13 de agosto de 2011

Do Terrorismo e Do Estado (Gianfranco Sanguinetti)

DO TERRORISMO E DO ESTADO 

A teoria e a prática do terrorismo divulgadas pela primeira vez

Gianfranco Sanguinetti

 Prefácio à Edição Francesa

Muito embora em Itália se publiquem numerosos livros sobre o terrorismo, poucos foram tão lidos e nenhum tão ignorado pela imprensa como este. Editado em fins de Abril de 1979, distribuído lentamente por um número restrito de livrarias, Del Terrorismo e dello Stato esgotou-se ao fim dos três meses do Verão, e até hoje não foi reeditado em Itália devido a algumas dificuldades que me foram criadas por uma estúpida e grosseira perseguição jurídico-policial, da qual falarei mais tarde. Para já, é mais interessante interrogarmo-nos sobre a razão do silêncio quase completo que envolveu um livro abordando um assunto de que se fala quotidianamente, mas sempre do mesmo modo falso, nas primeiras páginas de todos os jornais italianos, bem como na rádio e na televisão de Estado. Esta última fê-lo muito em especial numa rubrica ad hoc que precedia o telejornal, mas, como muitas pessoas mo referiram, unicamente para que uma amálgama heteróclita de peritos em terrorismo convocados para o efeito dissesse que as teses deste livro «não são convincentes». O mais curioso é que nem a televisão nem os jornais em causa ousaram evocar essas famosas «teses» sobre o terrorismo italiano, «teses» que, no entanto, a televisão e os mesmos jornais se esforçaram por qualificar como «não convincentes». Receariam antes que o fossem, para tão zelosamente as escamotear? Temeriam esses jornais e a televisão que os meus argumentos pudessem ser considerados pelo público mais persuasivos do que as suas canhestras fantasias sobre o terrorismo, pois todos fizeram da sua omissão um dever? E porquê tantas precauções? Que diabo de tão escandaloso se encontrará escrito neste livro para que até os que se sentiram na obrigação de falar nisso o mantenham secreto? Ou será que Do Terrorismo e do Estado revela mesmo segredos de Estado?
Na verdade assim é: este livro contém segredos de Estado. O fato de serem os seus próprios serviços secretos quem organiza o terrorismo e puxa os seus cordelinhos não constituirá o principal segredo do Estado italiano? E é precisamente isso que se encontra sobejamente demonstrado em Do Terrorismo e do Estado.
O que efetivamente não é convincente, não são de certo os meus argumentos, mas sim o comportamento contraditório do Estado e dos seus fiéis servidores em relação ao meu livro, pois se por um lado falam nele sem nada dizerem, nem que seja para fazer com que os italianos pensem que o que digo «não é convincente», por outro, e alguns dias após a «recensão» televisiva, a polícia política e um magistrado, conhecido pelo seu mal sucedido zelo em tentar tornar verosímeis todas as mentiras oficiais sobre o terrorismo, iniciavam uma complexa e tenebrosa perseguição jurídico-policial de que eu constituía o alvo. Deverei pois pensar que cometi o crime de não ser «convincente»? Se o nosso Código previsse um tal delito, todas as prisões da Europa não seriam bastantes para encerrar os nossos políticos, os nossos jornalistas, os nossos magistrados, os nossos polícias, os nossos sindicalistas, os nossos industriais e os nossos curas. Não, não foi disso nem por isso, que me acusaram, mas antes por ter sido demasiado convincente ao acusar o Estado dos seus crimes, fato que levou o dito Estado a tentar vingar-se mas, como se verá, com o inepto embaraço dos culpados que se querem fazer passar por inocentes. Os homens que governam este Estado são, como é sabido, os mesmos que, desde a época do massacre da Piazza Fontana e para não serem inculpados, se vêem por assim dizer perpetuamente obrigados a acusarem outros dos seus crimes e de todos os crimes, como se quisessem efetuar uma demonstração suplementar da teoria de Madame de Staël segundo a qual «a vida de qualquer partido que tenha cometido um crime político fica para sempre ligado a esse crime, quer para o justificar, quer para o fazer esquecer à força de poder».
Uma série de acusações disparatadas, tão grosseiramente abusivas e arbitrárias que ruíram uma após outra praticamente sem que os meus advogados tivessem de intervir, sucederam-se ao longo de seis meses e, ao sabor dos caprichos de quem as imaginou, iam do delito de contrabando ao de terrorismo, passando naturalmente pelos de posse de armas e de associação subversiva.
De todas estas acusações que, a ser seguida a letra da lei, me podem valer de vinte a trinta anos de prisão, ou, pelo contrário, cobrir de ridículo quem as congeminou, há duas que, com algum esforço e certa boa vontade, poderiam encontrar uma base de sustentação na realidade, enquanto as demais são completamente falsas e extravagantes.
Contrabandista, de certo o fui, o que muito me honra, pois não terei sido eu quem, a partir de 1967, contrabandeou de França as idéias motrizes da revolução moderna, as idéias da Internacional Situacionista? E também admito que, tendo em vista as condições em que se encontra o Estado italiano desde o contrabando do mal francês, esse meu delito não lhe foi proveitoso, pois no nosso país a propagação do mal deu-se de forma mais rápida e profunda do que em outras paragens, sendo a doença doravante inextirpável. Infelizmente para os meus acusadores, os termos do nosso Código, bem como as disposições do Tratado de Heisínquia, não prevêem sanções para o contrabando de idéias e, como todos muito bem o sabem, quando o Estado italiano se ocupa com idéias não é de certo no fito de as desalfandegar. Assim, a acusação de contrabando soçobra miseravelmente, mesmo que se tenha procurado desesperadamente, mas sem qualquer sucesso, camuflá-la por detrás de outros pretextos de direito comum.
Quanto à acusação de associação subversiva, e muito embora ignore o que o velho código fascista, ainda em vigor, entende precisamente por isso, confesso que também ela poderia ter um certo fundamento, pois pertenci, mas aberta e não clandestinamente, à Internacional Situacionista até à sua dissolução, ocorrida no já remoto ano de 1972. Este inquisitio post mortem contra a IS só me parece risível porque, a seguir os mesmos critérios, um magistrado mais amante da equidade deveria também abrir um inquérito contra a Liga dos Comunistas de Marx, a Associação Internacional dos Trabalhadores e emitir mandatos de captura contra os descendentes de todos os que albergaram Bakouníne durante a sua permanência em Itália.
A acusação de posse de armas não tem qualquer fundamento, e não é por ter sido várias vezes dirigida contra mim, sempre sem sucesso, que a mesma passa a ser mais verosímil. Contrariamente ao que o presidente Pertini afirma em seu delírio senil, parece-me que a guerra civil ainda não começou — e a prova é ele ainda ser presidente desta coisa que se assemelha a uma República — sendo pois inútil possuir armas. E, de toda a forma, quem me acusa de posse de armas deveria primeiramente encontrá-las ou, ao menos, introduzi-las em minha casa, e tal ainda não aconteceu.
Mas onde o arbitrário se alia à mais obtusa das arrogâncias é quando o mesmo procurador da República pretende que «segundo o conteúdo dos documentos das Brigadas Vermelhas existem estreitas relações entre a ideologia deste grupo e a da Internacional Situacionista da qual o dito Sanguinetti é representante». Para além do fato de a secção italiana da Internacional Situacionista já não existir desde 1970, não podendo eu, portanto, ser o seu «representante»; também para além do fato, ignorado apenas por ignorantes, de a IS nunca ter tido uma ideologia, porque as combateu todas, inclusive a da luta armada, é ainda necessário assinalar pelo menos duas coisas: para já seria menos infrutífero que os magistrados se instruíssem antes de acusarem e, em seguida, que é bastante mais fácil fazer sobressair as «relações estreitas» entre a ideologia policial do supracitado procurador e a das Brigadas Vermelhas, do que as existentes entre esta última e a teoria situacionista. E nada neste mundo é mais radicalmente oposto ao que escrevi sobre as Brigadas Vermelhas do que aquilo que elas nos contam sobre si próprias com o apoio de toda a imprensa burguesa e burocrática. Por último, recordo, para não me alongar numa argumentação por demais cômoda, que em Itália facilmente se encontram publicações da IS e que numerosos são os que as conhecem, contrariamente à voz deste ou daquele Autônomo encarcerado; e todos podem verificar que em nenhum caso «existem relações estreitas» entre estes escritos e os documentos das fantasmagóricas BVs, ao invés do que o impertinente procurador pretende.
* * *
Paralelamente, e enquanto as autoridades levavam a cabo esta canhestra perseguição com grande acervo de golpes baixos — que tinham porém o mérito de serem públicos e oficiais, como o são os despachos de pronúncia, as buscas, a vigilância permanente e as escutas telefônicas —, obscuras e vis personagens, facilmente identificáveis pelo seu comportamento policial, com menos escrúpulos mas sem maior sucesso, conluiavam-se na sombra com propósitos de provocação ou de intimidação. Não sendo um intelectual, nem pretendendo viver dos meus escritos, nunca aspirei a receber um reconhecimento público melhor do que este, assente no que eu próprio, por minha conta e risco, edito num país onde já ninguém ousa expor-se ao perigo de dizer às pessoas aquilo que não se quer que elas ouçam — ou seja a simples verdade sobre o terrorismo e sobre o resto.
Para uso do leitor estrangeiro, e para fazer à Itália a publicidade que ela merece, acrescento ainda que vários forasteiros foram presos na fronteira pela polícia italiana, trazidos pela força de volta a uma grande cidade e demoradamente interrogados só por possuírem um exemplar deste livro; que a magistratura também abriu um inquérito contra os que o distribuíram; e, por último, que a DIGOS, mesmo sem qualquer mandato de apreensão, arbitrariamente se locupletou com os poucos exemplares que pôde encontrar.
Desde já se anula qualquer dúvida que porventura tenha existido: eu disse a verdade. E, pelo mal que me desejam, compreendo que a minha obra é boa, pois não teria provocado um tal ódio Se ninguém me tivesse escutado. Com efeito, e dentre as numerosas pessoas que leram o que escrevi, e que são de idades, condições e opiniões variadas, muitas o aprovaram, poucas dele duvidaram e nenhuma o refutou.
Após a primeira edição deste livro, sucederam-se numerosos acontecimentos que, para além de não exigirem qualquer alteração em toda a minha argumentação e conclusões, as confirmam até, tanto na sua globalidade como em relação a pormenores. Assistimos à eliminação de Alessandrini, um magistrado que se tornara um empecilho, primeiro por ter desmontado o processo fabricado da Piazza Fontana, e depois porque, horas antes da sua morte oficialmente atribuída a subversivos, interrogara um ex-chefe do SID sobre os falsos testemunhos prestados por este último e por altos funcionários como Andreotti e Rumor aquando do mesmo processo. A seguir foi a vez de um discípulo de Moro, o honorável (1) Mattarella, presidente da Região Siciliana, conhecer o mesmo fim que o seu mestre, e pelos mesmos motivos, nas vésperas da formação do primeiro governo regional de compromisso entre a Democracia Cristã e o PCI. Também, e por repetidas vezes, vários polícias foram sumariamente abatidos a fim de fazer vingar sem oposição as lois scélérates (2) que ultrapassam e revogam as ainda por demais tolerantes leis fascistas, bem como a constituição republicana. Mas a mais importante de todas as novidades ocorridas no ano passado é certamente a que se segue: o PCI, vendo desaparecer com o fim de Moro a perspectiva de uma participação ativa e imediata no poder, adotou uma atitude de recuo, fazendo da sua participação ativa no espetáculo do terrorismo e da sua repressão o seu cavalo de batalha. Esta é manifestamente a principal novidade ocorrida após a saída da primeira edição deste livro, e merece a nossa atenção pois demonstra uma vez mais que os estalinistas não só sabem perfeitamente que é o poder quem dirige o terrorismo, mas também que, os que hoje em dia pretenderem o poder em Itália deverão demonstrar que sabem dirigir o terrorismo — o que é tão verdadeiro que levou um ex-ministro socialista a declarar recentemente numa entrevista: «Em Itália é com o terrorismo que se faz política».
Até 7 de Abril de 1979, o PCI contentara-se em lançar alguns estúpidos apelos rituais contra o terrorismo, com os quais retomava por sua conta, ou fingindo nelas acreditar, todas as versões oficiais dos atentados, provando assim à Democracia Cristã a sua boa vontade e a todos a sua má consciência. Mas, a partir desse dia, os estalinistas, por intermédio de magistrados a eles afetos, começaram a aproveitar a sua rica e vasta experiência de meio século na descoberta de falsos culpados, na encenação de processos falsificados e na produção de falsos testemunhos e de provas pré-fabricadas.
Assim, e como o seu duplo objetivo era de fazerem valer os seus méritos junto dos democratas cristãos e o de se verem livres de uma força política limitada mas incomodativa, pois situava-se à sua esquerda e insultava-os, os estalinistas encontraram nos Autônomos os bodes expiatórios de dez anos de assassínios, de chacinas e de terrorismo. Não houve crime cometido na década de 70 que não tivesse encontrado o seu autor na pessoa deste ou daquele Autônomo: desde homicídios insolúveis ao caso Moro, desde raptos misteriosos a roubos de obras de arte e de cavalos de corrida, tudo foi resolvido de pronto e como por encanto, pois cada delito encontrou o seu culpado e cada culpado teve como recompensa o cárcere. O gênio da harmonia e da invenção (3) de um simples magistrado estalinista não foi de certo suficiente para se obter uma solução tão harmoniosa dos processos desta última década: toda a organização oculta e pública do partido foi mobilizada a fim de se provar que a Autonomia era a luta armada, e o único dirigente autônomo que — como por acaso — ficou em liberdade, o ingênuo Pifano, foi rapidamente preso na posse de um belo saco contendo dois lança-mísseis russos, de resto já obsoletos, fornecidos ao dito Pifano pela FPLP, organização palestina estalinista, e notoriamente ligada por laços de gratidão reciproca aos serviços secretos italianos, como o próprio general Miceli o reconheceu. Assim, e se até esse momento as ligações entre a Autonomia e o terrorismo não haviam podido ficar demonstradas, o zeloso Pecchíoli (4) aproveitou logo a oportunidade para, algumas horas depois, declarar orgulhosamente ao Parlamento que, perante um fato tão eloqüente, ninguém continuaria a ter o direito de duvidar que os Autônomos constituíam a direção estratégica do terrorismo, como já o sustentava, mas sem provas, o magistrado estalinista Calogero. Os pobres Autônomos, que pela sua parte nada compreendiam quer de terrorismo, quer de revolução, viram-se assim, qual presa cobiçada, no matadouro dos estalinistas e da magistratura, sem sequer saberem como nem porquê. Só nos resta desejar-lhes que a prisão seja mais proveitosa para a sua instrução do que o foi a liberdade.
Estes admiráveis métodos estalinistas de acusação nada têm de original quer quanto ao seu engenho, quer quanto à sua grosseria, pois assemelham-se bastante aos utilizados nos famosos processos de Moscovo, nos anos trinta: a única diferença é a de os Autônomos presos não terem sido declarados culpados de todos os crimes — e a incongruência de um tal procedimento jurídico não pode ser imputada aos estalinistas, pois ninguém duvida que a mesma desapareceria rapidamente caso os estalinistas controlassem o poder e pudessem, no decurso dos interrogatórios, usar os seus já comprovados e infalíveis métodos.
Para os serviços secretos e para os chefes de bando democratas cristãos, que nos últimos anos sofreram tantas humilhações judiciais — não, claro, pela honestidade dos juizes, mas antes pela sua incompetência —, estes grandiosos processos contra os Autônomos, tão habilmente montados, abrem perspectivas inesperadas e de novos campos de ação: com efeito, desde essa altura, o espetáculo do terrorismo fez imensos progressos, e se até aí conseqüências judiciais desagradáveis impediam, em certa medida, os serviços secretos italianos de irem mais longe, agora que os estalinistas mostraram ser aliados hábeis e incondicionais, há razões para crer que, como Ulisses, esses serviços abrirão
«asas para loucos vôos, sempre derivando para a esquerda». (5)
Agindo assim, os burocratas do PCI não fazem nada mais do que aquilo que são capazes de fazer e incapazes de não fazer quando se encontram prestes a chegar ao poder: estes burocratas sabem perfeitamente que têm, hoje mais do que nunca, todas as razões para serem desonestos, pois é no período atual que se joga a sua missão histórica, e é natural que ponham em jogo todas as suas forças quando o que está em jogo é toda a sua fortuna (6); para além disso possuem uma outra razão para demonstrarem sem mais delongas a sua completa desonestidade histórica, pois com certeza não ignoram que é unicamente pela sua desonestidade, e não pelas suas tão dissimuladas virtudes, que a burguesia os pode utilizar em seu serviço. E, para sermos mais precisos, os estalinistas sabem bem que devem incessantemente inventar e descobrir conspirações contra esta democracia burguesa, seja para fingir que a amam, seja para demonstrar ao mundo os perigos que a mesma correria sem eles.
Se o PCI se comporta deste modo na vida pública, também age com a mesma desprezível baixeza na sua «vida privada» nas fábricas, indicando aos patrões quais os operários «terroristas» a despedir e a denunciar à justiça do trabalho, pelo simples fato de esses operários não quererem deixar-se subjugar e praticarem o absentismo — ou seja, pelo simples fato de lutarem.
Contrariamente ao que espera o sutil Berlinguer, os patrões e os homens mais avisados da Democracia Cristã concluem inversamente que quanto mais o PCI se mostra útil sem estar no governo, tanto mais é inútil integrá-lo nele; de forma que tudo aquilo que os estalinistas fazem para de qualquer forma chegarem ao poder é precisamente o que os mantém afastados dele, com a agravante de alienar o que lhes restava de simpatia e de ilusões eleitorais. Mas este é o drama dos estalinistas, e não nos diz respeito, pelo menos enquanto se não tornarem assaz malévolos para voltarem a praticar a sua arte preferida, ou seja, o crime político. Entrementes, e quanto ao que nos interessa de momento, é preciso ainda ter presente que o terrorismo burguês e o terrorismo estalinista, que visam os mesmos objetivos, mostram-se tal como sempre o foram, e dão à classe operária uma excelente oportunidade de reconhecer e de combater todos os seus inimigos, burocratas e burgueses.
* * *
O servilismo ativo com que toda a intelectualidade de esquerda inicialmente tolerou, e depois fez suas, as teses acusatórias oficiais sobre o terrorismo e contra os Autônomos, poderia parecer por demais espantoso a quem quer que ignorasse que a dita intelectualidade se comportou da mesma maneira sempre que teve a oportunidade de se comportar de outra. A versão estatal e estalinista dos fatos foi aceite ponto por ponto e, consequentemente, entregue à publicidade sem o mínimo respeito pela verdade histórica ou pela pretensa «dignidade intelectual». Aliás, é notório o papel desempenhado pelos intelectuais italianos, na sua maioria pró-estalinistas, durante este último meio século na difusão de todas as mentiras sobre o socialismo e a revolução. Hoje em dia, e como já não podem mentir sobre o «socialismo» soviético, ou chinês, ou cubano, têm que se reduzir a uma propaganda desenfreada das suas mentiras sobre a democracia burguesa, por cuja salvaguarda aceitam de boa vontade todos os sacrifícios, incluindo o de dela prescindirem. Assim, foi sem protestos, e em homenagem ao fetiche das garantias democráticas, que foi aprovado o decreto governamental sobre a detenção preventiva, sobre o aumento das penas para os delitos de terrorismo, e sobre a «posse de documentos subversivos» (7), enquanto as novas disposições sobre a detenção preventiva permitem, de agora em diante, manter um acusado sob prisão por doze anos sem qualquer processo. Doravante, a magistratura italiana, cuja sabujice para com o poder nunca foi um segredo de Estado e não carece de prova, nem sequer precisará de dar-se ao trabalho de demonstrar a culpabilidade de quem quer que seja para o condenar de fato a 12 anos de prisão, e isto só para começar: a partir deste momento, a acusação coincide com a condenação, e a ficção de uma legalidade democrática em Itália chegou ao seu termo, até como simples ficção. A Itália é uma república democrática alicerçada na exploração do trabalho e em éditos de encarceramento (8).
Numa passagem da Fenomenologia do Espírito, pouco conhecida dos nossos intelectuais e relativa ao terrorismo dos governos, Hegel dizia:
«O governo não pode pois apresentar-se como outra coisa senão como uma facção. O que se designa por governo é tão só a facção vitoriosa, e é precisamente no fato de ser facção que se encontra a imediata necessidade do seu declínio; e o fato de ela estar no governo torna-a inversamente facção e culpada... O ser-se suspeito substitui-se ao ser-se culpado, ou tem-se o significado e o efeito.»
Quando o arbitrário já não teme apresentar-se como aquilo que sempre foi, quando o ser-se culpado ou inocente já não tem qualquer importância, pois a condenação passa a ser a única certeza, o que combate o arbitrário já não descobre razões de temer o ser culpado: condenado por condenado, antes por um crime honroso. Não nos podemos deixar governar inocentemente. E, esperando pela destruição de todas as prisões, demos ao inimigo boas razões para as encher, não certamente caindo na bem montada armadilha do terrorismo, mas antes combatendo abertamente e de todas as maneiras quem presentemente dele se serve e o pratica, ministros, políticos, patrões e polícias.
Nestes nossos dias, o jesuitismo intelectual chama «democracia» ao arbitrário, «liberdade» à liberdade de mentir, e «testemunho» à delação sistemática e obrigatória: «Sic delatores, genus hominum publico exitio repertum et ne poenis quidem unquam satis coercitum, perpraemia eliciebantur» (9), dizia Tácito que, no entanto, contrariamente aos nossos intelectuais, confessava preferir os perigos da liberdade à quietude da escravatura. Os mesmos intelectuais, depois de terem debatido dilatadamente a coragem, concluíram, orgulhosos, que hoje é preciso ter-se a coragem de se ser cobarde. O raciocínio mais em voga nestes nossos tempos é simples: se se ama a democracia, é preciso defendê-la; para a defender, é preciso combater os seus inimigos; para se combater os inimigos da democracia, nenhum sacrifício é demasiado: a nobreza do fim justifica todos os meios; portanto, nenhuma democracia para os inimigos da democracia! O que não era essencialmente uma democracia deixou agora de o ser visivelmente.
E quem são então esses inimigos da democracia? Os inimigos da democracia são todos os que objetivamente a põem em perigo, os que defendem idéias incompatíveis com a mesma, e todos os que, não apoiando este Estado, apoiam objetivamente os seus inimigos. Numa palavra, os inimigos desta «democracia» são todos os que praticam a democracia.
Se em 1924, em lugar de Mussolini, houvesse esta democracia, tão sincera, tão pronta a pretender-se o contrário do que efetivamente é, poderíamos ter a certeza de que se teria encontrado forma de acusar esquerdistas do assassínio de Matteotti (10), como hoje em dia se faz em relação ao de Moro. Mas como Mussolini necessitava manos de mentiras do que o presente Estado, também não precisava de se servir de intelectuais como Leo Valiani para que estes nos falem dos crimes do Estado com a mesma admiração de quem se pusesse a gabar as virtudes de Catão.
Bem sei que a intelectualidade italiana tem bastas razões para se sentir temerosa e ser desonesta e conheço até de cor os seus argumentos justificativos, o que me leva a nem sequer pôr a hipótese de lhe recusar a liberdade de ser desprezível. O que acho fastidioso é o fato de estes intelectuais intervirem constantemente, nos diários e semanários, a propósito do terrorismo, como se uma força obscura os impelisse a publicar as provas da sua tacanha baixeza e como se ainda fosse preciso dela convencer quem quer que seja, quando, muito pelo contrário, teriam todo o interesse em a confinarem às suas obras, de forma a que não fosse conhecida nem dos seus contemporâneos nem da posteridade.
Por exemplo, nenhum destes grandes pensadores em matéria de terrorismo formulou, até ao presente, o mais simples raciocínio sobre o seguinte: se as fantasmagóricas Brigadas Vermelhas fossem, como se diz, um agrupamento espontâneo de subversivos, e se Negri e Piperno fossem, como se pretende, os chefes das BVs, porque é que estas astuciosas BVs teriam deixado prender os seus chefes, que no entanto afirmam não o serem, sem mesmo procurar ilibá-los, o que, a mais não ser, permitiria recuperá-los? Se, pelo contrário, Negri e Piperno não são os chefes das BVs e nem sequer seus militantes, deveriam em toda a justiça ser publicamente declarados inocentes destas acusações pelos hipotéticos subversivos das BVs, e isto pelo menos por três boas razões: para não se deixarem atribuir abusivamente chefes sem contra tal protestarem, para não serem acusados de fazerem condenar inocentes em seu lugar e, por último, porque, estando protegidos pela clandestinidade, não incorreriam em risco algum ao declararem inocentes os presentes acusados.
Mas como, muito pelo contrário, nada disto se produziu, havemos de concluir que os verdadeiros chefes das BVs têm, uma vez mais, o mesmo interesse que o nosso Estado em fazer crer que Negri e Piperno são os seus chefes. Esta nova convergência de interesses entre o Estado e as BVs não é nada fortuita nem extraordinária, e não pode surpreender senão os estúpidos que não se apercebem que as BVs são o Estado, ou seja, um dos seus múltiplos apêndices armados.
Ora, até estes simples raciocínios, que só por si chegariam para provar a enormidade e a fragilidade da mentira generalizada sobre o terrorismo, são muito elevados para serem formulados pelos nossos livres pensadores — tão livres que chegaram ao ponto de não pensarem mais. Pelo contrário, superam-se uns aos outros na ânsia de provarem incoerentes teorias sub-maquiavélicas, como a que pretendia demonstrar que a dissolução do Potere Operaio, ocorrida há já seis ou sete anos, fora uma simulação diabólica que deveria permitir aos seus dirigentes e militantes melhor se dedicarem à luta armada. E isto é repetido ao longo de meses sem se aperceberem que a hipótese é absurda, precisamente pelas próprias razões que a mesma invoca: se o Potere Operaio fosse na verdade uma capa para uma atividade terrorista, porque haveriam os seus chefes de renunciar a uma proteção legal tão preciosa?
A verdade é bem diferente e, como de costume, para a encontrar basta inverter a mentira desavergonhada com a qual a pretendiam camuflar: não foi de certo o Potere Operaio que fingiu dissolver-se para melhor se dedicar ao terrorismo, mas sim o famigerado SID que efetuou uma dissolução fictícia para melhor fazer esquecer o seu terrorismo passado e melhor praticar o atual. Outros pensadores assalariados, de Scalfari a Bocca, raciocinam da mesma forma fraudulenta quando, embora admitindo que, conforme o demonstrei, a estratégia das BVs visa impedir o acesso do PCI ao poder, fazem derivar isto não da aversão que este partido suscita em certos setores do capitalismo italiano e dos serviços secretos, mas da aversão dos estalinistas soviéticos pelos seus homólogos italianos. Os nossos pensadores de trazer por casa concluem pois que Moro teria sido raptado com o apoio do KGB e dos serviços secretos checoslovacos. Os capitalistas italianos, os militares e os agentes do SISDE, do SISMI, do CESIS, da DIGOS e da UCIGOS (11), da mesma forma que Carter, sentir-se-iam felizes se vissem o PCI no governo italiano, mas isso infelizmente não é possível porque os russos e o KGB não o querem: que azar! Se por detrás do caso Moro se encontra o KGB, quem se encontrará então por detrás das calinadas de Bocca e de Scalfari?
Será possível que estes indivíduos se tenham içado a tais píncaros pelas suas próprias forças?
Como quer que seja, esta curiosa e estúpida teoria, que Pertini, após a ter conhecido, se apressou a fazer sua, serve claramente para tranqüilizar a má consciência de quem quer fazer crer que este Estado, por estar em guerra com o terrorismo, não o pode dirigir.
Pela minha parte, noto com legítima satisfação que o meu livro, que inicialmente obrigou ao silêncio todos os que são pagos para falar, obrigou depois os mesmos indivíduos a espalharem-se ao comprido, propagando aos quatro ventos uma interminável série de enormidades que visava contrariar as verdades que com este livro começam a circular à solta pelo país.
Numa acepção totalmente diferente, pode, por oposição, invocar-se a Rússia, pois a Itália atual e a Rússia de Estaline são porventura os únicos Estados do mundo que se mantiveram exclusivamente graças à polícia secreta: na Rússia descobria-se por todo o lado «contra-revolucionários», e qualquer opositor era acusado de o ser; na Itália de hoje descobre-se por todo lado «revolucionários», e o mais banal dos extra-parlamentares, por muito tímido que seja, tem direito a esta acusação. Piperno, Scalzone e os outros seriam, segundo os juizes e os jornalistas, os chefes, cérebros e estrategos da revolução italiana. Defendi-os aqui enquanto inocentes, mas não me passaria pela cabeça defendê-los como revolucionários, pois não são nem culpados nem revolucionários: na realidade, todos estes autônomos não passam de políticos ingênuos, e mesmo como políticos são incompetentes e falhados — nunca se viu revolucionários almoçar com magistrados, como o fazia Negri, ou jantar conversando com um ex-ministro do gênero de Mancini, como o fazia Piperno —, e revolucionários também não o são por mil outras razões tão evidentes que é inútil relembrá-las. A revolução italiana segue um caminho totalmente diferente e idéias totalmente diferentes, e de boa vontade dispensa tais dirigentes, tais cérebros e tais estratégias, assim como dispensa todos os que nada compreenderam do terrorismo, ou seja, da contra-revolução.
É conhecida a paixão do mais livre dos povos, o povo grego da Antigüidade, pelo enigma, por ele considerado como o Hic Rhodus, hic salta da sabedoria. Confrontado com um enigma, o sábio deveria resolvê-lo sob pena de morte: era uma luta onde o que não obtinha a vitória não podia implorar nenhuma clemência. A acreditar numa lenda referida por Heráclito, e também por Aristóteles, o mais sábio dentre os gregos, Homero, morreu de desespero por não ter sabido resolver um enigma. Quem não resolve o enigma é por ele enganado; quem se deixa enganar não é sábio; quem não é sábio morre, porque o sábio é um guerreiro que deve ou saber defender-se ou perecer, e porque trava sozinho o combate onde deve provar aquilo que vale.
Um eminente helenista observou que a formulação do enigma «encerra em si a origem remota da dialética, chamada a expandir-se sem solução de continuidade a partir da esfera enigmática — tanto segundo a estrutura do Agon como segundo a própria terminologia». Nietzsche também já havia dito que a dialética «é uma nova forma de arte do Agon grego»
Ora o terrorismo italiano é o último enigma, da sociedade do espetáculo, e só quem raciocinar dialeticamente o poderá resolver. É devido à falta de dialética que este enigma continua a enganar e a destruir todas as vítimas que este Estado sacrifica liberalmente sobre o seu próprio altar, pois é graças a este ainda não resolvido enigma que o mesmo Estado provisoriamente se mantém. É pois necessário e suficiente resolver este enigma não só para se pôr termo ao terrorismo como também para se provocar o desmoronamento do Estado italiano. Só quem nisso tiver interesse resolverá, de forma prática, este enigma. Mas quem é que tem interesse em resolver o enigma do terrorismo? Pessoa alguma, evidentemente, com exceção do proletariado, pois só o proletariado sente essa urgência e dispõe de motivos, força e capacidade necessárias para destruir o Estado que o engana e explora. O desiderato de todas as provocações destes últimos anos e da campanha pedagógica de endoutrinamento de massas que se lhe seguiu, foi o de teleguiar o pensamento das pessoas, obrigando-as a pensar certas coisas, pois com o terrorismo o Estado lançou um desafio mortal ao proletariado e à sua inteligência: os operários italianos nada podem fazer senão aceitar esse desafio, mostrando assim serem dialéticos, ou então aceitarem passivamente a inevitável derrota. Todos os que hoje falam de revolução social sem denunciar e combater a contra-revolução terrorista têm um cadáver na boca.
Tendo chegado ao cúmulo da impostura, o Estado nunca se sentiu tão seguro de si, mas também nisso se engana mais do que julga pois engana menos pessoas do que esperava, e até mesmo menos do que as que seria necessário. Mas mais particularmente este Estado desacreditado engana-se ao crer ser sempre crido, ou, por outras palavras, quando acredita que as mentiras que todos os órgãos de informação propalam sobre o terrorismo são suficientes para corromper a totalidade da população, pela simples razão de esta não ter acesso a nada de diferente. O proletariado que, como se sabe, não possui qualquer meio de se exprimir livremente, não pode assim exteriorizar sequer a sua legítima incredulidade quanto à farça tragicômica do terrorismo, a menos que cale de uma vez para sempre o bico a todos os sicofantes que falam de forma já nossa conhecida, e aos seus mandantes que são também os mandantes do terrorismo e beneficiários da exploração.
Dito isto, nunca, nem mesmo em tempo de guerra, o Estado italiano pretendeu, recorrendo a uma intoxicação sistemática, corromper tantos espíritos com tão pequenos dispêndios.
Na Itália de hoje, tudo o que é manifestamente falso, e apenas isso, encontra uma colocação, vende-se, compra-se e é fonte de lucros: a encenação e a propagação da infecção terrorista é um empreendimento colossal e rentável que dá emprego a dezenas de milhares de jornalistas, chuis, agentes secretos, homens de leis, sociólogos e especialistas de todo o calibre; «só a verdade não tem clientes», como dizia Montesquieu em tempos menos enganosos, mas tal deve-se a ela não carecer deles.
Espero que este prefácio ajude o leitor estrangeiro a compreender melhor quais as forças, quais os interesses e quais os temores que fizeram com que, numa escassa dezena de anos, a Itália se tornasse o país da mentira — e do enigma — para retomar o titulo do célebre livro de Ciliga sobre a Rússia de Estaline (12). Nesta península berço do capitalismo moderno, sede do papado, centro do cristianismo e do euro-estalinismo, lugar privilegiado de experimentação contra-revolucionária, da Contra-Reforma às atuais ações dos serviços secretos e dos estalinistas, passando-se pelo fascismo —, onde os vestígios das glórias pretéritas atraem tantos visitantes estrangeiros, confluem hoje os dejetos pútridos da decomposição de tudo o que marcou este milênio, e toda a população se acha empestada pelos miasmas fétidos do cristianismo, do capitalismo e do estalinismo em estádio último de infecção, apoiando-se ainda uns aos outros num derradeiro instante perante a iminência ameaçadora da mais moderna das revoluções, encontrando-se todos aqui para levarem a cabo a mais desapiedada e a mais desesperada das repressões, disputando-se todos a propósito de qual o sistema mais eficaz de se condenar a história que os condenou.
Mas quaisquer que sejam as peripécias que nos esperam, a única certeza é a de que os acontecimentos obrigarão o proletariado italiano a fazer suas as palavras de Lucius Junius Brutus:
Juro nec illos nec alium quemquam regnare
Romae passurum
. (13)

