de produzir e viver, como situar a questão do Estado de direito a da cidadania? Como intrinsecamente burguesa? Respondo com um sim e um não... Não, se identificarmos esses resultados como conquista da burguesia – que se processa por longo período de transição entre o feudalismo e o capitalismo – por valores universais, quando carrega todos os segmentos subalternizados (camponeses, artesão, etc.), o chamado terceiro Estado, para a revolução. Sim, se nos ativermos à concepção do Estado de direito, de cidadania, depois que a burguesia se transforma em classe dominante; Principalmente depois que Napoleão Bonaparte torna-se Imperador, difundindo o capitalismo pelo mundo, a partir do século XIX” (Covre, 1991, p. 18-19). As “idéias universais” defendidas pela burguesia são idéias burguesas, e Marx já havia desmascarado elas, tal como se ê em sua análise da declaração dos direitos e deveres do homem e do cidadão (Marx, 1980). A questão é que a burguesia apresenta seus interesses particulares como interesses universais e propor tais interesses para “todos” não nada de verdadeiramente universal, pois isto não passa de uma impostura, tal como se vê nestes intelectuais.

Desenvolvimento Capitalista, Luta de Classes e Política Institucional

1 O neocolonialismo buscava exportar mercadorias e importar dos países subordinados matérias-primas e riquezas que auxiliavam o processo de acumulação de capital. O processo neocolonial abriu caminho para a implantação do capitalismo nos países subordinados, que constituíam modos de produção subordinados ao capitalismo internacional.

2 Amin consegue descrever bem as crises capitalistas, mas suas conclusões e linguagem deixam muito a desejar. Na verdade, as décadas de 50 e 70 as quais ele se refere não constituem um período de “verdadeiro liberalismo capitalista”, pois este período é-lhe anterior. O que ocorre neste período é a tentativa de superar a crise no interior do mesmo regime de acumulação, através de adaptações e mudanças formais.

3 Esquerdismo é a corrente que surge no interior do marxismo e foi assim batizada por Lênin (1989). Ela inclui os comunistas conselhistas (Korsch, Pannekoek, Mattick, Rühle, Gorter, etc.), a Esquerda Comunista Italiana (Bordiga), a Esquerda Extra-Parlamentar Inglesa (Sylvia Pankhurst), etc., que rompe com a social-democracia e o bolchevismo, combatendo, simultaneamente, o reformismo e o modelo vanguardista-bolchevique, embora Bordiga e o bordiguismo mantenham algumas ambigüidades neste último aspecto. A crítica ao regime soviético era comum a todas estas correntes, sendo que tal regime foi qualificado como sendo um capitalismo de estado, nada tendo a ver com o projeto socialista.

4 É claro que isto variava de acordo com o país. No caso da França, por exemplo, país que foi mais atingido pela guerra, devido a invasão nazista, o processo inflacionário era maior e assim os salários eram relativamente inferiores aos de outros países europeus e Estados Unidos: “De 1945 a 1949, os preços franceses foram multiplicados por 20, enquanto que são multiplicados por 4 na Bélgica, por 2 na Grã-Bretanha, por 1,8 nos Estados Unidos” (Mauro, 1973, p. 408). A partir da década de 50 o desenvolvimento dos países capitalistas imperialistas se torna mais homogêneo, com a reconstrução da Europa praticamente concretizado. 5 A composição orgânica do capital expressa o quantum de trabalho vivo (força de trabalho) e trabalho morto (meios de produção) utilizado no processo de produção, sendo que quanto maior for o trabalho morto e menor o trabalho vivo, menor é a taxa de mais-valia, criando a tendência declinante da taxa de lucro, pois somente o trabalho vivo acrescenta valor às mercadorias, enquanto que o trabalho morto apenas repassa o seu valor a elas. 6 Neste período histórico, todos os países do mundo já eram predominantemente capitalistas, o que significa dizer que o modo de produção capitalista já havia se tornado dominante em todos os países, com um quantum maior ou menor de persistência de modos de produção subordinados.

7 Utilizamos a expressão forma-mercadoria para distinguir as mercadorias dos serviços, que assumem a forma de uma mercadoria sem possuir o seu conteúdo material.