Janeiro de 1980
Gianfranco SANGUINETTI

 ADVERTÊNCIA DO AUTOR

Quem tem medo de idéias, tem hoje medo de poucos livros: todas as semanas o mercado oferece-nos uma infinidade de livros e nenhuma idéia, enquanto as pessoas procuram agora as suas idéias fora do mercado e das livrarias. E, em Itália como no Irã, é na rua que as pessoas encontram o que procuram.
Tudo leva a crer que se no nosso país o pensar por escrito ainda não se encontra proibido, tal se deve menos à liberalidade dos legisladores do que ao fato de não se correr qualquer risco de se ler algo que tenha garra; de forma que quem quiser ler um livro que valha a pena tem de o escrever ele próprio, visto este setor da produção social estar, tal como os demais, sujeito à falsificação e à poluição correntes. Com efeito, os mesmos editores que hoje publicam de tudo guardam-se bem de publicar tudo: e, dado o que eles publicam, pode ter-se a certeza que é naquilo que eles não ousam publicar que se encontram as coisas mais interessantes. Quero referir aqui uma prova fácil, sem a qual poderia pensar-se que é devido à falta de escritos Interessantes que os editores italianos não publicam nada de interessante.
Durante os dois anos subsequentes ao sucesso do escandaloso panfleto que publiquei sob o pseudônimo de Censor (14), vários editores burgueses fizeram-me saber que estavam perfeitamente dispostos a fechar os olhos ao conteúdo subversivo do que escrevo para não renunciarem aos lucros que, em sua opinião, as minhas publicações lhes proporcionariam. Quando me dispunha a escrever um outro livro, denominado Remédio para Tudo, o editor Mondadori apresentou-se a propor-me um contrato de edição segundo o qual, para além do livro em questão, o editor ficaria com o monopólio das minhas publicações — por um período de dez anos — o que constituía manifestamente uma pretensão acima das suas possibilidades, e que, por conseguinte, recusei. Esse editor limitou-se pois a pagar adiantadamente o livro em questão, que comprava, por assim dizer, de olhos vendados.
Mas quando os zelosos dirigentes desta célebre casa editora puderam ler o manuscrito definitivo, ficaram literalmente aterrorizados, como se ninguém tivesse ainda conseguido demonstrar o que, por escrito, dizer-se pode sobre este Estado e todo o seu espetáculo. Segundo os especialistas de marketing, as idéias subversivas poderiam com certeza vender-se bem, e em todo caso bem melhor do que a ausência de idéias cuja venda é a especialidade desses cavalheiros: mas em tempos nos quais os operários já não querem ser operários, não nos devemos espantar muito por os editores terem medo de ser editores. Pode pois dizer-se que, no presente caso, esses audaciosos managers mais do que de olhos vendados compraram o meu livro de mãos atadas, pois deveriam e poderiam imaginar que eu não iria escrever nem um elogio deste mundo, nem uma vã lamentação. Esperavam eles fazer um bom negócio com a subversão e, em vez disso, pagando para não comprarem, perderam o seu capital num mal calculado investimento de risco! É a estes incapazes, mas apesar de tudo divertidos gestores de casas editoras, que se assemelham os gestores de toda a nossa falida economia: ninguém se deverá espantar se muito em breve, e não só devido aos méritos dos seus managers, esta descambar para a ruína mais completa. (15)
Aguardando a possibilidade de neste país se fazer também um pouco de Irã, mas certamente para melhor, de momento publico apenas a dedicatória e o prefácio de Remédio para Tudo, acompanhando o capítulo relativo ao terrorismo que o nosso Estado impunemente pratica, há mais de uma década, contra o proletariado; quanto ao resto do livro, esse pode esperar. Entretanto, a verdade sobre * terrorismo, que poderá de imediato ser lida aqui, * só aqui, não tem editores, mas, como se vê, também não precisa deles: esta verdade recusa violentamente a clandestinidade que lhe pretendem impor, e é capaz de ser a precursora de um samizdat italiano.
A partir de agora, os seus inumeráveis inimigos, do centro, de direita e de esquerda, deverão apresentar-se como tal, expondo-se a um combate em campo aberto, pois todas as suas mentiras já não a conseguem silenciar. E diga-se hoje o que se disser, dentro de dez ou vinte anos, ou mesmo antes, quando tudo se tiver tornado claro para todos, o que será recordado é aquilo que escrevo sobre o terrorismo, e nada dos rios de tinta que todos os mentirosos profissionais e todos os imbecis fazem hoje correr sobre esta matéria.
A quem tem medo da verdade, ofereço algumas verdades de meter medo, e — a quem não a teme, uma razão para provar que o terrorismo da verdade é o único que beneficia o proletariado.
Milão, Março de 1979.
«Sei que não te tornarás cúmplice de uma operação que, para além do mais, destruiria a DC... A primeira observação a fazer é a de que se trata de uma coisa que se repete... Presentemente fala-se menos disso, mas o suficiente para que saibas como é que as coisas se passaram, e tu, que sabes tudo, estás certamente informado disso. Mas... para fazer com que reine a calma na corte... podes contactar imediatamente Pennacchini que sabe tudo (em pormenor) melhor do que eu... Ainda há Miceli e... o coronel Giovannoni, que Cossiga estima... Depois de um certo tempo, a opinião pública compreende... O importante é convencer Andreotti que se ele jogar a carta da vitória, constituir-se-á provavelmente um bloco de opositores intransigentes.»
Aldo Moro, carta a Flaminio Piccoli, tornada pública só em 13 de Setembro de 1978.

«Sei que a exigência de uma verdade intransigente se encontra bastante difundida. Mas também sei que muitas coisas... carecem de reserva, de silêncio... E isto no interesse dos objetivos que se pretende atingir. É justamente por isso que, desde o dia da minha tomada de posse neste ministério, não cessei de relembrar a todos o dever da discrição e, poderia mesmo dizer, a sabedoria do silêncio.»
Virginio Rognoni, ministro do Interior, 24 de Agosto de 1978.

«E quando o acaso faz com que o povo fé não deposite confiança em ninguém, como por vezes acontece por ter sido anteriormente enganado pelas coisas ou pelos homens, daí decorre necessariamente, a ruína.»
Maquiavel, Discursos sobre a Primeira Década de Tito Livio.

 REMÉDIO PARA TUDO 
Discursos sobre as próximas oportunidades de arruinar o capitalismo em Itália
 
ÍNDICE

Dedicatória aos maus operários de Itália e de todos os países
PREFÁCIO
CAPÍTULO I
Das objeções que serão formuladas contra estes Discursos, e da sua refutação
CAPÍTULO II
Breve discurso sobre os recentes progressos realizados pelos nossos inimigos na sua decomposição
CAPÍTULO III
É difícil provocar desordens, e fácil incrementá-las
CAPÍTULO IV
Invectiva contra Enrico Berlinguer
CAPÍTULO V
Se se devo preferir um compromisso sem história, ou uma história sem compromisso
CAPÍTULO VI
Se vale mais trabalhar sem viver, ou viver sem trabalhar
CAPÍTULO VII
Discurso aos bons operários de Itália
CAPÍTULO VIII
O que é efetivamente esta democracia, e porque não encontra ela senão defensores ineptos e desonestos
CAPÍTULO IX
Arrazoado sobre os intelectuais: para que servem, o que são, o que valem, se é permitido insultá-los e se isso é suficiente ou não
CAPÍTULO X
Do terrorismo e do Estado
CAPÍTULO XI
Prolegômenos a toda a ideologia futura que se apresentar como revolucionária
CAPÍTULO XII
Breve mas irrefutável discurso de um revolucionário do Século XIV sobre a maneira de se impedir a repressão
CAPÍTULO XIII
Da sabotagem considerada como uma das belas artes
CAPÍTULO XIV
Contribuição mínima à elaboração de novas formas de criminalidade
CAPÍTULO XV
A utopia, estádio supremo do espetáculo
Remédio para tudo, ou constituição invulnerável da felicidade pública
ÍNDICE DOS NOMES INSULTADOS

 DEDICATÓRIA AOS MAUS OPERÁRIOS DE ITÁLIA E DE TODOS OS PAÍSES

 «Não chegou ainda, sem dúvida, o tempo de praticar o bem. O bem que cada um pratica é um paliativo. É preciso que advenha um mal geral assaz grande para que a opinião geral sinta a necessidade de medidas apropriadas para se praticar o bem. O que produz o bem geral é sempre terrível, ou parece extravagante em se começando por demais cedo
Saint-Just, Escritos Póstumos.

É a vós, maus operários, que endereço este panfleto que, se não esgota as obrigações que tenho para convosco, é no entanto a dádiva maior que nestes tempos vos poderia fazer, pois procurei aqui expressar por palavras essa mesma insubordinação total, estrondosa e salutar que vós exprimis ainda melhor e sempre mais radicalmente através das vossas ações e das vossas lutas contra o trabalho. E se, por ora, nem vós, nem quaisquer outros, podeis esperar mais de mim, sem todavia vos contentardes com menos, não vos deveis queixar de não vos haver eu dado mais do que isto. Podereis talvez criticar-me por não ter sabido descrever aqui toda a miséria contra a qual vos revoltais hoje, e que é bem grande, ou por não ter sabido relatar toda a riqueza da vossa revolta, que não é pequena; mas, nesse caso, não sei qual de nós terá menos obrigações para com o outro: se eu para convosco, pois encorajastes-me a escrever o que nunca escreveria só por mim mesmo, ou se vós para comigo, pois em o escrevendo, eu não vos teria satisfeito.
Tomai pois este Remédio para Tudo como tudo o que se recebe de um amigo, sempre considerando mais a intenção de quem dá do que a qualidade daquilo que se recebe. E a minha intenção é, tal como a vossa, a de ser nocivo a este mundo que vos é nocivo, a de desmascarar os que são pagos para vos enganar e a de privar de toda a reputação aqueles que ainda gozam de alguma. Mas se ataco aqui frontalmente homens hoje conhecidos que depressa serão sepultados pelo olvido ou pelas próprias conseqüências dos seus abusos, importa-mo menos desagradar-lhes do que atingir por intermédio deles todas as instituições desta sociedade, instituições que eles tão bem representam e tão mal defendem, sempre na esperança de, por sua vez por elas virem a ser defendidos. O meu único desejo é o de que uma tal leitura seja capaz de incitar os que ainda trabalham sem protestar, os bons operários, a serem menos bons, e aqueles que, como vós, já se revoltam, os maus operários portanto, a tornarem-se ainda piores.
Escrever estas coisas contra este mundo é mais fácil do que lê-las, e lê-las é mais fácil do que fazê-las; e quanto a mim, o que escrevo preferiria lê-lo, e o que leio preferiria vê-lo e fazê-lo. Apesar de tudo isso, considerar-me-ia como pouco prático se hoje não usasse, para certos fins, a pena um pouco melhor do que tantos outros dizem utilizar as armas, e de uma maneira, quero crer, menos ineficaz, pois serão as penas que farão trabalhar as armas, e não as armas as penas, como desejariam os proprietários desta sociedade e os ingênuos fanáticos da luta armada, que também quanto a isto estão mais de acordo do que julgam.
Se vós, os maus operários, considerardes que estes Discursos não são muito inferiores à ambiciosa intenção que vos anima, e que também me anima, não deixarei de na próxima vez fazer pior, incitado por este desejo natural, que foi sempre o meu, de cometer sem qualquer respeito tudo o que possa atingir os donos do nosso mundo, do nosso tempo, da nossa vida. Se para além disso encontrardes nestas páginas uma única razão suplementar para desencadear novos e mais violentos ataques contra todos os que vos oprimem e vos exploram, os burocratas e os burgueses, e para desmistificar com violência os mistificadores que pretendem ainda falar em vosso nome e em vosso lugar, Remédio para Tudo terá satisfeito todos os meus desejos, e eu não saberia desejar-lhe nada melhor.

 Prefácio à Edição Portuguesa
  
«A vitória pertencerá aos que tiverem sabido provocar a desordem sem a amar.»
Guy Debord, Internationale Situacionniste, número 1, 1968.

A inteligência é talvez a coisa melhor distribuída no nosso país: todos pensam ser tão bem dotados que mesmo os que, como os nosso dirigentes, são habitualmente dificílimos de contentar em tudo o resto, não desejam ser mais inteligentes. E visto não ser verosímil que todos se enganem a este respeito, é pois necessário perguntar-se como, e por que razão ou misteriosos interesses, esta inteligência possuída por um tão grande número aparece tão pouco neste nosso país — e sem dúvida que em nenhuma ocasião, nem mesmo excepcional, naqueles que, seja por estarem no poder, seja por procurarem alcançá-lo, nos dizem continuamente que se são incapazes é por nossa culpa e que se a Itália caminha para a ruína, não é por culpa deles.
É um fato que este país, que se autoproclama livre e democrático, é na realidade dirigido por algumas centenas de heróicos imbecis, os quais temem muito mais as conseqüências da inteligência dos outros do que as da sua própria estupidez, travando aquela a todo o custo para melhor darem livre curso a esta, e isto ainda agravado por a sua estupidez não correr sequer o risco de ser publicamente sancionada nas nossas esporádicas feiras eleitorais, embora quotidianamente a usem a seu bel-prazer. Numa tal organização social e política, que tão oportunamente estes senhores talharam à sua própria imagem, parece-me perfeitamente normal que qualquer voz que se eleve da mediocridade dominante e com ela em nada transija, seja naturalmente reduzida ao silêncio graças a uma multiplicidade de mecanismos quase automáticos, que talvez constituam a única coisa ainda relativamente eficaz no meio desta ineficácia geral.
Pela minha parte, nunca me julguei mais perfeito do que qualquer outro: pelo contrário, muitas vezes desejei ter a inteligência e a imaginação tão prontas e vivas como outro qualquer. Apenas desfrutei a boa sorte de me embrenhar, desde muito jovem, num caminho ao longo do qual encontrei algumas das melhores inteligências que estes tempos, contra a sua própria vontade, produziram; e não me custa admitir que isto já me permitiu ser nocivo a este mundo, ou seja, aos seus proprietários, não tanto como o desejaria mas certamente muito mais do que a modéstia das minhas forças, só por si, me teria permitido esperar.
Naturalmente não exagero estes primeiros resultados pois não me contento com eles; sei também que ninguém será suficientemente injusto para atribuir a uma só ou a algumas pessoas a falta ou o mérito de terem lançado a nossa sociedade de classes numa guerra, em que as forças multicolores da conservação se encontram, doravante, na defensiva e numa situação cada vez mais precária. Para isto contribuíram inicialmente, para além de circunstâncias históricas favoráveis, inumeráveis jovens proletários que, muito embora não sejam conhecidos pelos seus nomes e apelidos, não deixam de ser os seus principais protagonistas.
Posso ainda afirmar, sem temer ser desmentido, que estes últimos dez anos de lutas de classes já nos permitiram colher tais frutos e tanto nos mostraram a incapacidade e a abjeção dos nossos inimigos burgueses e estalinistas, que não podemos deixar de considerar com extrema satisfação os recentes progressos da subversão de toda a ordem dominante; e é-nos permitido esperar tais encorajamentos do futuro que, se entre as ocupações dos homens existe hoje uma que seja séria e tenha um porvir sólido, ouso crer que é a mesma que já escolhera numa época menos propícia do que a atual para certas escolhas.
Trabalhar contra este mundo, obtendo resultados palpáveis — isto é, não nos contentando com essa principal compensação ideológica que consiste na «oposição» impotente —, eis uma tarefa de grande fôlego de que também advém alguns inconvenientes. Mas trabalhar para este mundo não é muito mais fácil e, quer objetiva quer subjetivamente, cada vez mais se torna quase impossível; e quando digo isto não penso apenas no novo desemprego seletivo para onde o nosso capitalismo em bancarrota lançou toda uma geração de jovens proletários, dando prova de uma imprudência e de uma imprevidência das quais ainda não mediu todas as conseqüências. Na realidade a questão ultrapassa tanto as nossas fronteiras como os erros grosseiros dos nossos políticos e dos nossos economistas. Todos os pretensos «gravíssimos problemas do nosso tempo» derivam unicamente de um fato muito simples: de para cada um e para todos ter chegado o tempo de se resolver todos os problemas e de os resolver diretamente, cada um por si, e portanto também coletivamente.
Que isto seja de fato possível, eis o que é demonstrado pelo terror que a crueza desta perspectiva é capaz de provocar no seio de todos os atuais patrões da alienação e dos seus lacaios políticos e sindicais. Que isto seja presentemente necessário, e para além disso urgente, eis o que, pelo contrário, não carece de nenhuma demonstração específica, pois a nossa sociedade de classes, que já era essencialmente inabitável, agora é-o de forma visível, e quem não compreender isto deve renunciar a compreender o resto.
Os políticos, os economistas, os psicólogos, os sociólogos, os intelectuais, os especialistas em opinião pública e todos os outros imbecis que abrem as pernas ao poder evocam incessantemente estes «gravíssimos problemas», recusando-se contudo a designá-los pelo nome: eles que, frenéticos, se babam de gozo sempre que os donos lhes pedem para farejar um novo fenômeno através do qual se manifesta a mesma crise, eles que tanto amam as definições e os rótulos, ei-los agora que encontram mil pretextos para nunca designarem pelo nome aquilo que a sua ciência não pode resolver, mas que não gostariam ver resolvido por outras pessoas. Na realidade, o seu ofício é agora sobretudo o de se mostrarem necessários aos seus empregadores, e é precisamente esta a sua preocupação dominante neste período em que o proletariado pensa que tanto eles como os patrões não são necessários. Apesar de um tal fenômeno poder parecer curioso, não se poderá contudo afirmar que é esse fenômeno que determina a novidade da época, porque não passa de uma conseqüência dela, e nem sequer é a mais interessante; e se há qualquer coisa de surpreendente neste fenômeno de debandada geral, é tão só o crédito extravagante que estes especialistas continuam a merecer dos que lhes continuam a dar emprego, esperando deles não se sabe bem o quê. E nisto, como em tudo o resto, confirma o velho adágio: tal senhor, tal servo.
Perante um semelhante panorama de decomposição do velho mundo, a falsa consciência que ainda reina, mas que já não governa, tem a sem-vergonha de acusar a jovem geração proletária, que relançou a ofensiva contra a sociedade do espetáculo, de não estar à altura de resolver as questões que se encontram na origem da sua revolta e na raiz da crise com a qual se debatem todos os poderes constituídos, mas a verdade é precisamente o contrário, pois aquilo de que na realidade a jovem geração proletária é acusada é de levantar questões que o poder não pode resolver, uma vez que é o próprio poder que é posto em questão.
E os tais famosos «problemas», silenciados ou falsificados por todos os pensadores escravizados, em que é que eles efetivamente consistem? O que é que eles precisamente são? A sociedade dividida em classes, o trabalho, a propriedade, as próprias condições em que se é obrigado a sobreviver e a produzir, da mesma forma que tudo o que se deve produzir e consumir, as mentiras da «democracia» e da «liberdade» burguesas, bem como as mentiras burocráticas do «comunismo» e da «igualdade», em suma, a sociedade do espetáculo na sua globalidade, começam a não funcionar a partir do próprio momento em que a sua realidade é posta universalmente em discussão e é atacada por uma recusa que não é momentânea ou parcial, mas permanente e total.