8 Este é o caso de Harvey (1992). No entanto, esta denominação é equivocada, pois toma apenas o fordismo como parâmetro para definir tal regime de acumulação, deixando de lado o papel do estado e da exploração imperialista, elementos fundamentais para se compreendê-lo. Outros, ainda mais equivocados, falam de “modo de produção fordista” (Altvater, 1995; Negri e Lazzarato, 2001), o que é um equívoco ainda mais grosseiro, pois considerar o “fordismo” (regime de acumulação intensivo-extensivo) como uma fase do capitalismo demonstra um problema de linguagem que revela incompreensão de alguns de seus aspectos, mas considerá-lo um modo de produção é, em primeiro lugar, considerar que ele é algo mais que uma fase do capitalismo e, em segundo lugar, abrir mão de conceitos fundamentais para compreendê-lo e isto chega ao extremo no caso de Negri e Lazzarato, que julgam que o capitalismo já foi substituído por uma sociedade pós-capitalista. Para uma crítica desta última concepção, veja Viana (2003b).

9 Lumpemproletarização, aqui, significa aumento do exército industrial de reserva, ou seja, transformação da força de trabalho ativa em força de trabalho inativa, subempregada, etc. (Viana, 2003c).

10 Um dos problemas do livro de Harvey está em ceder ao predomínio do léxico capitalista em detrimento da constituição de um léxico revolucionário para compreender o novo regime de acumulação. Daí seu uso de expressões como “mercado de trabalho flexível”, “acumulação flexível”, etc., que expressa um conjunto de eufemismos que partem do ponto de vista da classe capitalista, pois só tem sentido considerar “flexível”, por exemplo, o mercado de trabalho, do ponto de vista do capital, pois para os trabalhadores ele se torna “inflexível”. Criticamos, em outra oportunidade, embora nos referindo a outros autores, a utilização da expressão “flexibilização”: “Na verdade, não existe ‘flexibilização’ do aparato produtivo e muito menos dos trabalhadores, o que existe é uma ‘inflexibilidade’, pois tanto o aparato produtivo quanto os trabalhadores são submetidos ‘inexoravelmente’ e ‘implacavelmente’ ao objetivo de aumentar a extração de mais- valor relativo. A expressão mais adequada a qualquer relação ou fenômeno social deve ser compatível com o ‘ser’ que expressa. No caso da acumulação, o que se busca é concretizar uma acumulação integral, simultaneamente intensiva e extensiva através da extensão do processo de mercantilização das relações sociais e da busca de ampliação do mercado consumidor, mesmo que esta busca se caracterize, em parte, pela produção personalizada, e também pelo aumento da intensificação da exploração da força de trabalho. No caso da especialização ou do que alguns chamam de pluri- especialização (Coriat), trata-se de uma especialização ampliada, onde ao invés do trabalhador se dedicar a apenas uma atividade passa a se dedicar a várias, embora se mantenha afastado do controle do processo de trabalho, o que significa especialização no processo de execução, e continue não executando certas funções práticas que ficam a cargo de outros trabalhadores. No caso dos trabalhadores, o que ocorre é uma intensificação da exploração com a retirada de seus direitos já conquistados e da formação de um mercado de trabalho inflexível, onde os trabalhadores se submetem a subcontratação, ao desemprego, etc.” (Viana, 2001, p. 102-103).

11 A situação mundial proporciona, em muitos países, a vitória eleitoral das forças do bloco reformista, mas tais mudanças não produzem nenhuma alteração fundamental, pois o que ocorre é que os partidos socialistas no poder adotam políticas neoliberais, de acordo com os interesses do capital e a dinâmica mundial do capitalismo (Bourdieu, 1998), o que significa um enfraquecimento do bloco reformista no capitalismo contemporâneo, já que a maior parte abandona o reformismo ao chegar ao poder.

12 Denominamos a atual fase do capitalismo como neoliberal devido não só ao fato do regime de acumulação integral ter no estado neoliberal uma pré-condição como também a concorrência interimperialista se tornar uma tendência cada vez mais forte. Isto é, o capitalismo continua sendo oligopolista transnacional, mas agora cada vez mais destrutivo, competitivo (concorrência oligopolista e imperialista), explorador.

Referências Bibliográficas

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