Todos os proletários puderam, à sua custa, verificar que trabalhar para este mundo significa muito simplesmente trocar a sua vida e o seu tempo por um miserável salário que no entanto garante a sobrevivência e a sua precariedade perpétua. E é precisamente o trabalho assalariado que hoje em dia é posto em questão e, posteriormente, recusado por mil diferentes maneiras e em mil diferentes ocasiões. O operário italiano, sempre mais dialético do que os seus patrões, redescobre hoje uma verdade, que o velho Hegel havia candidamente referido, sem ponderar as suas conseqüências ou prever o seu seguimento: «Trabalhar significa: aniquilar o mundo ou maldizê-lo».
Até ao presente, os operários limitaram-se a maldizer este mundo; trata-se agora de o aniquilar.
«Nunca trabalhem!», podia ler-se nos muros de Paris há dez anos, durante a revolução; e em fevereiro de 1977, esta mesma palavra de ordem reaparecia nas paredes de Roma, tendo nesse entrementes sido reforçada pelo simples fato de haver sido traduzida para polaco pelos operários de Stettin, Gdansk, Ursus e Radom, em 1970 e 1976, e também para português pelos operários de Lisboa, em 1974.
A superação da economia encontra-se por todo o lado na ordem do dia, e os proletários, recusando o trabalho, mostram que sabem perfeitamente que este é agora sobretudo um pretexto para os manter permanentemente sob controle, obrigando todos os operários a ocuparem-se sempre com outras coisas que não os seus verdadeiros interesses: É preciso que façam desaparecer do seu pendão a divisa conservadora: «Um salário equitativo para um dia de trabalho equitativo» e inscrevam a palavra de ordem revolucionária: «Abolição do salariato!» (Marx). Aliás, até Lord Keynes teve de admitir, no seu célebre Tratado da Moeda, que «o problema econômico não é, para quem tiver os olhos postos no futuro, o problema permanente da espécie humana» — e nisto mostrou-se menos obtuso do que os seus atuais epígonos e ardentes e serôdios zeladores. O fato fundamental já não é o de existirem todos os meios materiais para a construção da vida livre de uma sociedade sem classes, como presentemente acontece, mas antes o de «o subemprego cego destes meios pela sociedade de classes, não poder nem interromper-se, nem ir mais longe. Nunca uma tal conjuntura existiu na história do mundo.» (Debord).
Conheço muitos operários que se ocupam de economia política de forma bastante mais séria do que o desgraçado Franco Modigliani (16), e com sucesso bem maior do que o inepto Giorgio Napolitano (17), mas fazem-no na perspectiva oposta, ou seja, adia sua destruição. Esses operários põem em prática as suas descobertas teóricas, e a sua crítica do sistema econômico ultrapassa e invalida a tão injustamente célebre crítica que Piero Sraffa (18) julgou fazer-lhe. E, inversamente, estes operários começam a teorizar os primeiros resultados práticos das suas experiências diretas sobre a fragilidade da economia. Lêem o panfleto de Paul Lafargue, O Direito à Preguiça, que, muito embora tenha sido escrito em fins do século passado e seja portanto ignorado pelos nossos ignorantes economistas, permanece seguramente a obra de crítica pura da economia política mais importante e mais moderna surgida após Marx. Lafargue prediz com grande antecipação, e com ainda maior lucidez, as razões que conduziriam o capitalismo ao consumo moderno, bem como as características mais relevantes daquilo que designa por «a era da falsificação», que nós hoje podemos contemplar, indica as suas irremediáveis contradições e, por último, aquilo que as resume e as resolve todas: a recusa do trabalho e a superação da economia.
Os operários foram finalmente obrigados a aperceber-se que as cores de que o espetáculo dominante se serve para camuflar a sua monstruosa face são as mesmas funestas cores produzidas pela fábrica de cancro de Cirié: uma fábrica que, como todos sabem, destruía os operários ao mesmo ritmo que produzia corantes. Esta fábrica pode ser, com propriedade, considerada a admirável quintessência de todas as outras: a única diferença é que neste caso, o ciclo destrutivo das forças produtivas era ligeiramente mais veloz e mais radical do que nas demais. Mas todas as fábricas possuem uma semelhança íntima com a fábrica de cancro.
* * *
O capitalismo deve reinar ou desaparecer, como outrora se disse de Luís XVI. Mas para reinar deve agora saber prever constantemente, e constantemente evitar o ponto de ruptura do equilíbrio instável que existe entre tudo o que o mesmo capitalismo deve impor e infligir a todos — as renúncias, os sacrifícios, os constrangimentos, o tédio, os danos — e aquilo que todos objetivamente podem e subjetivamente estão dispostos a tolerar. Hoje em dia, o próprio desenvolvimento do capitalismo é tal que, enquanto o limiar de tolerância tende a baixar, tanto por razões históricas como por razões puramente biológicas, a quantidade de tudo o que este tipo de sociedade tem de nos impor devido às suas próprias necessidades particulares de sobrevivência tende, muito pelo contrário, a subir sem cautela nem discernimento e, por assim dizer, pela sua própria inércia, de forma absolutamente autônoma e independente das necessidades reais dos homens e até das suas mais primordiais e irredutíveis exigências de sobrevivência. A sociedade espetacular-mercantil, esse imenso motor imóvel, necessita agora de obrigar toda a gente a movimentar-se para a sustentar e defender a sua própria imobilidade anti-histórica. Mas as Colunas de Hércules da alienação, o limiar que nunca ninguém deveria transpor, já não se encontram em paragens remotas, no cabo do mundo e do conhecimento humano, mas sim junto de cada um de nós, seja qual for o sítio onde nos encontramos. E cada um de nós deve ser capaz de transpor esse limiar, se não quiser «negar a experiência do que está por detrás do Sol, do mundo sem gente» (19) — ou seja, a experiência do negativo em ação, que é já a negação prática de todas as limitações arbitrariamente impostas à maior parte da humanidade, ao proletariado obrigado a viver no embrutecimento, sem nunca conferir a mínima realidade aos seus talentos, às suas capacidades mutiladas, aos seus desejos não reconhecidos.
Descartes asseverava: «a minha terceira máxima é a de procurar sempre... antes mudar os meus desejos do que a ordem do mundo». Hoje em dia os tempos mudaram, e com eles os homens e os seus desejos e aspirações, e é preciso que se abandone toda a incerteza e todo o escrúpulo; e a nossa primeira máxima será portanto a inversão da do filósofo: procurar sempre antes mudar a ordem do mundo do que os nossos desejos. E, desta vez, o proletariado deve tentar não fracassar, mas vencer, pois só um violento desejo de vitória pode assegurar a vitória dos seus desejos mais autênticos, que são também os menos confessados.
Todo o mundo industrial desenvolvido assemelha-se agora a um subúrbio sinistro e sem fim, de que Cirié, Seveso e os seus arredores são simultaneamente o centro anti-histórico e a imagem do seu porvir, se este mundo continuar ainda por algum tempo sob a direção dos que se autoproclamam os seus «responsáveis» políticos e econômicos. E o capitalismo espetacular moderno pode já contemplar o seu rosto nas imagens, em geral censuradas, das crianças monstruosas nascidas recentemente em Seveso, como num espelho mágico que lhe revelasse o seu futuro próximo.
Os nossos burgueses filantropos bem podem lamentar que isso seja assim; mas dentro em breve lamentarão ainda mais que isso não seja assim, pois a quantidade de tudo o que esta sociedade nos impõe e nos inflige já ultrapassou o limiar para além do qual qualquer equilíbrio penosamente arquitetado é destruído com violência, e não pode ser restabelecido senão pela violência, mas, de uma forma sempre mais provisória.
Em tais condições, quando o desenvolvimento da sociedade de classes, em todas as suas variantes burguesas e burocráticas, se opõe não só aos interesses da grande maioria mas também às mais elementares condições fundamentais da simples sobrevivência da espécie e dos indivíduos, e, sobretudo, à sua própria vontade; para o proletariado a questão não é a de retardar ou, ainda menos, a de evitar uma guerra social que já começou; também não é a de se empenhar, esgotando-se, numa multiplicidade de pequenas escaramuças, incessantemente renovadas por incessantemente condenadas ao malogro, escaramuças «pela defesa» de não se sabe bem o quê «do salário, do emprego, do país», como ladra em pura perda a canalha sindical e estalinista; a questão é, muito pelo contrário, a de os operários contra-atacarem passando à ofensiva, e a de vencerem em toda a extensão do teatro da guerra, que é mundial, como mundial é a atual crise de todos os poderes, pois o que hoje está em jogo não é senão o destino do mundo. No entanto, não é de forma alguma em nome duma qualquer pretensa «missão histórica», mais ou menos inevitável e profetizada, que o proletariado é chamado a tornar-se a classe da consciência histórica, mas porque só a partir desta posição de superioridade fundamental pode atacar e combater com sucesso o conjunto das forças da inconsciência, que se encontram todas, e apenas elas, representadas «democraticamente» no capitalismo atual e, neste momento, as principais manifestações destas forças são as suas derrotas, os seus desastres e as suas infâmias.
O capitalismo, desde os seus primórdios, foi combativo, e por muito tempo foi-o contra as outras formas retrógradas de poder e de organização social que se opunham à sua expansão: o capitalismo impôs-se e saiu vitorioso das guerras em que se empenhou, porque e enquanto a sua atividade de desenvolvimento e de conquista correspondia a necessidades e possibilidades históricas determinadas — das quais, aliás, nenhum dos seus ideólogos jamais esteve verdadeiramente consciente, da mesma forma que hoje em dia nenhum deles está consciente de que a tarefa do capitalismo se encontra historicamente terminada. Agora que ele já conquistou o mundo, encontrando-se esgotado pelos seus próprios êxitos e gerido pelos herdeiros balofos dos conquistadores de outrora, cabe-lhe defrontar-se de novo com aquilo que precisamente lhe permitiu alcançar um tal poderio: o proletariado. A paz social em que por tanto tempo, desde o malogro da revolução na Rússia e em toda a Europa, repousou, quase lhe tinha feito esquecer a existência do seu velho inimigo; além do mais não há dúvidas que, nos tempos modernos, o capitalismo perdeu já completamente a sua combatividade de antanho. E todos os seus esforços visam doravante impedir uma guerra Social para a qual não se tinha preparado, e que já duvida ganhar, mas da qual o seu próprio desenvolvimento precedente, tão exaltado ainda há pouco, criou todos os pressupostos.
O proletariado, ao contrário, sempre esteve no centro de um conflito quotidiano e permanente, por vezes aberto e mais freqüentemente surdo, mas sempre violento, que dura, há já um século e meio; mas agora a classe que esteve continuamente em guerra contra as condições da sua própria opressão, deve necessariamente perecer ou sobrepor-se a todas as outras classes que, intermitentemente em guerra e paz, nunca estão tão prontas a atacar ou tão preparadas para se defenderem. Por outro lado, a própria natureza desta guerra exige que as classes proprietárias nunca possam aniquilar o seu inimigo, ou seja, abolir o proletariado, sem simultaneamente abolir as estritas condições da sua própria supremacia, elas têm necessidade do proletariado, este não tem necessidade delas. Eis o fundo da questão.
Como se tudo isto não bastasse, é preciso notar que a lógica de um tal conflito também encerra o fato de que, enquanto as classes proprietárias são obrigadas a considerar cada uma das suas vitórias como provisória, e cada trégua que o proletariado lhes concede como incerta, o proletariado é obrigado pela sua própria condição a nunca poder aceitar qualquer paz, a menos que essa seja a paz do vencedor. E é precisamente este fato que obriga hoje os proletários a aumentarem cada vez mais as suas imensas pretensões, em contrapartida às suas derrotas passadas, as quais também eram provisórias: e assim os operários do mundo inteiro precipitam hoje no mais profundo dos desesperos, e com uma freqüência cada vez maior, essas mesmas forças que se lhes opunham e que acabavam de obter a vitória; é precisamente assim que os proletários se impõem a si próprios a necessidade superior de ganhar, não esta ou aquela batalha individual, mas toda a guerra.
Marx afirmava que os homens não enunciam problemas que não possam resolver, e eu acrescento que hoje chegamos ao ponto em que não é possível resolver-se um único problema sem os resolver todos. Eis a razão pela qual este panfleto se intitula Remédio para Tudo.
A nossa força reside justamente no fato de nos defrontarmos com todos os problemas, e de termos tanto a necessidade como a possibilidade de os resolver todos. A fraqueza dos nossos inimigos, burocratas e burgueses, consiste no fato de também eles se encontrarem confrontados com todos os problemas, mas na necessidade imperativa de não os resolver todos — quer dizer, na verdade não se acham em condições de dar remédio a problema algum. Eis pois exatamente qual é hoje a sua situação: não são capazes de resolver quaisquer problemas, já nem sequer estão em estado que lhes permita impedir os outros de os resolver, nem se encontram na posição de poderem continuar a coabitar com todos estes problemas. Não nos devemos pois espantar com o pavor e a confusão que agora reinam nas suas fileiras.
Até há cerca de dez anos, a maioria dificilmente conceberia que o que quer que fosse pudesse mudar; hoje em dia todos consideram impossível que o que quer que seja continue como dantes. E no entanto ainda não se passaram dois lustros sobre a altura em que os resignados pensadores da esquerda impotente pomposamente decretaram que este mundo tinha, a partir desse momento, atingido o seu ordenamento definitivo, e que não havia outra «escolha» senão entre as mentiras russa, chinesa ou cubana, que nessa altura balofamente alimentavam as suas desonestas controvérsias. Marcuse, o iludido, pretendia ainda demonstrar-nos o desaparecimento do proletariado, que alegremente se teria dissolvido na burguesia; e Henri Lefebvre, o desiludido, já perorava sobre o «fim da história». Confundiam os seus pobres sonhos com a realidade, confessando assim canhestramente que a realidade de então era tudo o que sonhavam. Mas a partir de 1968, tiveram que submeter-se à percepção dolorosa da estupidez de que enfermavam: Marcuse resignou-se ao silêncio, e Lefebvre resignou-se a voltar ao redil, falando por conta dos estalinistas franceses.
Hoje, quando o tempo das desordens começa, por todo o lado, a perturbar o sono das classes dominantes, todos estes patéticos ideólogos em crise de idéias até o público perderam, mas quase sempre obtiveram em troca um emprego inesperado como advogados de defesa do velho mundo. Em Itália, onde a crise é mais grave, esses ideólogos perderam depois toda a compostura e, a cada avanço da subversão, ei-los que envergam, pressurosos, a toga dos pais da pátria, ei-los que desbobinam, como um velho relógio de cuco, as mesmas ininterruptas banalidades sobre a defesa da ordem republicana e as costumeiras trivialidades em favor das instituições democráticas com a convicção afetada e repleta de auto-suficiência dos pregadores de uma igreja em crise de fiéis, pois não há quem acredite no milagre que prometem, o de a história parar como por encanto perante as suas fórmulas mágicas.
Sempre que tais ideólogos se mostram na televisão, ou que na primeira página dos jornais nos convidam sem pejo algum a apreciar as delícias desta «democracia» nascida, o caralho, da resistência, como eles nasceram da estimável cona da mãe, os Valiani, os Amendola, os Asor Rosa, os Moravia, os Bobbio, os Bocca, etc., demonstram continuar a não querer compreender que os sobressaltos violentos e contraditórios que alimentam crônicas da imprensa provam unicamente que a sua época chegou ao termo e que um mundo novo se encontra em vias de nascer. Estas velhas cariátides que esperam suster por mais algum tempo o templo dessacralizado e em vias de desmoronamento das mentiras e dos abusos dominantes, estes extremistas do consenso e fanáticos da legalidade sabem que as suas leis já não comandam o futuro e que antes de se julgar os homens novos urge julgar as velhas leis; e, aliás, a «democracia» e a «liberdade» que estes senhores apregoam a ponto de nos foderem o bicho do ouvido, e o resto, para eles são o que as cores são para um cego de nascença, e a prova disto é simples, pois se conhecessem o verdadeiro sentido destes termos, de certo que deles não se serviriam com tanta leviandade, aplicando-os à nossa miserável República. Mas quando a verdadeira democracia se impuser — ou seja, quando todo o poder de decisão e de execução pertencer aos Conselhos Operários Revolucionários, onde cada delegado possa a todo o momento ser demitido pela base —, nessa altura veremos que todos estes cavalheiros, que hoje nos falam a torto e a direito de democracia, combatê-la-ão ou, ainda mais provavelmente, pôr-se-ão em fuga como é seu costume. Mas perante os apelos peremptórios e insolentes com que hoje nos importunam, os jovens proletários são obrigados a concluir que estes mistificadores respeitados são tão solidários na corajosa defesa de todas as mentiras e abusos correntes, tal não se passa por acaso, mas por disso lhes advirem elevadas remunerações.
Quantos milhões recebe mensalmente, ou semanalmente, o honesto Leo Valiani para escrever o que escreve? E o que é que ele escreveria se tivesse uma vida e um salário de operário? E Bocca? E os outros todos?
Lichtenberg dizia não conhecer um único homem no mundo que, tendo-se transformado num canalha por mil táleres, não tivesse preferido continuar honesto por metade da soma.
Desaparecei, palhaçada grotesca, charlatães de males incuráveis: vós temeis coisas demais para serdes temidos, e respeitais demasiado para que vos respeitem! Julgais tudo erradamente, enquanto as pessoas começam a julgar-vos acertadamente: não vos dais conta de que metade do país ri de vós e que a outra metade vos ignora? Sabei ao menos que perante a farsa tragicômica que é a vossa própria existência, a corte marcial da nossa crítica vai celebrar as suas saturnais! E que nem sequer se me exprobre o recorrer à invectiva: desde Dante, todos os que consideraram de forma imparcial os nossos poderosos do momento foram sempre obrigados a recorrer à invectiva, pois não basta julgar os atos e os discursos dos homens; é também necessário julgar os homens pelos seus discursos e pelos seus atos.
Até ao presente momento, o conjunto do país nada mais foi do que um mero espectador dos seus ministros e de todos os que o enganam e lhe falam em seu nome; a partir de agora, o país tratará de julgá-los e de dar a César o que é de César: vinte e três punhaladas.
* * *
Nas épocas em que reina a inteligência, os homens podem ser julgados com base no uso que dela fazem; nos séculos de decadência, mas contando, no entanto com pessoas hábeis, é preciso julgá-las segundo os seus interesses e o seu mérito, naqueles em que, pelo contrário, uma extrema mediocridade esbarra com grandes dificuldades, como este em que nos encontramos, devemos considerar as condições gerais em que os homens vivem, as pretensões dos que se encontram no poder, seus pavores, os seus interesses particulares, fazer desta mistura a regra do nosso juízo valorativo. Se hoje assistimos ao espetáculo edificante que quotidianamente nos é oferecido por todos advogados defensores do velho mundo, que tomam a palavra com ardor e precipitação para ejacularem rotativamente ou em conjunto a sua argumentação, é justamente porque tais advogados temem que essa sua oportunidade seja a última e também porque sentem confusamente, mas não sem razão, que o tribunal da história está prestes a mandar executar uma sentença que já tardava. E se nas suas vãs perorações estes mercenários defensores de todos os abusos se mostram por vezes temerários isso deve-se unicamente ao fato de, tendo o pavor ultrapassado um certo limite, a coragem e a covardia poderem produzir por alguns instantes mesmos efeitos.
Se por uns tempos os políticos e intelectuais tanto se agitaram à volta da palavra coragem, principalmente para perguntarem uns aos outros qual o significado preciso da mesma. E se depois de um semelhante clamor nem sequer conseguiram estar à altura de dar uma resposta, não será preciso irmos muito longe para encontrarmos a razão disso: regra geral, os homens, do que mais falam é daquilo que mais carecem, sobretudo nas situações em que mais sentem essa necessidade. Assim, enquanto um pedinte falará de dinheiro, Franco Rodano fala de coragem. Lama, Moravia, Arpino, Calvino, Vasco Pratolini, Elio Retri e cem outros também parecem disputar a primazia nesse campo e até o repugnante Antonalio Trombadori dissertou sobre a questão — e, pelo menos neste caso, mostrou-se bastante temerário, falando de corda em casa de enforcado. E quase todos falaram assim para acusarem de covardia Montale e Sciascia, que pelo menos tiveram a coragem mínima de manifestarem publicamente o desinteresse e o asco que este Estado lhes inspira, Estado que o estalinista Amendola teme ver desmoronar-se antes de conseguir compartilhá-lo com os democratas-cristãos.
Tudo isto demonstra que se pode dizer da coragem o que Marx dizia da consciência: não é de certo a coragem dos homens que determina a sua condição social, mas, inversamente, a sua condição social que determina a coragem ou a covardia; e basta considerar o caráter provisório e a presente fragilidade da posição social que estes usurpadores ocupam numa sociedade de classes tão pouco segura de si como a nossa, para se ficar suficientemente a par da sua pretensa «coragem». Para além disso, escusado será dizer que ninguém lhes pede para serem corajosos.
A covardia existiu sempre, mesmo se nem todas as épocas tiveram a oportunidade de a ver no poder; no nosso século, a covardia gostaria de estar em maioria mas, já se encontrando majoritária no governo, tem os seus heróis e atribui-se publicamente as dignidades e todas as honras que em outros tempos eram reservadas para a coragem. Esta controvérsia político-intelectual sobre a coragem não fez outra coisa senão salientar ainda mais a profunda covardia de todos os que nela participaram, pois se não é possível dotar alguém de coragem, também não se lhe pode retirar a covardia, e nem sequer escondê-la, pois não conheci nenhum covarde que tivesse a simples coragem de admitir sê-lo, ao menos para melhor se esconder.
Estas balofas e aborrecidas «polêmicas» periódicas, que constituem o principal passatempo de todos os eunucos do poder, ou seja, dos intelectuais, demonstram uma vez mais a incurável pusilanimidade dos que nelas participam: as armas da sua «crítica» não cortam pois encontram-se, como diria Camões, «recobertas pela ferrugem da paz» social de que por demasiado tempo esses intelectuais beneficiaram, tendo isso terminado numa data ainda recente. E sabe-se bem que a fraqueza é talvez o único defeito impossível de se corrigir, precisamente por os seus efeitos serem inimagináveis, e ainda mais prodigiosos do que os das mais ardentes paixões.
O arcaísmo das instituições que estes corajosos senhores pretendem defender, possivelmente até para evitarem a infelicidade de terem que se defender eles próprios, instituições que no entanto eles já nem sabem fazer funcionar, o seu caráter arcaico, dizia, nem sequer é de molde a fazê-las respeitar ou a torná-las veneráveis; muito pelo contrário, elas desacreditam-se de dia para dia, envelhecendo ainda mais depressa do que os seus corifeus. E, à medida que a sua decadência se vai tornando mais e mais evidente, inspiram um desprezo mais e mais universal, pois já nem sequer têm a capacidade de ser nocivas. O mundo político caiu assim numa imbecilidade desastrosa, e isto no presente momento em que a globalidade da sociedade se tornou mais inteligente. Presentemente, esta inteligência e esta imbecilidade são igualmente nocivas ao poder que, destarte, se encontra sob constante ataque vindo do exterior, e minado no seu próprio interior.
A guerra social que se prepara já movimenta todos os indivíduos e todas as classes da sociedade porque, ao pôr em jogo os interesses de todos, atribui a todos um interesse no combate e apela a cada um no sentido de escolher o seu campo: de um lado todos os que hoje temem uma guerra que já não conseguem evitar, caso dos capitalistas e dos burocratas do partido dito comunista, e do outro, todos os que não têm qualquer poder sobre as suas próprias vidas, e o sabem.
Nos capítulos que se seguem falarei portanto contra a ordem de coisas vigente, mas fá-lo-ei numa desordem relativa: tratá-lo com ordem seria conceder demasiadas honras ao meu tema, pois quero demonstrar que disso é ele incapaz — Saint Just já o afirmou: «a ordem presente é a desordem coligida em leis». E antes de concluir este prefácio direi que, como é evidente, Remédio para Tudo não quer nem pode ser um remédio para todos, pois na verdade esta obra propõe-se ser nociva a muitos e procura vir a ser útil a um maior número; a utilidade de um tal panfleto será pois medida com base nos prejuízos que o mesmo for capaz de causar, direta ou indiretamente, de imediato ou dentro de pouco tempo, aos proprietários da alienação, pois tudo o que é nocivo não é ipso fato inútil; só tudo o que é inútil é sempre nocivo. Espero ser claro, mas se houver quem persista em não me compreender, isso preocupar-me-á menos do que deveria preocupar a pessoa em questão: alguém disse que nesta época não se pode mais permanecer insensível a nada do que ela produz, e, se ela produz certos livros, tal significa que também produziu quem os saiba ler.
Os proprietários deste mundo, bem como os seus «críticos» assalariados, ficarão exasperados, despeitados por terem de reconhecer que só os seus inimigos absolutamente irredutíveis se encontram em condições de o compreender realmente e a classe dominante verá com justificada inquietação os seus verdadeiros problemas, expostos unicamente por aqueles que trabalham com vista à sua subversão. Os nossos ministros e todos os políticos inquietar-se-ão, e não sem razão, por terem de ler os nossos escritos para se poderem enfim contemplar com realismo, mas na perspectiva da destruição de todos os seus poderes. Os chefes dos serviços secretos da burguesia, dedicando-se há uma dezena de anos às provocações, aos assassínios e ao terrorismo de Estado, ficarão justificadamente furiosos por verem as suas manobras sempre desmascaradas precisamente por aqueles contra quem as mesmas são sempre concebidas; e mesmo a morte de Moro aparecerá enfim na sua verdadeira e sinistra luz. Os grandes burgueses em decomposição não me quererão, é claro, perdoar nem este panfleto nem o resto, e alguns deles pretenderão acusar-me de traidor à sua classe, como já o fez há cerca de dois anos Indro Montaneffi (20), pois assestei todas as minhas armas contra a dita alta burguesia donde provenho: ora bem, tenho muita honra em que me seja feita uma tal acusação, pois não há humilhação que essa burguesia sobejamente não mereça; e a classe operária, que foi vítima de inúmeras traições de classe por parte dos seus pretensos representantes, terá uma certa razão em se felicitar considerando que um pouco da mesma sorte também coube à classe adversa.
Remédio para Tudo será portanto também um ajuste de contas com toda esta malavita que a classe dominante democraticamente impõe à classe dominada, bem como um acerto de contas com tais ou tais indivíduos concretos que até ao presente abusaram por demais impunemente da paciência da classe explorada, ou antes, do silêncio a que a mesma se encontra reduzida. Como no inferno, também aqui haverá uma diversidade de fossos, precipícios e condenados, desde os burgueses aos estalinistas, desde os mentirosos profissionais aos burocratas sindicais, desde os políticos aos intelectuais, e por aí afora — de modo que no fim poderei também eu dizer ao leitor:
Podes agora julgar as pessoas que acima acusei, e as suas faltas, que são a causa de todas as vossas desgraças.

 Capítulo X
 Do Terrorismo e Do Estado

«Essas astúcias que sustém o Estado, passes de prestidigitação
Que chamamos profundos desígnios políticos
(Como no teatro, o néscio parolo,
Não se apercebendo das cordas,
Pasma ante uma auréola que voa)...
Mas suponhamos que em plena representação
A máquina, mal montada, se desconjunta,
Os cenários entreabrem-se e tudo deixam ver:
Logo o truque entra pelos olhos dentro!
Como é simples! Que grosseira trapaça
Vede pois o nó da polé!...
Que pobre máquina aciona
Os pensamentos dos monarcas e os planos
De que misérias depende a sua Sorte!...
Apavorados os campônios fogem,
Tremendo ante o Prodígio inaudito...
Ei-lo! Olhai!
Como todos se arrepiam e tremem!»

Swift, Ode ao Honorabilíssimo Sir William Temple, 1689.

Todos os atos de terrorismo, todos os atentados que tiveram e têm poder sobre a fantasia dos homens, foram e são ou ações ofensivas ou ações defensivas. Se fazem parte de uma estratégia ofensiva, a experiência há muito demonstrou que estão sempre condenados ao malogro. Se, pelo contrário, fazem parte de uma estratégia defensiva, a experiência mostra que estes atos podem obter algum sucesso, que no entanto é momentâneo e precário. Os atentados dos palestinos e dos irlandeses, por exemplo, são atos de terrorismo ofensivo, enquanto a bomba da Piazza Fontana e o rapto de Aldo Moro são, pelo contrário, atos de terrorismo defensivo.
Contudo não é apenas a estratégia que muda, conforme se tratar de um terrorismo — ofensivo ou defensivo, mas também os estrategos. Os desesperados e os iludidos recorrem ao terrorismo ofensivo; pelo contrário, são sempre e unicamente os Estados que recorrem ao terrorismo defensivo, quer porque se encontram mergulhados numa grave crise social, como o Estado italiano, quer porque a temem como o Estado alemão.
O terrorismo defensivo dos Estados é por eles praticado direta ou indiretamente, com as suas próprias armas ou com as de outrem. Se os Estados recorrerem ao terrorismo direto, o mesmo será dirigido contra a população — como aconteceu, por exemplo, com a carnificina da Piazza Fontana, com a do Italicus, e com a de Brescia. Se, pelo contrário os Estados decidirem recorrer a um terrorismo indireto, este deverá parecer dirigido contra o próprio Estado — como, por exemplo, aconteceu com o caso Moro.
Os atentados diretamente realizados pelos corpos destacados ou pelos serviços paralelos do Estado não são usualmente reivindicados por ninguém, mas são sempre imputados e atribuídos a este ou àquele «culpado» cômodo, como Pinelli ou Valpreda. A experiência provou que esse é o ponto mais fraco de um tal terrorismo, o que determina a extrema fragilidade do uso político que do mesmo se pretende fazer. É até a partir dos resultados desta experiência que os estrategos dos serviços paralelos do Estado procuram agora dar uma maior credibilidade, ou pelo menos uma menor inverosimilhança, aos seus próprios atos, quer reivindicando-os por esta ou aquela sigla de um grupo fantasma, quer fazendo-os inclusive reivindicar por um grupo clandestino existente, cujos militantes são aparentemente, e por vezes crêem-no, estranhos aos desígnios do aparelho de Estado.
Todos os grupúsculos terroristas secretos são organizados e dirigidos por uma hierarquia que permanece clandestina para os próprios militantes na clandestinidade, o que reflete perfeitamente a divisão do trabalho e dos papéis própria desta organização social: na cúpula decide-se e na base executa-se. A ideologia e a disciplina militar protegem os verdadeiros chefes de todos os riscos, e a base de toda a suspeita. Qualquer serviço secreto pode inventar uma sigla «revolucionária» e levar a cabo um certo número de atentados, que a imprensa se encarregará de propagandear, e a partir dos quais lhe será fácil formar um pequeno grupo de militantes ingênuos, que dirigirá com a maior das facilidades. No caso de um pequeno grupo terrorista espontaneamente constituído, nada de mais fácil no mundo para os corpos destacados do Estado do que nele se infiltrarem e, graças aos meios de que dispõem e à extrema liberdade de manobra de que gozam, de se aproximarem da cúpula original, substituindo-a por elementos seus, quer pelo assassínio dos chefes iniciais, que regra geral se produz quando de um conflito armado com as «forças da ordem», prevenidas de uma tal operação pelos seus elementos infiltrados, quer por determinadas prisões realizadas em altura oportuna.
A partir desse momento, os serviços paralelos do Estado passam a dispor a seu bel-prazer uma organização perfeitamente eficaz, formada de militantes ingênuos ou fanáticos, que não pede outra coisa senão ser dirigida. O pequeno grupo terrorista original, nascido das ilusões dos seus militantes sobre as possibilidades de se levar a cabo uma ofensiva estratégica eficaz, muda de estratégia e nada mais passa a ser senão um apêndice defensivo do Estado, que o manobra com a maior agilidade e a melhor das seguranças, segundo as sua próprias necessidades do momento, ou segundo aquilo que julga ser as suas próprias necessidades.
Da Piazza Fontana ao rapto de Moro, o que mudou foram os objetivos contingentes, que o terrorismo defensivo atingiu, mas aquilo que nunca pode ser alterado por quem se encontra na defensiva é a meta a atingir. E a meta a atingir, desde 12 de dezembro de 1969 a 16 de março de 1978, e ainda hoje, foi sempre a mesma, que é a de fazer crer a toda a população, que já não suporta este Estado ou está em luta contra ele, que ela tem, pelo menos, um inimigo em comum com este Estado, inimigo do qual ela será defendida pelo Estado sob a condição de este não mais ser posto em causa por quem quer que seja. A população, que geralmente é hostil ao terrorismo, e não sem razão, deve assim convir que, pelo menos neste campo, ela carece do Estado, em quem deverá portanto delegar os poderes mais amplos para que ele possa enfrentar com vigor a árdua tarefa da defesa comum contra um inimigo obscuro, misterioso, pérfido, impiedoso, em suma, quimérico. Perante um terrorismo sempre apresentado como o mal absoluto, o mal em si e para si, todos os outros males, bem mais reais, passam para um segundo plano, e devem mesmo ser esquecidos; uma vez que a luta contra o terrorismo coincide com o interesse comum, essa luta torna-se o bem geral e o Estado que generosamente a conduz passa a ser o bem em si e para si. A infinita bondade de Deus não poderia sobressair e ser apreciada como convém se não existisse a malvadez do diabo.
O Estado, enfraquecido em extremo pelos ataques de que quotidianamente é alvo de há dez anos a esta parte, e com a sua economia debilitada, por um lado, devido aos ataques do proletariado e, por outro, devido à incapacidade dos seus gestores, pode assim esconder uma e outra coisas, incumbindo-se solenemente de encenar o espetáculo da sacrossanta defesa comum contra o monstro terrorista e, em nome desta piedosa missão, pode exigir de todos os seus súbditos uma porção suplementar da sua exígua liberdade, porção essa que vai reforçar o controle policial sobre o conjunto da população. «Estamos em guerra», e em guerra contra um inimigo tão poderoso que o mínimo desacordo ou conflito seria um ato de sabotagem e de deserção: o recurso à greve geral só é legítimo quando se protesta contra o terrorismo. O terrorismo, e «a emergência», dum estado de emergência e de «vigilância» perpétuas, eis os únicos problemas existentes, ou pelo menos os únicos de que é permitido e necessário ocuparmo-nos. O resto não existe, ou é esquecido, e em todo o caso silenciado, distanciado, removido para o inconsciente social, perante a gravidade da questão da «ordem pública». E, face ao dever universal da sua defesa, todos são convidados à delação, à baixeza, ao medo: pela primeira vez na história, a covardia torna-se uma virtude sublime, o medo é sempre justificado, e a única «coragem» não desprezível é a de se aprovar e apoiar todas as mentiras, todos os abusos e todas as infâmias do Estado. Como a crise atual não poupa país algum deste planeta, já não existe qualquer fronteira geográfica da paz, da guerra, da liberdade, da verdade: esta fronteira passa pelo próprio interior de cada país, e todos os Estados se armam e declaram guerra à verdade.
Fulano não acredita no poderio oculto dos terroristas? Pois melhor fará em mudar de opinião perante as tão bem filmadas imagens de três terroristas alemães prestes a embarcarem num helicóptero, e que dispõem de tanto poder que a seguir conseguiram mesmo escapar aos serviços secretos alemães, mais hábeis a filmar a sua presa do que a capturá-la.
Beltrano não acredita que cem ou duzentos terroristas são capazes de infligir um golpe mortal às nossas instituições? Pois veja o que cinco ou seis dentre eles foram capazes de fazer, em poucos minutos, a Moro e à sua escolta e admita, portanto, que o perigo que ameaça as instituições (aliás tão amadas por mais de 50 milhões de italianos) é um perigo real e terrível. E se houver ainda alguém que queira afirmar o contrário? É um cúmplice dos comunistas! Todo o mundo convirá assim que o Estado não pode deixar-se abater sem se defender: e, custe o que custar, esta defesa é um dever sagrado e imperativo para cada um de nós. E isto porque a República é pública, o Estado é de todos, cada um de nós é o Estado e o Estado é todos nós, pois todos nós gozamos as vantagens que ele nos proporciona de forma tão igualmente repartida: não será isto a democracia? E por isso o povo é soberano, mas ai dele se não a defender!
Estais convencidos? Ou, depois do caso Moro, ainda credes, pobres cidadãos em maré de crítica, que é ainda e sempre o Estado, como quando da Piazza Fontana, quem organiza os atentados? Ignóbeis suspeitas! A dignidade das instituições sente-se atingida: Zaccagnini chora, até há uma fotografia que mostra isso. Cossiga também chorou, a coisa viu-se mesmo no telejornal, e acabai de uma vez para sempre de acusar de todas as faltas e a propósito de tudo e de nada aqueles que não hesitam em sacrificar a vida de outrem em nome da defesa das nossas mui democráticas instituições. Ou será que ainda credes, pobres cidadãos, que nós os ministros, os generais, os agentes secretos do Antiterrorismo por antífrase estaríamos dispostos, nós em particular, a sacrificar Aldo Moro, esse homem de Estado notável e de sentimentos elevados, esse exemplo de verticalidade moral, nosso amigo, patrão, protetor e, quando isso se mostrou necessário, nosso defensor? (21)
É isto exatamente o que se quereria que os bons cidadãos, que nunca duvidam, que votam sempre, que pagam se não forem ricos e que em todo o caso se calam, pensassem. As suspeitas em relação ao Estado são permitidas quanto ao caso da Piazza Fontana, porque aí as vítimas eram cidadãos comuns, mas de certo também não se pretenderá suspeitar do Estado quando a vítima é o seu mais prestigioso representante! Kennedy, isso já foi há muito.
É só por isso que a agonia de Moro se prolongou tanto tempo, para que todos tivessem a possibilidade de seguir sem pressa o espetáculo completo do rapto, e a discussão simulada sobre a negociação, lendo cartas patéticas e mensagens impiedosas das fantasmagóricas Brigadas Vermelhas, que canalizaram a indignação de gente simples e dos pobres de espírito, dando assim uma tênue verosimilhança a toda a história, e uma razão de se manifestar o psicodrarna coletivo, continuando a contemplação e a passividade geral a serem as regras do jogo o que é o mais importante.
Se Moro tivesse sido morto ao mesmo tempo que os seus guarda-costas, na Via Fani, toda a gente teria pensado num ajuste de contas, de que a história está repleta, entre gangs capitalistas e centros de decisão rivais — como efetivamente se passou. Neste caso, a morte de Moro seria considerada exatamente como a de Enrico Mattei (22). No entanto, ainda ninguém reparou que se hoje qualquer grupo de poder se encontrasse, pelas suas necessidades ou pelos seus interesses próprios, na situação de ter que Eliminar um Enrico Mattei, ou um Kennedy, não o faria, é evidente, como o fez outrora; antes reivindicaria, ou faria reivindicar, de uma maneira segura e com a maior das facilidades, um tal assassínio por este ou aquele pequeno grupo terrorista secreto (23). Eis a razão pela qual foi necessário encenar todo esse longo seqüestro, salientando ora o seu caráter impiedoso, ora o seu caráter patético, ora a «firmeza» do governo, e quando por fim se considerou que as pessoas já deveriam estar convencidas da sua origem «revolucionária» e da responsabilidade de «extremistas», só então é que os carcereiros de Moro obtiveram a luz verde para dele se desembaraçarem. E tu, Andreotti, que és menos ingênuo do que desenvolto, não me venhas dizer que tudo isto é novidade para ti e, por favor, deixa-te de falsos pudores.
A nuvem de fumo que se lançou sobre este país, no respeitante à questão de se saber se se devia negociar ou não — questão que ainda apaixona os cretinos — , era a parte da trama que melhor deveria resultar e a que, pelo contrário, mais água meteu: foi exatamente nesse aspecto que o caráter artificial de toda a maquinação, acabada de montar — nos bastidores, ressaltou ainda mais do que a encenação do conjunto do drama. A parte que recusava a negociação, ou seja, os dirigentes da DC e do PCI, recusava por saber perfeitamente que a encenação do drama previa o epílogo que efetivamente nos foi dado presenciar, e porque também sabia que, dada a situação, não deveria perder a oportunidade de parecer, una tantum, inflexível a expensas de outrem: e eis porque pudemos admirar Zaccagnini e Cossiga, Berlinguer e Pecchioli discorrendo desavergonhadamente sobre a dignidade das instituições republicanas — aliás já de si tão bem representada pelo atual presidente, Leone (24). Os chefes da parte que recusava a negociação sabiam, além disso, que não deveriam perder a oportunidade de terem um Moro morto, que nessa altura era bem menos perigoso para eles do que um Moro vivo, pois um amigo morto vale mais do que um inimigo vivo. Com efeito, se, por hipótese, Moro tivesse sido libertado, coisa de resto impossível, os estalinistas e os democratas cristãos sabiam bem que teriam de enfrentar um homem triplamente perigoso, visto encontrar-se reforçado na sua popularidade em virtude da aventura vivida e por ter sido desacreditado de toda a maneira e feitio pelos seus amigos numa altura em que não se podia defender, sendo portanto, e a partir desse momento, um inimigo aberto dos seus amigos e dos seus ex-aliados estalinistas. Assim, e dada a situação, ninguém tem o direito de acusar Andreotti e Berliniguer, pois eles não fizeram mais do que agir consoante os seus próprios interesses; o que em todo o caso se lhes pode imputar é o terem agido tão desajeitadamente, ou seja, de modo a provocarem mais suspeitas e dúvidas do que aplausos pela sua conversão inesperada e súbita a uma inflexibilidade que, não podendo provir quer do seu caráter, quer do seu passado, quer da pretensa intenção de salvaguardar as instituições, que eles, pelas suas ações, escarnecem a todo o momento, deveria forçosamente derivar dos seus inconfessáveis interesses.
Quanto a Berliniguer em particular, não perdeu ele a oportunidade de se mostrar uma vez mais, como se toda a gente ainda não estivesse convencida disso, o homem político mais inepto do século: com efeito, desde o inicio de todo este processo tornou-se claro como cristal que o rapto de Moro era, acima de tudo, um rude golpe contra o «compromisso histórico», vibrado obviamente não pelos extremistas de esquerda — que teriam então raptado Berlinguer para o punir da sua «traição» — mas por um grupo de poder e de interesses que é irracionalmente hostil ao compromisso com os pretensos comunistas. E eu digo irracionalmente, porque uma tal política não pode em caso algum colidir com os interesses do capitalismo, mas é evidente que o diligente Berlinguer não conseguiu convencer disso a totalidade dos setores políticos, dos círculos militares, e dos grupos de poder, não obstante se dedique a esta tarefa, e exclusivamente a ela, há mais de um lustro. Assim, Aldo Moro, há muito designado como o artesão do governo de «unidade nacional», pagou o preço deste seu propósito precisamente quando acabava de conduzir a bom porto a sua nau, «de onde se tira uma regra geral, a qual jamais ou raramente falha: que o que for causa de outrem se tornar poderoso, provoca a sua própria ruína», como diz Maquiavel, e não por acaso, quando fala De principatibus mixtis, pois mista é a atual maioria de governo. Com o desaparecimento de Moro, todos os outros dirigentes políticos defensores de uma «abertura», democratas cristãos ou não, receberam uma advertência: porque os que decidiram e mandaram executar o rapto de Moro demonstraram, por esse próprio fato, que poderiam em qualquer altura fazer ainda pior. Craxi foi o primeiro a compreender isso, mas todos os outros homens políticos também o perceberam. E Berlinguer, em lugar de o denunciar logo de seguida, em vez de admitir o golpe mortal que este rapto vibrava na sua política, preferiu, uma vez mais, calar-se, simular acreditar em todas as versões oficiais, empenhar-se com zelo na caça às bruxas, incitar a população à delação, não se sabe de quem ou de quê, continuando a babular as suas próprias mentiras, apoiando a intransigência democrata cristã, e lançando invectivas contra os extremistas, na ingênua ilusão de acalmar assim os mesmos setores ocultos que haviam executado o rapto de Moro. Mas os estrategos da operação da Via Fani zombavam da boa vontade abstrata de Berlinguer contra a subversão, porque sabiam que ele sabia, e porque também sabiam que, quando se trata de verdadeira subversão, da subversão que é nociva à economia, Berlinguer não dispõe de quaisquer meios para impedir a mais ínfima ação por parte dos operários não enquadrados. Não basta querer acabar com a subversão, Berlinguer, pois é também preciso que demonstres que és capaz de acabar com ela: os louros da vontade abstrata são feitos de folhas secas que nunca foram verdes, imbecil!
Efetivamente, e como todos o puderam observar, o PCI não cessou desde então de sofrer as amargas conseqüências da sua estúpida desonestidade: durante o seqüestro, foi largamente acusado pela imprensa burguesa de ser, em última análise, o seu responsável, por ter alimentado no seio dos seus militantes toda a sorte de ilusões sobre a revolução social, obtendo esses belos resultados; a seguir perdeu as eleições; depois o abjeto Craxi (que já durante o seqüestro se inclinava para o lado dos partidários da negociação, que ele sabia impossível mas que lhe permitia diferenciar-se dos outros) passou à ofensiva, acusando os estalinistas de tudo, mas também mistificando, tudo sob brumosas querelas ideológicas, meros pretextos tanto mais risíveis quanto provenientes de um homem com a sua estatura intelectual e cultural. Mas quem perdeu foi sempre Berlinguer; e o PCI, por não querer ser combatido pelos seus aliados do governo, também desaprendeu a combater; e, a cada derrota sofrida, assistia-se à cena razoavelmente cômica de Piccoli e Andreotti a acariciar a nuca de Berlinguer, recomendando-lhe que não desesperasse e, sobretudo, que continuasse assim. E, no entanto, apesar de todos estes malogros, ainda hoje os estalinistas continuam teimosamente a fingir acreditar que Moro foi morto por extremistas de esquerda: pode assim dizer-se que a interminável série de derrotas registrada pelo PCI é verdadeiramente merecida, pois este partido é nulo como «partido de luta» (25), e inexistente como «partido de governo» (25). O que me parece menos compreensível e mais injustificado do que tudo o resto é o fato de os estalinistas se se lamentarem despudoradarnente, apresentando-se sempre como vítimas, sem no entanto nunca esclarecerem de que é que são vítimas — ou seja, por um lado, da sua própria incapacidade e, por outro, das intrigas dos seus inimigos, que são muito menos incapazes e indecisos do que eles, como a operação da Via Fani, entre outras coisas, o testemunha e certifica.
Os partidários de negociação, pelo contrário, sobreviveram à sua derrota, indo buscar alguma força à fraqueza do partido antagônico, e são representados por Craxi, por razões de pura conveniência, e pela Lotta Continua, devido à estupidez extremista que impede até os seus militantes de se aperceberem que são parte integrante do espetáculo que desejavam combater e de que, muito pelo contrário, permanentemente se alimentam. Ao redor deste partido da negociação congregaram-se, naturalmente, muitos intelectuais, cuja perspicácia é conhecida e cuja profundidade de pensamento já não tem que ser demonstrada: a estas características ajunta-se, no presente caso, a mais crassa ignorância da história, de resto ainda menos perdoável em quem tem uma palavra a dizer acerca de tudo e negocia com o seu pretenso saber. Eu explico: o que une antes de mais os burgueses reacionários, as boas almas da burguesia progressista, os intelectuais na moda, os simpatizantes contemplativos da luta armada e os militantes que dela se queixam, é precisamente o fato de suporem que, em relação a Moro, e pela primeira vez em matéria de terrorismo, o Estado não mentiu; portanto, e para toda essa alta roda, o rapto foi obra de revolucionários, a propósito dos quais o lúgubre Toni Negri (26) diz que «subestimamos a sua eficácia... Estamos dispostos a fazer a nossa autocrítica», por termos «subestimado a sua eficácia». Todos são, portanto, vítimas voluntárias ou involuntárias de mais esta mentira do Estado: é certo que os extra-parlamentares e os intelectuais de esquerda admitem que o Estado continua a servir-se do terrorismo, post festum, mas não podem conceber que a ele recorra para assassinar o seu «mais prestigioso» representante. E eis porque falo de ignorância histórica: ninguém conhece, ou pelo menos ninguém se lembrou, da miríade infinita de exemplos em que Estados em crise, e em crise social, eliminaram precisamente os seus representantes de melhor reputação, com a intenção e na esperança de criarem e canalizarem uma indignação geral — mas em geral efêmera — contra os «extremistas» e os descontentes. Para não citar mais do que um dentre mil exemplos históricos, recordarei aqui que os serviços secretos czaristas, a temível Okrana, sentindo com terror, e não sem razão, o advento da Revolução de 1905, mandaram abater, em 28 de Julho de 1904, o próprio ministro do Interior, Plehve, e como isto não lhes parecia suficiente, organizaram pouco depois, a 17 de Fevereiro de 1905, o assassínio do grão duque Sérgio, tio do czar, homem muito influente e chefe da circunscrição militar de Moscovo.
Os atentados, bem-sucedidos, foram decididos, executados e reivindicados pela «Organização de Combate» dos Socialistas-Revolucionários, à direção da qual acabava de ascender o famoso Azev, um engenheiro na verdade engenhoso e agente da Okrana, em substituição do revolucionário Guerchuni, oportunamente preso algum tempo antes (27).
Cito este único mas admirável exemplo de provocação, pois quinhentas páginas não seriam suficientes para se citar todos os exemplos notórios do último século; escolhi-o também por a Itália de 1978 apresentar uma semelhança vaga mas real com a Rússia de 1904-1905. Em todo o caso é preciso ainda salientar que qualquer poder em dificuldades se assemelha a qualquer outro poder em dificuldades, visto que o seu comportamento e a sua maneira de proceder se assemelham sempre.
A lógica presentemente seguida pelos estrategos deste espetáculo é simples, linear e antiga; desde que não se reconheça com exatidão quais as suas dificuldades reais, e quais as contradições irremediáveis em que se debate esta velha sociedade, os encenadores do espetáculo terrorista apresentam-nos simploriamente as coisas mais contraditórias: o terrorismo de 1978 como a seqüência inevitável das revoltas proletárias de 1977, e a Piazza Fontana como o termo lógico do ardente ano de 1969. Nada poderia ser mais falso! As revoltas de 1977 são a seqüência do Outono quente, e o rapto de Moro é a seqüência da provocação da Piazza Fontana. A história avança por contrações dialéticas, mas o espetáculo, tal como filósofos escolásticos, proclama obtusamente: post hoc, ergo propter hoc, após o fato, logo em conseqüência do fato; a falta é atribuída ao fato. Em 1977, a jovem geração proletária insurgiu-se contra a sua miséria? Pois bem, em 1978 esses mesmos jovens enraivecidos raptaram Moro! E pouco importa que as Brigadas Vermelhas nada tenham a ver com as revoltas de 1977 que, pelo contrário, foram por elas acusadas de «espontaneismo»: jovens proletários de 1977 eram subversivos, BVs são constituídas por jovens, logo as BVs são esses elementos subversivos de 1977. De forma alguma, senhores do governo! E vós, oficiais generais dos serviços paralelos, como vos enganais sempre, quereríreis por acaso que toda a gente fizesse como vós? E quem quer que denuncie as vossas provocações é imediatamente acusado de ele mesmo ser um provocador, pois no espetáculo a realidade encontra-se sempre às avessas.
A verdade é que, como em 1977 a vossa poltrona se pôs a tremer sob os vossos cus, senhores do governo, e a terra sob os vossos pés, vós, sim justamente vós passastes à contra-ofensiva, desta vez matando um dos vossos, e precisamente aquele dentre os vossos que vós e os vossos auxiliares secretos considerastes como o mais apto a provocar a indignação popular (ninguém teria pestanejado se Rumi, ou até Pantani, tivesse sido raptado) e também aquele dentre vós que era o mais responsável pelo atual «quadro político» que, como podeis constatar, não agrada a todos os setores capitalistas que vós e os vossos organismos militares sois chamados a defender. Pode assim dizer-se que Moro foi o homólogo italiano de Allende, e por detrás da acusação de servir os interesses da burguesia e do capital, em lugar dos do proletariado, encontrava-se na verdade, e mal camuflada, a acusação inversa, a de não servir os interesses capitalistas da forma que certos capitalistas o teriam pretendido.
Em 16 de Março de 1978, dia da operação da Via Fani, não pude evitar pensar imediatamente em duas coisas: antes de mais no fato de finalmente os serviços secretos italianos terem sido reorganizados e já se encontrarem um tanto recuperados do caso de 12 de Dezembro de 1969 e das humilhações subseqüentes (e, também aqui, e uma vez mais, a realidade foi invertida pelo espetáculo: com efeito, atribui-se o sucesso do golpe da Via Fani à inexistência de serviços secretos). E, em segundo lugar, pensei nessa passagem do Cândido onde se afirma que «neste país é bom matar-se um almirante de tempos a tempos para assim se encorajar os outros».
Sciascia, que é o mais conhecido dos feitores italianos de Voltaire, não é certamente o mais sutil, pois esquece-se desta passagem e de toda a realidade, e perde-se nesta ou naquela frase das cartas de Moro, sem descobrir, para além desses detalhes, o conjunto dos fatos, conjunto este que nenhum detalhe observado ao microscópio pode indicar ou deixar entrever. E efetivamente ainda hoje Sciascia acredita que Craxi e os outros tinham realmente interesse ou a intenção de negociar com «os revolucionários» e indigna-se, com um estro digno de melhor causa, com a pouca amizade que os amigos de Moro por ele demonstraram, o que é um detalhe insignificante, em vez de reservar a sua indignação para o essencial — quer dizer, para o fato de com esta provocação ter sido enganado não só ele, mas toda a gente, fazendo-se passar leis de polícia, difundindo-se os hipócritas e infames apelos dos intelectuais e do papa contra o «extremismo», condenando-se à prisão perpétua cem inocentes, e por aí fora. Diz-me só isto, Sciascia: que importância pode ter para a história, ou mesmo unicamente para a verdade, o fato de Aldo Moro ter tido, entre outros, o infortúnio de se rodear de «amigos» infiéis e desonestos? Será novidade para alguém o fato de o mundo político romano ser constituído por canalhas e assassinos? Nunca leste, Sciascia, aquilo que o cardeal de Retz, um panfletário mais sutil do que tu, observou há já três séculos, ou seja, que «há muitas pessoas em Roma que se comprazem em assassinar os que se encontram por terra»? Novo Émile Zola, tu não acusas os inimigos de Dreyfus, mas os seus amigos caluniadores, tu não acusas os criminosos e os responsáveis, mas os que cometeram a simples falta de caluniar e desonrar a vítima, post festum, entre os quais abundam também cronistas do Corriere, jornal onde também escreves, e está tudo dito. E se lamentas, Sciascia, o fato de Moro ter tido os amigos que teve, porque não começas tu mesmo a dar um bom exemplo, por exemplo, deixando de confraternizar com o indecente e inqualificável Bernard-Henri Levy?
Mas dos intelectuais já disse o indizível, e é inútil acrescentar-lhe seja o que for.
Quanto aos grupúsculos de pretensões extremistas que se lançaram todos de cabeça em dissertações teológicas sobre a violência e a estratégia do terrorismo «revolucionário», apenas recordarei que a sua compreensão da realidade já deu o que tinha a dar, primeiro, no caso da Piazza Fontana, e em várias ocasiões que se seguiram, como quando aplaudiram o assassínio de Calabresi, sem se alongarem a pensar que o comissário fora eliminado pelos seus próprios patrões, para os quais se tornara embaraçoso (tinha participado na maquinação montada contra Valpreda, no assassínio de Pinelli, e ainda noutra coisa: algumas semanas antes de, por sua vez, ser morto, foi justamente Calabresi quem reconheceu Feltrinelli no cadáver irreconhecível de Segrate, coisa pela qual todos os jornais lhe gabaram a sua «memória, a sua sagacidade», etc., sem nunca algum deles ter levantado a questão de saber se se tratava de memória, de sagacidade ou então de algo totalmente diverso).
Estes extra-parlamentares alienados perdem-se sempre em tudo o que os estalinistas dizem em matéria de terrorismo, pois não sabem que o PCI apenas é capaz de mentir, e a única coisa em que nunca acreditam é na simples verdade: por exemplo, que as BVs são teleguiadas, que Moro foi eliminado pelos serviços paralelos, e que eles são uns cretinos que só servem para serem presos sempre que tal se afigura útil (28).
Os estalinistas, quando a «pista vermelha» da Piazza Fontana se desvaneceu miseravelmente e muito embora não tenham protestado por Valpreda ter permanecido encarcerado durante três anos, tiraram do saco a «pista negra», e eis que os nossos extra-parlamentares adotaram a «pista negra» e lá foram eles também a correr atrás dos estalinistas gritando «o fascismo não passará». Naturalmente, não excluo de forma alguma a possibilidade de este ou aquele fascista ter participado naquele ou naquele ato terrorista, «negro» ou «vermelho»: mas esse fato não tem nenhuma importância, porque todos nós sabemos que da mesma forma que o nosso Estado se serve de fascistas notórios, empregando-os como generais, prefeitos, magistrados e comissários de polícia, também deles se serve enquanto agentes secretos, elementos infiltrados e mão-de-obra terrorista — e isto sem que este Estado e este terrorismo possam ser definidos como «fascistas».

* * *

Os estalinistas, visto não poderem ser acusados de não saberem o que é e o que não é fascista, nem de serem incapazes de distinguir o que é simplesmente policial do que é fascista, devem portanto ser acusados de haverem mentido quando afirmaram que a provocação da Piazza Fontana era de «estilo fascista» — e de haverem mentindo canhestramente, pois não disseram que «era fascista», mas sim que «era de estilo fascista». O fato de o general Miceli, hoje abertamente fascista, já o ser quando era o chefe do SID não determinou com certeza a sua ação quando dirigia os serviços secretos, pois os serviços secretos recebem ordens e executam o que os políticos determinam. Mas a mentira dos estalinistas em relação ao caso da Piazza Fontana seria canhestra mas não era certamente gratuita, visto quererem ocultar uma coisa que conheciam perfeitamente e também porque eram atacados por operários não enquadrados, e todos se lembram com que violência pretenderam, em 1969, fazer crer no fantasmagórico «perigo fascista», face ao qual poderiam reconstituir a «unidade da classe operária» sob as suas diretivas. Uma semana depois do 12 de dezembro os metalúrgicos do ramo privado, a vanguarda e o setor mais duro do movimento, foram obrigados a renunciar a todas as greves, a partir da anunciada para 19 de dezembro, e a aceitar o contrato imposto pelos sindicatos. Longo e Amendola sabiam bem que se houvessem dito a verdade de chofre, a guerra civil teria começado a 13 de dezembro de 1969, e hoje sabem bem que quem solicita ser convidado para comer a um canto da mesa do Estado, como eles o fizeram, não pode decerto dizer em voz alta que os pratos estão sujos; podem no entanto dizer em voz baixa e secretamente «os pratos estão sujos e nós sabêmo-lo, mas se vocês nos convidarem, não diremos nada a ninguém» o que na realidade se veio a passar.
Assim, e como os estalinistas se calaram em 1969, o «partido de mãos limpas» (29) teve que continuar a calar-se e a mentir acerca de todas as provocações que se seguiram e sobre os assassínios perpetrados pelos serviços secretos deste mesmo Estado de quem eles hoje exigem obter o reconhecimento pela sua omertà, e do qual querem partilhar as migalhas com os democratas cristãos.
Por um longo período, os situacionistas foram os únicos que, na Europa, denunciaram o Estado italiano como sendo o autor e o beneficiário exclusivo do terrorismo artificial moderno e de todo o seu espetáculo. E indicamos aos revolucionários de todos os países que a Itália era como que o laboratório europeu da contra-revolução, o campo de experimentação privilegiado das modernas técnicas policiais — e isto exatamente a partir de 19 de dezembro de 1969, data de publicação do nosso manifesto intitulado O Reichstag Arde (30).
A última frase desse manifesto, «camaradas não vos deixeis ficar pelo caminho», é a única coisa, sem exceção, que foi desmentida pela história: esse movimento parou precisamente nesse dia, e nem poderia ser de outra maneira, pois éramos os únicos a ter plena consciência do que significava a operação da Piazza Fontana e a dizê-lo, não dispondo no entanto de outros meios a não ser uma «policopiadora roubada» como se esclarecia no manifesto citado (31). Como diz o povo, «Dá Deus nozes a quem não tem dentes e dentes a quem não tem nozes»: pois todos esses corajosos extra-parlamentares de então, dispondo de jornais e de folhas de couve, não dispunham de dentes, e nada publicavam de pertinente sobre esta chacina, ocupados como estavam, e estão ainda, na busca da «estratégia correta» a ser imposta ao proletariado, que para eles só serve para ser dirigido, e ainda por cima por eles!
Devido ao seu incurável complexo de inferioridade em relação à capacidade de mentir do PCI, efetivamente superior à deles, os extra-parlamentares aceitaram pois de imediato a versão dos fatos propalada pelo PCI, segundo a qual as bombas eram de «estilo fascista» e, consequentemente, não podiam ser obra dos serviços secretos deste Estado «democrático», tão democrático que nem sequer se inquieta com o que eles dizem, pois são os únicos a considerá-lo «perigoso» para o espetáculo de que são figurantes mal remunerados mas indispensáveis. A sua falsa explicação dos fatos estava, no entanto, em perfeita sintonia com a verdadeira ideologia desses grupúsculos, nessa altura, apaixonados por Mao, Estaline e Lenine, como hoje o estão por Guattari, Toni Negri e Scalzone, ou pela sua miserável «vida privada» e pelos seus ridículos «bordéis». Esses pretensos «extremistas» tal como não queriam contar a verdade e não sabiam acusar abertamente este Estado de ser o terrorista, também, não sabiam combatê-lo de forma a obter quaisquer resultados palpáveis, pois dizer essa bomba «fascista» era tão falso como dizê-la «anarquista», e todas as mentiras, por mais antagônicas que possam parecer, são sempre solidárias na sabotagem da verdade. E só a verdade é revolucionária, só a verdade é capaz de ser nociva ao poder e só a verdade é capaz de enfurecer estalinistas e burgueses. E o proletariado, sempre enganado e traído por todos, aprendeu a procurar a verdade pelos seus próprios meios, e é impermeável às mentiras, por mais «extremistas» que as mesmas se pretendam. Da mesma forma, e devido à mesma dolosa incapacidade, todos os extra-parlamentares de 1978 caíram alegremente na armadilha do rapto de Moro, «obra de camaradas que se enganam». Mas não vos apercebeis, grandes lorpas, que, também desta vez sois os únicos «camaradas que se enganam»? Porém, o vosso epitáfio, bravos extra-parlamentares, já foi composto por Dante:
Mas vós mordeis a isca tão bem, que o anzol do antigo adversário para ele vos puxa; assim, travar ou retroceder têm pouco efeito.
Vítimas da sua própria falsa consciência, que se exprime sempre na ideologia, os extra-parlamentares não podiam no entanto continuar a fugir às questões levantadas pelo terrorismo em si mesmo, no empíreo da ideologia, de uma forma totalmente metafísica e completamente abstraída da realidade coisas. E quando finalmente se fez luz sobre a verdade da matança da Piazza Fontana, depois de todas as mentiras adotadas a seu respeito se terem desmoronado uma após outra, nem as boas almas da burguesia intelectual-progressista, nem os espantalhos para pardais da Lotta Continua e similares foram capazes de, por uma única vez que fosse, colocar a questão nos seus termos reais, ou seja, escandalosos: que a República democrática não hesitou em perpetrar uma chacina quando tal pareceu útil, porque quando todas as leis do Estado se encontram em perigo, «não existe para o Estado senão uma única e inviolável lei: a sobrevivência do Estado» (Marx). Eis o que na verdade é o famoso «sentido do Estado» que se atribuía a Moro e com qual os filistinos hoje ornamentam o seu cadáver. Em dez anos, ninguém quis desencadear um «caso Dreyfus» sobre o comportamento dos nossos serviços secretos, cujos chefes entravam e saíam da prisão pela surra, na indiferença geral de todos os detentores privilegiados do «sentido do Estado», esse sublime sexto sentido com o qual se encontram dotados os nossos políticos, e que não beneficia o comum do mortais, deficientes nesse campo, com também são agora deficientes, mas de outra forma, as pessoas que se encontravam no Banco da Agricultura e que, não morrendo, apenas ficaram mutiladas. Ou haverá alguém convencido de que este misterioso «sentido do Estado» seja algo de diferente daquilo que aqui assevero ele ser? «Moro possuía o sentido do Estado» e «Berlinguer possui o sentido do Estado»: se isto não quer dizer o que afirmo, então trata-se apenas de frases vazias, que eqüivalem a dizer que esta ou aquela rapariga tem «o sentido da cona» e eu o dos meus colhões, e que Tina Anselmi (32) não faz sentido mesmo que faça sensação.
Uma vez que os extra-parlamentares primeiro não acreditam saber, depois souberam sem acreditar e, por último, acreditaram sem concluir que o próprio Estado inaugurara o terrorismo em Milão, o conjunto do país entrou numa época de aparente loucura e de aparência loucas: toda a questão do terrorismo se tornou objeto de diatribes acadêmicas e de fogosas invectivas, que conduziram uns, burgueses e estalinistas, a condenar hipocritamente o terrorismo, «independentemente da sua cor» — como se não tivessem sido eles quem o encorajara e lhe dera cobertura, atribuindo-lhe em cada ocasião a cor mais conveniente, e outros, os que se imaginavam «extremistas» a acalentar a idéia de que «se responde ao terrorismo de Estado pelo terrorismo proletário». E eis o que vem mesmo a calhar para os nossos serviços secretos: os primeiros pequenos grupos terroristas clandestinos, as BVs e os NAPs, acabavam de se formar, e a polícia, os carabineiros e os corpos destacados já competiam entre si com vista a serem os primeiros a infiltrar-se nestes pequenos grupos paramilitares, quer para obstar às suas ações, quer para os teleguiar, conforme as necessidades e os desiderata do momento e dos poderosos.
Assim toda a gente pôde ver como os NAP foram radicalmente aniquilados, quer prendendo seus membros para depois os exibir de forma ignóbil neste ou naquele processo, quer diretamente servindo-se dos mesmos como alvo de tiro aos pombos, um espetáculo elaborado em que as «forças da ordem» se exibiram para o prazer da mais repugnante das burguesias. (33)
Pelo contrário, as coisas não se passaram assim com as Brigadas Vermelhas: conhecem-se apenas dois nomes dos infiltrados nesse grupo, ou seja, Pisetta e o frade cristão Girotto, os quais, muito embora bastante grosseiros como bufos provocadores, foram capazes de fazer com que Curcio e os outros membros do que se concordou em chamar «grupo histórico» caíssem na armadilha, o que não admira, pois eram todos militantes sem experiência de clandestinidade, e bem pouco «ferozes» como terroristas. Apesar disso, as BVs nunca foram desmanteladas após terem sido decapitadas, e isto claro, não devido à prudência dos militantes que ficaram em liberdade, que não são menos ingênuos do que os seus chefes que caíram na primeira armadilha que lhes foi armada, mas por decisão dos seus novos chefes. E porque é que o Estado, já em dificuldades por outras razões, deixaria passar esta magnífica oportunidade de ter às suas ordens um organismo terrorista, possuindo uma fisionomia e uma aparência autônomas, bem infiltrado, e tranqüilamente dirigido de longe? Não creio, nem sequer minimamente, que o general Dalla Chiesa seja o «gênio guerreiro» de que Karl von Clausewitz falava mas leu-o de certo com mais atenção e proveito do que Curcio, e isto sem se levar em linha de conta o fato de possuir maiores meios para pôr à disposição dos seus talentos. O general Dalla Chiesa, assim como todos os seus colegas do SISDE, do SISMI e do GESIS (34), zomba abertamente de todas as proclamações dos ideólogos da luta armada sobre as suas reafirmadas intenções de «levar o ataque até ao coração do Estado», em primeiro lugar porque sabe que o Estado não tem coração, nem mesmo falando metaforicamente, e em segundo porque sabe muito bem, tal como Andreotti e Berlinguer, que o único ataque hoje capaz de provocar a morte deste Estado é exclusivamente o que consiste em denunciar as suas práticas terroristas, e em denunciá-las violentamente — como por exemplo o estou a fazer neste momento.
O general Dalla Chiesa, muito embora seja mais conhecedor da tática do que da estratégia, e ainda que confunda a estratégia com o estratagema, substituindo a arte da guerra pela astúcia, sabe no entanto perfeitamente que o terrorismo é o sucedâneo da guerra numa época em que as grandes guerras mundiais são impossíveis, ou, em todo o caso, já não permitindo mandar chacinar um proletariado por um outro em extenuantes e sanguinárias batalhas. O nosso general e os demais estrategos da alta polícia política também sabem que o terrorismo espetacular é sempre antiproletário, e que é a prossecução da política por outros meios: prossecução, naturalmente, da política antiproletária de todos os Estados. Que este Estado tenha necessidade do terrorismo artificial moderno, encontra-se provado antes de mais pelo fato de ter sido exatamente aqui, em Itália, que o mesmo foi inventado há dez anos — e sabe-se que a burguesia italiana recorre à imaginação para suprir o que lhe falta em capacidade: foi também a burguesia italiana que inventou o fascismo, que a seguir tantos sucessos registrou na Alemanha, em Espanha, em Portugal, etc., isto é, por todo o lado onde foi necessário esmagar uma revolução proletária. E o espetáculo terrorista já obteve um sucesso imediato junto do governo alemão, que não invejando a nossa situação, inveja contudo a nossa imaginação, ou seja, a dos nossos serviços secretos, da mesma forma que nos anos 20 nos invejava Mussolini, essa imaginação que permite que o nosso governo navegue na merda sem nela se afogar.
Que este Estado careça do terrorismo é, por outro lado, um fato de que cada um dos seus representantes está agora perfeitamente convicto, por experiência se não por raciocínio, e isto depois do feliz, imediato e miraculoso desenlace da operação da Piazza Fontana. A prova é a de que se não houve um «caso Dreyfus» a esse respeito, tal não foi certamente devido a esta questão ser menos escandalosa mas sim pelo fato de todos os partidos, por razões diferentes, terem compreendido que se esta bomba salvou o Estado, que cada um deles defende à sua maneira, a verdade sobre a mesma seria só por si capaz de o destruir definitivamente. E, se não houve «caso Dreyfus», isso também se deve ao fato de na nossa intelectualidade domesticada não existir nenhum Émile Zola de serviço que alguma vez tenha reclamado ou querido exigir uma conclusão verídica sobre o que se passou na Piazza Fontana: Giorgio Bocca lança pudicamente em 1970 o seu livro sobre o terrorismo e, quanto aos outros mandarins da cultura, esses sempre preferiram perante as ofuscantes chamas do incêndio do Reichstag, andar em busca de pirilampos sem, evidentemente, os achar nunca, como aconteceu com Pasolini e Sciascia, mas sempre discutindo as responsabilidades da poluição nesta desaparição, e elevando contra ela agudas lamentações, «polemicando» agradavelmente, sem nunca denunciar a poluição terrorista, de que são todos simultaneamente cúmplices e vítimas.
Gostaria que os serviços paralelos e os generais — que lerão atentamente Remédio para Tudo, ou, pelo menos, o capítulo que lhes diz respeito — prestassem um pouco de atenção a duas coisas que lhes digo sobre a fragilidade da sua estratégia. Antes de mais repara bem, Dalla Chiesa, no que Clausewitz te ensinou, no capítulo que consagra à astúcia:
«Por muito que se queira imaginar generais... combatendo com dissimulação, com astúcia, com perspicácia, deve no entanto admitir-se que tais qualidades se revelam pouco na história... Não é difícil encontrar-se a razão de tal... na realidade, é perigoso ocupar prolongadamente forças consideráveis com a única finalidade de se enganar o inimigo, pois há sempre o risco de o fazer em pura perda, as mesmas forças vindo depois a faltar no momento decisivo. Esta verdade fria, que deve estar sempre presente no espírito de quem faz a guerra, desvanece nos chefes militares perspicazes todo o desejo de se empenharem no jogo duplo de uma mobilidade enganosa... Em suma, no tabuleiro estratégico as peças não possuem a mobilidade que seria a condição indispensável para que a astúcia e o estratagema fossem bem sucedidos... (a astúcia) não é nociva, a menos que subsista em detrimento de outras qualidades do coração — caso que infelizmente se verifica com grande freqüência.»
A segunda coisa a considerar, a propósito de uma estratégia que se alicerça na provocação, é velha como o mundo: Seneca já observava, e se o cito é porque, sendo o conselheiro de Nero, era sabedor em matéria de terrorismo de Estado e de provocação, que é «mais fácil não nos empenharmos nesta via do que, uma vez empenhados, a abandonarmos». À semelhança das drogas, o terrorismo artificial necessita de e exige ser administrado em doses crescentemente maciças e freqüentes,
porque menor parece o mal futuro e o já feito,
como diria Dante. Efetuai pois de novo os vossos cálculos, ó políticos e generais, e vereis que estão errados.
Mas se o Estado, como o demonstrei, tem necessidade do terrorismo, também carece de não ser apanhado sempre com a boca na botija, de modo a poder apresentar em seguida o belo rosto que os seus ministros, como Rumor e Tanassi, apresentaram em Catanzaro, e no que só foram igualados pelos generais Malizia, Maletti e Miceli. E que melhor ocasião, para o Estado, do que esta oferecida por um grupo como as BVs, decapitado e disponível, com os seus antigos chefes na prisão e na ignorância de tudo? No entanto observo que, mesmo se os antigos chefes estivessem em liberdade, e dado que dois infiltrados foram suficientes para os fazer cair, um só, menos rude do que o Irmão Metralheta e do que Pisetta, teria chegado para os levar a fazer aquilo que se queria que eles fizessem, e isso sem que os referidos chefes suspeitassem do que quer que fosse. Bem sei que os infiltrados que se tornaram conhecidos até agora, assim como a maioria dos bufos provocadores em funções, não inventaram a pólvora; mas os nossos militantes clandestinos não são, como já se viu, mais sutis do que eles. E mesmo que fossem todos Lenines, como se imaginam, seria ainda preciso ter presente que os bolcheviques foram muito infiltrados, e isto por diversas vezes: Roman Malinovski, operário e agente da Okrana, fazia parte do Comitê Central bolchevique, beneficiando da mais cega confiança por parte de Lenine e enviando para a Sibéria centenas de militantes e de dirigentes e, perante uma suspeita que lhe foi transmitida por Bukarine, Lenine respondeu que isso era «indigno de um militante consciente: se persistires, tu é que serás denunciado como traidor», segundo relatou a mulher de Lenine, Nadiejda Krupskaja. Mas Malinovski não foi um caso isolado: investigando em 1917 os arquivos secretos da Okrana, Lenine ficou não sem razão estupefato por descobrir que, dos cinqüenta e cinco provocadores profissionais oficialmente em funções, e regularmente pagos, dezessete «trabalhavam» no seio dos Socialistas-Revolucionários, e uma boa vintena dividia entre si o controle dos bolcheviques e dos mencheviques, e de certo não ao nível dos militantes de base! E Lenine teve a amarga surpresa de dever constatar que os provocadores eram sempre precisamente os próprios «camaradas» a quem ele, tão prudente e tão perito em matéria de clandestinidade, outorgava a maior confiança e a maior estima, em virtude dos serviços por eles prestados e da audácia demonstrada em várias ocasiões.
Hoje em dia, essas práticas, que na altura eram consideradas procedimentos altamente sofisticados e muito elaborados da Okrana, não passam de primitivismos: os modernos serviços paralelos do Estado, de qualquer Estado, dispõem de uma multiplicidade de meios, e de personagens de todas as classes e de todas as aparências sociais bem adestradas no manejo das armas e das idéias, muitas vezes bem mais capazes do que os ingênuos militantes, que afinal acabam por pagar as favas. A forma organizacional de partido, sempre hierárquica, é na verdade aquela que melhor se presta à infiltração e à manipulação — exatamente ao contrário do que afirma a imprensa burguesa — : todos os núcleos de base, compostos de militantes clandestinos, são mantidos afastados uns dos outros e na ignorância de tudo, sem qualquer possibilidade de diálogo ou de debate, e tudo funciona perfeitamente graças à mais cega das disciplinas e às oportuníssimas ordens dadas por uma cúpula inacessível, que geralmente se encontra alojada neste ou naquele ministério ou grupo de poder. E se em qualquer altura um provocador levanta suspeitas, acontece sempre que é providencialmente preso, transformado numa grande vedeta pela imprensa, o que o livra do perigo e lava de qualquer suspeição — preparando-o para voltar a entrar em funções, graças a uma incrível e «heróica» evasão; porém, acontece também freqüentes vezes aos provocadores perderem a pele neste jogo.
Eis pois mais uma razão para eu desaconselhar a todo o subversivo de boa fé a sua integração numa organização hierárquica e clandestina assumindo a forma de «partido»; a clandestinidade pode ser, em certas condições, uma necessidade, enquanto que qualquer hierarquia beneficia sempre e unicamente este mundo que urge destruir. Nos grupos revolucionários que dispensam a separação entre militantes e dirigentes e que se fundamentam no qualitativo, a infiltração é praticamente impossível, ou é logo descoberta: «o único limite à participação na democracia total da organização revolucionária é o reconhecimento e a auto-apropriação efetiva, por parte de todos os seus membros, da coerência da sua crítica, coerência que deve ser provada na teoria-crítica propriamente dita e na relação entre esta e a atividade prática» (Debord).
Não é novidade que em vários «esconderijos» das BVs se tenha encontrado abundante material ultra-confidencial, provindo de organismos policiais, de comissariados e mesmo de ministérios — que estranhamente, nunca foram tomados de assalto e saqueados pelas BVs. Colocada perante fatos tão eloqüentes, a informação espetacular pretendeu sempre explicá-los fazendo ressaltar uma vez mais a pretensa organização ultra-eficaz das terríveis BVs, e acrescentando-lhe, para melhor enquadrar este belo achado publicitário, a hipótese de estes militantes clandestinos, tão procurados mas tão tentaculares, se terem infiltrado por todo o lado, mesmo e nos comissariados. Deixem-me rir perante uma tal explicação de uma realidade tão lúgubre e tão desajeitadamente camuflada. Uma vez mais abusa-se da inteligência de cinqüenta milhões de italianos, que não são alemães prontos a deixarem-se adormecer com o biberão envenenado da televisão, do Corriere e do Unità, e os que atribuem uma tal estupidez ao comum das pessoas não fazem mais do que revelar a sua — que, por ultrapassar em tanto as medidas, já não será de certo tão comum. Uma vez mais o poder fala por contra-verdades: não foram as BVs que se infiltraram nos comissariados e ministérios, mas sim uma caterva de agentes do Estado, que provenientes de comissariados e ministérios, foram propositadamente infiltrados nas BVs, e com certeza não apenas na sua cúpula!
E se durante dez anos a grande luta sem quartel contra o monstro terrorista, luta tão glorificada em palavras, não teve por resultado nada a não ser a hipertrofia deste «monstro», se o processo da Piazza Fontana na verdade ainda nem sequer começou, isto deve-se ainda ao fato, não sei se muito cômico ou muito repugnante, de aqueles que sempre estiveram encarregados dessa luta sem quartel serem os mesmos serviços secretos que sempre dirigiram e animaram o terrorismo, e certamente não devido a pretensos «desvios» ou «corrupções» mas, muito militar e simplesmente, no cumprimento de ordens recebidas. E todos os militantes que são exibidos ao público em jaulas nos tribunais, como se fossem bestas ferozes, rapazes ingênuos que se quer ver envelhecer em prisões italianas, são sempre, e sem margem para dúvidas, os menos implicados — e isto mesmo que sejam ora designados como «chefes», ora como «estrategos» (nada mais fácil do que fazer acreditar a um ingênuo fanático que tomou efetivamente parte nesta ou naquela operação, só porque se encarregou da colocação do comunicado que a reivindicava).
E os nossos oficiais generais muito se divertem a contar as condecorações e as citações por mérito que colecionam, tanto alimentando o terrorismo, como «descobrindo», no momento oportuno, os «culpados» do mesmo.
Neste fenômeno, que pode suscitar a indignação virtuosa dos hipócritas, não existe na realidade nada de novo, pois há já muitos séculos que o mesmo repete em épocas de corrupção e de decadência de todos os Estados. Salústio, por exemplo, que é o historiador da corrupção e da crise da República de Roma, narra que Lucius Marcius Filippus denunciou Lépido, general traidor, perante o Senado nestes orgulhosos termos:
«Eu quereria sobretudo, ó senadores,... que os desígnios criminosos se voltassem contra os seus autores. E, pelo contrário, toda a República se acha convulsionada e confundida por provocações sediciosas, e precisamente pela ação dos que deveriam ser os primeiros a impedi-las... e vós, emitindo grunhidos de dúvida e irresolução, confiando nas palavras e nos versetos dos augures, vós desejais a paz em lugar de a defender, não compreendeis que com as vossas flácidas proclamações vos privais de toda a dignidade, e a eles de todo o medo... pois quando se recompensa celerados, não é fácil continuar-se reto sem a mínima contrapartida... Por conseguinte, não sei se deverei apelidar o vosso comportamento de medo, de baixeza, ou de loucura... E tu, Lépido, traidor a todos..., pretendes restabelecer por uma tal guerra a concórdia que é tornada vã pelo próprio meio através do qual foi obtida. Que impudência!...»
É precisamente isso: a paz social obtida pelo recurso ao terrorismo «é tornada vã pelo próprio meio através do qual foi obtida», com a diferença de hoje em dia os impudentes serem todos os deputados da República e todos os oradores que imprecam contra o terrorismo, levando-o assim para o seio dos seus discursos e fingindo ignorar aquilo que todo o país diz desde o famoso ano de 1969. Ouçam um pouco do que afirma Leo Valiani, esse honesto Lépido moderno, que não teve vergonha de lamentar, num Corriere de Julho de 1978, as «sentenças muito suaves» pronunciadas contra um executante qualquer:
«(estas sentenças) encorajam os subversivos a perseverar, e a ousar cada vez mais. Não pedimos aos juizes — prossegue valentemente Valiani — que condenem quem quer que seja sem estarem, convencidos da sua culpabilidade. Mas quando a República se encontra, como neste momento, confrontada com organizações clandestinas como as que semearam a morte na Piazza Fontana... toda a indulgência em relação a pessoas que tenham militado em tais organizações subversivas é suicida.»
E que indulgência pode ultrapassar, santo nome de Deus, a de Valiani, perito em terrorismo estalinista e burguês, companheiro de viagem destes dois terrorismos e cúmplice de todas as mentiras a seu respeito, que finge ainda ignorar, e é o único em Itália, que a «organização clandestina que semeou a morte na Piazza Fontana» não é outra senão a do almirante Henke, que nessa altura comandava o famoso SID — o que levou a que, por decência, ou melhor, por indecência, lhe tivessem agora mudado o nome? E quererá continuar-se nestes dez próximos, anos, com as mesmas perorações de Valiani, desta vez a propósito da execução de Moro? Que parlamentar, que honorável safado, dentre os que mutuamente se acusam da sua própria «indulgência», falando a torto e a direito da «salvaguarda da República», ousou, até o presente, expor-se acusando e nomeando os assassinos de dez anos atrás?
O fato é que, precisamente, a salvaguarda desta República criminosa depende agora só da sua capacidade de continuar a encobrir esses assassinas e os de Moro — bem como os de Calabresi, Occorsio, Coco, Feltrinelli, Pinelli, etc.; e isto os nossos ministros e os nossos honoráveis parlamentares sabem-no muito bem, eles que continuam a calar-se para receberem novas remunerações que vão engrossar as suas já substanciais quota-partes.
O nosso regime, após o grande pavor de 1969, depositou sempre uma imensa confiança na sua alta polícia política, e na sua capacidade de encontrar sempre soluções técnicas e espetaculares para todas as questões históricas e sociais. O nosso regime está pois prestes a cometer o mesmo erro outrora cometido pelo regime czarista, que consagrou toda a sua atenção e todos os seus cuidados à construção da melhor e mais poderosa polícia secreta do mundo, como o foi a Okrana em seu tempo; isso permitiu ao czar ir sobrevivendo dia a dia e sem nada mudar por mais uma década, mas esse adiamento só velo tornar a sua queda mais violenta e mais definitiva. Como dizia um pensador burguês, Benjamin Constant, «só um excesso de despotismo pode prolongar uma situação que tende a dissolver-se, e manter sob uma única dominação classes que tudo conspira para separar... Este remédio, ainda mais nocivo do que o mal, nem por isso tem uma eficácia durável. A ordem natural das coisas vinga-se dos ultrajes que se lhe querem fazer suportar, e quanto mais violenta foi a compressão, tanto mais terrível se mostra a reação.»
E em Itália, dez anos de uma tal política de alta polícia começam a fazer-se sentir, inclusive no que diz respeito aos seus efeitos nocivos e incontroláveis: o Estado continua a existir, é certo, com mais autoridade e menos reputação do que nunca, mas os seus verdadeiros adversários multiplicaram-se por todo o lado, a sua consciência cresceu e, com ela, a eficácia e a violência dos seus ataques. Nas épocas em que foi a polícia que fez a política, o que se seguiu foi sempre um desmoronamento total.
Hoje, o sinistro Craxi procura aplausos fáceis fingindo aperceber-se que na Rússia, novidade escandalosa, os delitos de opinião são considerados crimes de Estado; mas não vês, pobre Craxi, que aqui em Itália são os crimes de Estado que são considerados delitos de opinião? Será que isto não é um fato digno da tua virtuosa indignação? Ridículo Craxi! A quem é que tu queres fazer crer que a tua alma é imaculada? Tu que te pavoneias com o teu digno compadre Mitterand, julgas que já foi esquecido que Mitterand é um gangster, e que há poucos anos atrás pagou a outros gangsters para que estes simulassem um ataque contra ele? (35) Ninguém acredita em ti, Craxi, quando proclamas que sine macula enim sum ante thronum! (36) E todos vós, chefes de partido, sois como Mitterand: quando não sois vós a encomendar os atentados, mas sim um rival, calais-vos sempre, e a seguir falais da firmeza do Estado ante as vossas próprias provocações!
Que em Itália os crimes de Estado sejam considerados como simples delitos de opinião, eis o que é provado, para além de tudo o resto, pelo simples preciso fato que se seque: quando, em 1975, sob o pseudônimo de Censor, publiquei as provas históricas, e não judiciárias, de ter sido o SID quem cometera o massacre da Piazza Fontana, todos os jornais e todos os jornalistas se referiram amplamente às minhas conclusões, mas mostraram-se muito mais escandalizados por uma personagem muito anônima, na aparência vizinha do poder, ousar acusar abertamente o SID, do que por toda a crueza do fato de o Estado ter organizado e feito executar um massacre a fim de sair indemne de uma gravíssima crise social. E o jornalista Massimo Riva exprimiu admiravelmente o pensamento de todos os seus colegas, interrogando-se no Corriere, a propósito do caso Censor, sobre que misteriosa manobra do poder esse caso prenunciava: «Quem é que está por detrás disso? O medo de dizer publicamente a verdade? Uma advertência entre altas personagens do regime?» Não eram portanto as minhas escandalosas afirmações e conclusões que provocavam o escândalo, mas sim o meu anonimato, ou antes, o espavento criado à volta da identidade de Censor não servia senão para camuflar o escândalo do que eu denunciava. Se todos preferiam aventurar obtusas conjecturas sobre a minha identidade, tal não se destinava senão a evitar falar do que eu havia dito. «Uma advertência entre altas personagens do regime?»: eis o nó da questão, segundo Riva e os outros, o que fez escândalo foi unicamente o fim da omertà entre os poderosos, e não os crimes cometidos por eles.
Mas o melhor, como de costume, veio de Alberto Ronchey, de quem nada nos deverá espantar a não ser o fato de ele já não conseguir espantar-nos. Ronchey opina, a propósito das minhas provas, que «quaisquer que sejam as responsabilidades e intrigas do Sifar-SID e de outros corpos destacados», e apesar disso, «no que diz respeito a bombas, a raptos... se se pudesse verdadeiramente acreditar num ‘terrorismo de Estado’, estaríamos em presença de um sistema criminoso de governo, e ninguém quereria ter nada a ver com um tal poder: nem os comunistas, nem os socialistas, nem os outros» (37). O que é inacreditável não é com certeza o terrorismo de Estado, mas sim a forma de raciocinar de Ronchey; como ele próprio, os comunistas e os socialistas têm algo a ver com um tal governo, logo, segundo Ronchey, isso constitui uma garantia suficiente de que um terrorismo de Estado não é verosímil; logo o mesmo não existe, «quaisquer que sejam as responsabilidades e intrigas» do SID; para se raciocinar como Ronchey, Deus, pelo contrário, é verosímil, e portanto existe. Quando se discute assim sobre o terrorismo e o Estado, fica-se com a impressão de se ter voltado às polêmicas sobre a existência de Deus e do Diabo. Serão eles verdadeiros? Existirão? E se existirem, serão verosímeis? O poeta diz bem sabiamente que
Verdadeiro seria, mas verosímil nunca para quem da sua razão senhor não era.
Não consigo compreender aonde querem chegar os Ronchey com a sua lógica teológica. Eu nunca disse que os serviços secretos estavam por detrás de todos e de cada um dos atentados, uma vez que hoje em dia mesmo um cocktail Molotov ou uma sabotagem de produção são considerados «atentados»; o que disse, e tenho-o dito vai para dez anos, é que todos os atos terroristas espetaculares são ou teleguiados ou diretamente executados pelos nossos serviços secretos. E repare-se bem que não digo «por serviços secretos», podendo pertencer a algum país longínquo ou exótico, mas pelos nossos, sim, pelos da Itália, de que já conheço o toque e o fedor, a habilidade e a falta de jeito, a engenhosidade tática e a estupidez estratégica.
Observem, por exemplo, como é que o SID chegou à operação da Piazza Fontana: por tentativas e aproximações sucessivas. Tinham decidido efetuar um massacre no seio da população, e prepararam-no com dois ensaios gerais: as bombas do 25 de abril na Feira e no banco da estação de Milão, e as bombas em comboios em Agosto do mesmo ano. Os serviços secretos prepararam assim a opinião pública com este background, que também serviu para a preparação técnica dos próprios serviços secretos.
E que ensaios gerais se fizeram para o rapto de Moro? Sim, porque também este rapto teve os seus ensaios gerais, pois os nossos serviços secretos são facilmente assinaláveis, mesmo que mudem de objetivos, pois têm sempre a mesma forma de proceder — coisa que Maquiavel não lhes perdoaria. O rapto, sem efusão de sangue, de De Martino, em 1977, já era um ensaio geral do de Moro: nos seus ensaios gerais, os serviços secretos nunca pretendem fazer correr sangue, pois também ninguém foi morto tanto em 25 de Abril como em Agosto de 1969. No entanto, o ensaio indica sempre o objetivo que virá a ser acometido: em 1969 a população, em 1977/78 um político. No próprio dia do rapto de De Martino, logo reivindicado por uma centena de grupos fantasmas, denunciei-o como um ensaio geral dos serviços secretos num cartaz impresso e difundido em Roma (38). O segundo ensaio, que indicava bem o objetivo escolhido — ou seja, um homem político — foi a bomba, cuja publicidade foi tão bem assegurada, no gabinete do ministro do Interior da altura, Cossiga. Depois veio o golpe contra Moro e houve efusão de sangue, pois já não se tratava de um ensaio geral.
Sob o impacto das ameaçadoras revoltas dos inícios de 1977, os serviços secretos, que há dez anos estavam de sobreaviso e nunca tinham ficado inativos, começaram a movimentar-se resolutamente numa direção bem precisa; e as duas provocações citadas, que não foram as únicas que se produziram, foram no entanto aquelas que melhor indicaram qual o objetivo escolhido e qual a marcha dos acontecimentos.
Poderá pois dizer-se com segurança que o rapto de Moro era a coisa menos imprevisível do mundo, pois era a coisa menos imprevista no local onde se pode fazer tudo o que se quiser, ou seja, no poder. De início, temia-se que De Martino, amigo dos estalinistas, conseguisse chegar à presidência da República e, fazendo-o desembolsar várias centenas de milhões de liras para reencontrar o filho, destruíram-lhe a reputação de «socialista»; Moro foi então designado publicamente como sucessor de Leone, apesar de menos passível de chantagem do que De Martino ou Leone, ou seja, mais perigoso porque mais forte; além disso, Moro era o responsável pelo acordo com os estalinistas e, como presidente da República, outros surgiriam com certeza. Dois e dois fazem quatro, mesmo em política; 16 de Março de 1976: o Presidente deve morrer, para se parodiar o título de um livro de Andreotti.
Seis meses depois da operação da Via Fani, quando a política anti-estalinista de Craxi prestava as suas primeiras provas, Amintore Fanfani, que na Toscânia é cognominado o Ressuscitado, lançava o seu primeiro e vigoroso ataque contra o governo, contra o secretariado da DC, contra o «gabinete de emergência», contra a «aproximação» realizada por Moro denunciando «os abusos do unanimismo», a ineficácia do «equívoco» governo de «unidade nacional» e anunciando a ultrapassagem de «uma época política» — obtendo aplausos dos craxistas e suscitando «receios» por parte dos estalinistas. Muito embora Fanfani seja o homem político italiano que, após Berlinguer, averbou um maior número de derrotas, tal não significa que seja um cretino: mais inteligente do que hábil, e menos avisado que engenhoso, o Ressuscitado limitou-se a tirar as conclusões políticas do caso Moro, visto o terrorismo ser a prossecução da política por outros meios.
Enquanto existir um poder separado dos indivíduos, não serão seguramente os indivíduos que lhe faltarão: nenhum funcionário do poder e do capital é insubstituível ou indispensável à manutenção do seu domínio, nem Kennedy, nem Mattei, nem Moro, nem nenhum dos que ainda estão vivos e em funções. Aquilo que, num período perturbado, se torna indispensável a um poder que não quer renovar-se, é justamente a eliminação de certos homens, quer porque estão muito comprometidos e muito queimados, como Rumor, quer porque, desejando uma «renovação», por mínima que seja, suscitam alguns temores ou uma certa desconfiança em determinados setores do poder; e sabe-se que os setores mais reacionários são sempre também melhor armados. As «aberturas» de Moro foram interpretadas como opondo-se a certos inteteresses, e como uma concessão a uma «mudança» — e isto apesar de, historicamente, estas aberturas tentarem precisamente evitar toda a mudança, mas sem muita convicção e sem garantias suficientes — quer dizer, de uma maneira diferente da preconizada por uma fração do poder e por alguns militares.
Na história, qualquer poder se comporta da mesma forma que se comportaram todos os demais poderes, e à medida que a atual política policial de provocação segue o seu curso, que já demonstrei não poder ser por ela travado, amadurece também para os seus poderosos estrategos, semi-lúcidos e semi-inconscientes, mas completamente dominados pelo pavor, a necessidade de se desembaraçarem, à maneira da Máfia, de certos homens que ainda na véspera lhes eram úteis. Em tudo isto não há nada de novo, e é uma confirmação suplementar de velho princípio segundo o qual «o que for causa de um outro se tornar poderoso está a arruinar-se a si mesmo»; nem Moro, nem qualquer dos seus colegas impediram nunca a polícia política de, nestes dez anos, se tornar tão poderosa; nenhum protestou contra ou combateu um fenômeno que todos, ao contrário, alimentaram: Moro foi a primeira vítima de certa importância ceifada por uma tal política, mas não foi a única. Os estrategos do terror já se tinham desembaraçado de outras personagens, menos importantes mas não menos utilizadas precedentemente. Temos perante nós alguns exemplos ainda recentes: a liquidação de Calabresi, a morte longínqua e misteriosa do fascista Nardi, acusado do assassínio de Calabresi, o «suicídio» de um bom número de oficiais do SID, os acidentes mortais de que foram vítimas diversas testemunhas do processo da Piazza Fontana, os atentados espetaculares e simultâneos contra os magistrados Coco e Occorsio, que foram reivindicados, por uma preocupação de simetria sempre presente no espetáculo dos «extremismos opostos», pelas BVs e pelos fascistas. Vale a pena observar que estes dois magistrados se tinham ocupado, e não pouco, do terrorismo: Coco havia sido encarregado do caso embrulhado e incongruente do rapto de Sossi (39), e Occorsio da encenação grandiosamente montada contra a «besta humana» Pietro Valpreda. Naturalmente, toda a informação falseada apresenta sempre como confirmação da versão oficial dos fatos aquilo que justamente a desmente: Coco «não cedia» às BVs, e por isso elas vingaram-se — não se compreende porque é que, para se vingarem, não mataram o juiz Sossi: faço um refém, e ponho-te entre a espada e a parede: se não cedes à chantagem, é a ti que te mato e não o refém: lógica ilógica, mas lógica espetacular.
Quanto a Occorsio, nos seus derradeiros tempos ocupava-se ele de um inquérito sobre os fascistas, logo estes tinham interesse em matá-lo — mas, por piedade, que ninguém se atreva a suspeitar disso. O fato de Occorsio se ter ocupado por último de fascistas, depois de tanto se ter ocupado de anarquistas, mas com tão maus resultados, deve ter sido em conseqüência de alguém lhe haver sugerido que se ocupasse de fascistas, para em seguida fazer estes reivindicar o seu assassínio, fornecendo-lhe assim uma explicação (já não era possível acusar Valpreda de também ter morto Occorsio: Valpreda é agora um «culpado» usado, queimado e não utilizável; se amanhã se lesse nos jornais que Valpreda matara a sogra, não haveria em Itália pessoa alguma que o acreditasse).
Os juizes que hoje se afadigam com o caso Moro são as pessoas menos invejáveis de Itália, e devem ter muito cuidado: devem, desde já, preocupar-se em não se afastarem da matéria do seu inquérito e em não desagradarem a certos setores do poder; depois, deverão estar sempre atentos a tudo, pois o Estado não quererá deixar escapar qualquer oportunidade de se desembaraçar deles, sendo fácil às BVs «reivindicar» em seguida a sua morte, que dessa forma seria explicada à opinião pública. E presentemente em Itália tudo o que pode ser explicado também está justificado — e mesmo que a explicação seja abusiva, torna-se, dado que ninguém a rebate, uma explicação sem apelo nem agravo, uma mentira que já não é desmentida jamais o poderá ser. Se é possível desmenti-la, ela não é desmentida, se é desmentida, não é «verosímil» e se não é «verosímil», não existe — para falar como Ronchey. Poucas coisas, dentre as que Orwell previra no 1984, ainda não se verificaram; leiam, por exemplo, a seguinte passagem:
«Ela era, sob certos aspectos, muito mais sutil do que Winston e muito menos permeável à propaganda do Partido. Um dia, tendo ele, por acaso, feito uma alusão qualquer à Guerra..., ela surpreendeu-o dizendo com desenvoltura que em sua opinião ‘não havia guerra e que era muito provável que as bombas e mísseis, que diariamente caíam sobre Londres, fossem lançados pelo próprio governo só para manter a população num estado de terror’. Esta era uma idéia na qual ele literalmente nunca havia pensado...»
Alguns extra-parlamentares, perdidos por detrás das suas pueris ilusões e da teologia fetichista da luta armada, poderiam pretender objetar que, assim como eles crêem na luta armada, muitos outros, mais «extremistas» do que eles, poderiam efetivamente praticá-la e ser responsáveis por tudo, inclusive pelo rapto de Moro. Quero observar aqui que nunca duvidei, nem em público, nem em privado, da imbecilidade da globalidade dos nossos extra-parlamentares; no entanto, será bom salientar que, no que lhes diz respeito, nunca põem em dúvida o que o espetáculo conta sobre si próprio e sobre eles. Prestai apenas atenção a isto, bravos militantes alienados: se Moro tivesse sido efetivamente raptado e morto, como vós o credes, por revolucionários livres e autônomos como vos contou o Estado, daí se poderia concluir também que, pela primeira vez em dez anos, o Estado não mentia em matéria de terrorismo, o que, sendo inaudito e absurdo, é de excluir.
A triste verdade é a de, muito ao contrário, vós terdes sempre acreditado em todas as mentiras passadas, sobre Valpreda, sobre Feltrinelli, sobre as BVs, e por aí fora; até o jornal oficial dos anarquistas, Umanità Nova, se apressou a precaver-se, após os acontecimentos da Piazza Fontana, dissociando as suas «responsabilidades» das de Valpreda — dando assim provas de uma coragem à altura da sua inteligência.
Inúmeros militantes de extrema-esquerda acham-se muito perspicazes por terem compreendido que Pinelli não saltou pelos seus próprios meios do quarto andar do Comissariado Central, mas jamais conseguirão bater este record de perspicácia, pois, pouco tempo depois, aplaudiram os nossos serviços secretos quando estes liquidaram o comissário Calabresi. A nossa burguesia e os estalinistas, que já deram tantas provas da sua incapacidade, têm assim boas razões para se consolarem, considerando a estupidez dos seus pretensos adversários «extremistas», que de certa maneira compensa a sua, mesmo que a não anule. E com efeito, nunca em dez anos, nenhum grupúsculo extra-parlamentar conseguiu ser minimamente nocivo para este Estado pois nenhum foi capaz de favorecer de qualquer forma as lutas práticas dos operários não enquadrados, e ainda menos de contribuir para o progresso da consciência teórica.
Impotentes e desajeitados, os militantes acusam hoje o Estado de ser moralmente «responsável» pela morte de Moro por não o ter salvo, e não por o ter morto, da mesma forma que em 1970 o acusavam de «responsabilidade moral» do massacre da Piazza Fontana, não certamente por o ter ordenado, mas por não ter ordenado a prisão de alguns fascistas implicados nesse caso, pelo menos no plano jurídico. Estes políticos que se comprazem em imitar os gestos de políticos mais refinados do que eles, continuam a ignorar que a moral nada tem a ver com a política, relacionando-se antes com a ideologia justificativa de uma política, quer dizer, com todas as mentiras de que normalmente todas as políticas necessitam. Eis a razão pela qual eles falam sempre e apenas da «responsabilidade moral» do Estado, tornando-se assim co-responsáveis de todas as suas mentiras.
Mas tentemos por alguns instantes considerar a hipótese inverosímil de o rapto de Moro ter sido organizado e executado por subversivos. Neste caso haveria algumas questões a pôr, que são justamente as únicas que os militantes contemplativos nunca levantaram, ocupados como estão em admirar tudo aquilo de que não são capazes, ou em discordar de tudo aquilo em que não participam ou seja, tudo.
Antes de mais, seria necessário perguntar como é possível que em dois meses os subversivos não tenham sido capazes de acusar Moro de nada senão de servir os interesses da burguesia em vez dos do proletariado como se tal fosse uma particularidade de Moro, como se no Parlamento não houvesse nenhum outro culpado deste «crime». O absurdo de semelhante acusação torna-a perfeitatamente incrível: Aldo Moro nunca pretendeu, ao contrário dos estalinistas e dos extra-parlamentares, fazer crer que defendia os interesses dos operários. Acusá-lo de um tal crime é a mesma coisa que acusar os ricos de não serem pobres, ou um inimigo de não ser nosso aliado. Se estes hipotéticos «subversivos» montaram o «processo» de Moro para formular uma tal acusação, mais valia terem poupado esforços matando-o na Via Fani ao mesmo tempo que os seus guarda-costas. Mas, como já o disse, por detrás desta acusação encontra-se a acusação contrária: na verdade os raptores de Moro acusavam-no de não servir satisfatoriamente os interesses da burguesia, e não, claro, de os servir em demasia.
Por outro lado, a desajeitada paródia de «justiça proletária», canhestramente encenada pelos carcereiros de Moro, nem sequer tentou fazê-lo confessar a verdade sobre o massacre da Piazza Fontana, nem sobre cem outros fatos igualmente escandalosos, de que todo o homem de poder tem normal conhecimento, e que seriam altamente instrutivos para o proletariado. A propósito disso, é preciso observar que se Moro, numa das suas primeiras cartas, temia ter de falar de verdades «desagradáveis e perigosas», tal não pareceu de forma alguma inquietar o governo, o que mostra que os nossos ministros não temiam nada disso, porque sabiam que não tinham nada a temer. Nas suas proclamações, os raptores de Moro nunca souberam nem quiseram dirigir-se aos operários, aos quais nunca disseram nada de interessante depois de terem afirmado com firmeza, logo após o rapto, que «nada seria escondido ao povo», os carcereiros de Moro iniciaram imediatamente, por seu intermédio, uma longa correspondência secreta com todos os homens de poder da DC, para quem este golpe era uma advertência, e o seqüestro iria durar até todos se mostrarem convencidos: a primeira prova que deveriam dar do fato de estarem convencidos era justamente a de não «negociar», e com efeito todos se apressaram a dá-la. As condições para a libertação do refém, que se efetuaria, oficialmente, se o Estado tivesse acertado libertar uma quinzena de militantes encarcerados, pareciam ser estabelecidas mesmo para não serem aceites, não de certo por serem inaceitáveis, mas porque, não interessando a nenhum setor do proletariado, não podiam pretender o apoio de qualquer movimento de luta espontâneo ou apenas violento a surgir no pais — movimento que aliás os carcereiros de Moro nem sequer se propunham suscitar. Mas o ponto em que os raptores traíram a sua identidade de agentes do poder, e de forma assaz desajeitada, consistiu no seu vivo desejo de serem oficialmente reconhecidos por todos os poderes constituídos, do PCI à DC, e do Papa a Waldheim: este fato, só por si, prova admiravelmente que não só os raptores reconheciam a legitimidade de todos os poderes, mas que também se preocupavam em serem reconhecidos apenas por eles, e não pelo proletariado. Por sua parte, os dirigentes dos partidos também se descoseram ao admitir que este rapto tinha por objetivo dividir as forças políticas do governo, acrescentando a seguir que quanto a isso o mesmo teria fracassado, quando exatamente nisso é que o rapto foi bem sucedido: os democratas cristãos e os craxistas depressa compreenderam que deveriam separar-se, suave mas resolutamente, dos estalinistas; se os carcereiros de Moro fossem subversivos, uma tal divisão não os interessaria por certo, pois todo o subversivo sabe que a única divisão susceptível de criar a desordem é a que se deve efetuar entre exploradores e explorados — e nunca entre os diferentes partidos que no espetáculo representam tão só as diferentes forças que se empenham em perpetuar a mesma exploração, apenas mudando os seus beneficiários. Por último, se os raptores de Moro fossem subversivos, também não teriam perdido a oportunidade de o libertarem, pois Moro, caluniado por todos os seus amigos e traído pelos seus aliados da véspera, teria combatido abertamente todos os que até à altura protegera. Ao contrário, matando-o, os organizadores do golpe da Via Fani oportunamente livraram de embaraços todos os poderes, e em particular a DC, para a qual Moro era útil morto, mas muito nocivo vivo.
Em todo o caso, se os raptores de Moro fossem subversivos, não teriam certamente escolhido como objetivo de negociação a liberdade de Curcio e dos outros, dando ao poder um excelente pretexto de os mandar passear e de não «perder a honra»: se eles tivessem optado por avançar reivindicações inaceitáveis, deveriam ter exigido algo de totalmente diverso da libertação de apenas quinze detidos — e os que avançam com reivindicações inaceitáveis mantêm-se sempre atentos a que as mesmas não sejam também facilmente recusáveis, como o era a da libertação de alguns brigadistas. Mas os raptores de Moro não pretendiam na verdade aquilo que oficialmente exigiam, pois aquilo que pretendiam, sabiam não o poder exigir abertamente, sob pena de se desmascararem e hoje, já o obtiveram. E pouco antes dos raptores de Moro se terem desembaraçado dele, todos os termos reais de chantagem se tinham invertido em relação aos termos espetaculares e oficiais da chantagem à DC; e os termos reais tinham passado a ser os seguintes: ou mudam de política, ou libertaremos Moro, e verão que será ele a mudar de política. Estando as coisas neste pé, os dirigentes democratas cristãos e «socialistas» sabiamente preferiram eles, a mudar de política em detrimento de Moro, de preferência a correrem o risco de ser Moro quem a mudasse, mas em seu detrimento. Assim vai o mundo, apesar de todos os batimentos de asas dos gansos do Capitólio que pretendem o contrário.
Toldos os nossos incapazes extra-parlamentares, deslumbrados como primitivos pelo sucesso técnico do golpe da Via Fani, não foram capazes de enxergar para além disso, considerando que quem dispunha de tantos meios e capacidades táticas certamente não as poria ao serviço de uma estratégia tão pobre e insensata como a que se quis atribuir às BVs, antes optando por servir desígnios políticos de maior envergadura. Mas os extra-parlamentares, confrontados com a eficácia operacional demonstrada na Via Fani e no que se seguiu, preferiram naturalmente atribui-la a «camaradas que se enganam» e não a inimigos que não se enganam e que, tranqüilamente, os enrabam a todos. Também neste caso, os nossos esquerdistas tomaram os seus desejos pela realidade, sem suspeitarem que a realidade ultrapassa sempre os seus desejos, mas não da maneira que eles desejariam. E se fossem menos ignorantes, não negligenciariam tanto, e erradamente, as capacidades dos serviços paralelos italianos: saberiam, por exemplo, que as únicas operações de guerra, de fato bem sucedidas, levadas a cabo pela Itália na última Guerra Mundial, foram operações de comandos executadas pela Marinha. Parece-me supérfluo recordar como esta brilhante tradição se transmitiu admiravelmente da Marinha de guerra aos serviços secretos, dirigidos nos seus primórdios pelo almirante Henke, que nunca foi um imbecil, e depois pelo almirante Casardi, que é ainda mais capaz — com o interregno ignominioso de um general tão pouco hábil como Vito Miceli, que com efeito veio a sucumbir à sua própria incapacidade e à prudência de Andreotti, que não tardou a aperceber-se dela. Com efeito, Andreotti não mandou prender o general Miceli por este haver sido responsável dos «desvios» do SID — que tinham começado muito antes, como Andreotti bem o sabia, mas precisamente porque Miceli arriscava, pela sua falta de tato, fazer saltar a tampa da grande marmita dos serviços secretos. E Andreotti mostrou-se de novo um político mais sutil do que aquilo que gostaria de dar a entender, apresentando depois seu ataque a Miceli como uma preocupação de fidelidade constitucional, ganhando assim as esperadas simpatias por parte da esquerda. O único erro de Andreotti, como de costume, foi um erro de falsa modéstia e de vaidade, pois rejubilou demasiado após a prisão de Miceli, simulando exageradamente uma ingenuidade que não possui e declarando por várias vezes que, por prudência, nunca tinha querido imiscuir-se nos serviços secretos: declaração escandalosa para um chefe de governo, mas necessária para alguém que, tendo-se imiscuído até demais, vira «coisas que era melhor calar» (40), mas coisas tão escandalosas a ponto de não ser possível calá-las, a não ser fingindo não desconhecê-las. E Andreotti sabe bem que o escândalo da ignorância é o preço que ele deve pagar para fingir a ignorância de certos escândalos. O que no entanto remanesce é o cômico desta fábula em que a raposa se mascara de cordeiro para melhor ser recebida no seio dos lobos.
Cumpre assinalar que, para além dos almirantes, há em Itália excelentes oficiais superiores de Carabineiros, pois não são todos como Miceli ou La Bruna, e só os Miceli e os La Bruna é que se deixam apanhar em armadilhas. Por outro lado, há um argumento mais profundo e mais dialético em favor da direção dos nossos serviços secretos: se esta época exige que certos homens pratiquem o terrorismo, também é capaz de criar os homens de quem o terrorismo necessita. E não se acredite que a operação da Via Fani foi uma obra prima sobre-humana de capacidade operacional: ainda há pouco o próprio Idi Amin Dada podia permitir-se certos sucessos técnicos, de que os pobres militantes da Lotta Continua não cessarão de se espantar.
Muito menos ingênuos do que os extra-parlamentares, um grande número de operários, que eu encontrei nas situações mais diversas, haviam concluído imediatamente que «Aldo Moro, foram eles que o raptaram», o «eles» significando naturalmente os que detêm o poder. E pensar que tais operários ainda ontem votavam, e geralmente votavam no PCI!
A clivagem doravante irreparável que existe no país entre os que têm a palavra, os políticos, os poderosos e todos os seus lacaios, jornalistas ou outros, por um lado, e os que se encontram privados da palavra, por outro, exprime-se perfeitamente no fato de os primeiros, distanciados do comum das pessoas e protegidos pela barreira dos seus guarda-costas, já não saberem o que dizem e pensam os segundos na rua, no restaurante e nos seus locais de trabalho. E assim, as mentiras do poder alcançaram o plano tangencial, entrando numa espécie de órbita autônoma sob a ação da força centrífuga, órbita que já nada tem a ver com o «país», no qual a verdade pode portanto desbravar o seu caminho com ainda mais facilidade na medida em que nenhum obstáculo a intimida ou embaraça. Ao contrário, o espetáculo tornou-se autista, ou seja, foi acometido por esse síndrome da psicopatologia esquizofrênica no qual as idéias e as ações do doente deixam de poder ser modificadas pela realidade, da qual está irremediavelmente separado, sendo compelido a viver no seu próprio mundo fora do mundo. O espetáculo, como o Rei Édipo, arrancou os olhos, e prossegue cegamente o seu delírio terrorista: como o Rei Édipo, já não quer ver a realidade e, como o presidente Andreotti, diz não querer saber nada dos serviços secretos, proclamando mesmo que tais serviços foram desmantelados e não existem há anos. Se como o Rei Édipo, o espetáculo já não quer contemplar a realidade, isso deve-se a ele apenas querer ser visto, contemplado, admirado e aceito por aquilo que pretende ser. Quer portanto ser ouvido, sem no entanto ouvir, e já nem se inquieta muito por não ser ouvido: o que parece importar mais ao espetáculo é prosseguir sem quebranto a sua paranóica jornada. No próprio momento em que é a polícia que pretende moldar a história, qualquer fato histórico é explicado pelo poder de forma policial. O investigador húngaro em psiquiatria Joseph Gabel diz que, segundo aquilo que define a «concepção policial da história», a história já não é constituída pelo «conjunto das forças objetivas, mas pela boa ou má ação individual» em que cada acontecimento «é colocado sob signo do milagre ou da catástrofe»: a interpretação do acontecimento já não consiste na sua explicação histórica, mas deriva da magia vermelha ou negra. Assim, para o poder, a bomba da Piazza Fontana foi o milagre que permitiu que os sindicatos renunciassem a toda a greve e que o Estado evitasse a guerra civil: a morte de Moro, pelo contrário, anunciava uma misteriosa catástrofe que graças à habilidade e à inflexibilidade dos nossos políticos, nos foi evitada. E não tem nenhuma importância que um grande número de pessoas «da plebe» — para empregar uma feliz expressão do estalinista Amendola — tenha dito, como eu milhares de vezes ouvi, que «a mim, se eles matarem Moro, isso não me interessará minimamente: é um assunto que lhes diz respeito a eles». «O país resistiu, e soube reagir»: conversa balofa. A única reação deste «país» mitológico foi a de, muito avisadamente, não acreditar em nada de tudo o que lhe contaram.
Paralelamente às explicações catastróficas ou miraculosas da história, o espetáculo atinge o ponto de já não saber sobre quem é exercido o seu domínio, deixando de abarcar a realidade e os pensamentos que deve urgentemente subjugar; e, como dizia Maquiavel, «onde menos se sabe, mais se suspeita»: toda a população e, em particular, todos os jovens, tornam-se suspeitos aos olhos do poder. Ao mesmo tempo, e assim como o terrorismo artificial pretende ser o único fenômeno real, também todas as revoltas espontâneas, à semelhança das de Roma e Bolonha em 1977, se tornam, segundo esta «concepção policial da história», conspirações artificialmente tramadas e manipuladas por «forças ocultas», mas «bem identificáveis» como ainda hoje sustentam os estalinistas. Tudo o que o poder não prevê, por não o organizar, torna-se assim uma «conspiração» contra ele; inversamente, o terrorismo artificial, sendo organizado e dirigido pelos donos do espetáculo, é um fenômeno real e espontâneo que os mesmos donos simulam continuamente combater, pela simples razão de que é mais fácil defender-se de um inimigo simulado do que de um inimigo real. E a este inimigo real, o proletariado, bem desejaria o poder recusar-lhe o estatuto de inimigo: se os operários se pronunciam contra este terrorismo demente, isso quer dizer que os mesmos «estão com o Estado»; se os operários se pronunciam contra o Estado, isso quer dizer que «são terroristas», ou seja, inimigos do bem comum, inimigos públicos. E contra um inimigo público, tudo é permitido, tudo é autorizado.
Gabel afirma ainda que a concepção policial da história representa a forma mais extrema da alienação política...: o acontecimento desfavorável apenas se explica pela ação externa (a conspiração) e sentido (pelo doente) como uma catástrofe inesperada, imerecida. E destarte qualquer greve expontânea torna-se uma injúria à «classe operária», tão bem representada pelos sindicatos, e qualquer luta não enquadrada é «provocadora», «corporativa», «injusta» e «imerecida». Tudo isto encaixa perfeitamente no quadro clínico da esquizofrenia autista: «a sindrome da ação externa... é a expressão clínica da irrupção da dialética num mundo coisificado que não pode admitir o acontecimento a não ser como catástrofe» (J. Gabel, A Falsa Consciência). A irrupção da dialética não é senão irrupção da luta num mundo coisificado, que é mais exato chamar mundo espetacular-mercantil, que não pode admitir a luta, nem sequer na esfera do pensamento. Assim, esta sociedade espetacular já nem é tão pouco capaz de pensamento, qualquer pessoa que raciocine logicamente, por exemplo, não aceita a identidade entre duas coisas a não ser com base na identidade dos sujeitos; ao contrário, o espetáculo, que é paralógico, estabelece a identidade com base na identidade dos atributos, e diz isto: «o diabo é negro, o negro é diabo», ou «o judeu é mau, o mau é o judeu», como ainda «o terrorismo é catastrófico, a catástrofe é terrorismo». Com exceção do terrorismo, tudo o resto bem iria; infelizmente temos este terrorismo o que é que se há-de fazer?
Enquanto eu digo «um polícia deve ter o cadastro judicial virgem, Mario Bianchi é polícia, logo tem um cadastro judicial virgem», um esquizofrênico, esse dirá «Mario Bianchi tem um cadastro judicial virgem, logo é um polícia». É assim que o espetáculo, acometido de autismo, discorre: «Os que raptaram Moro são terroristas, as BVs são terroristas, logo Moro foi raptado pelas BVs». Nenhuma identificação é demasiado abusiva para o espetáculo, a não ser uma, que é a única a não o ser, ei-la: o Estado proclama já há vários anos que combate as BVs, infiltrou-as por várias vezes sem nunca as tentar desmantelar, logo o Estado serve-se das BVs como uma fachada, pois as BVs são úteis a este Estado, logo BVs = Estado. Que o poder teme acima de tudo tal identificação, isso confessou-o de mil maneiras, como por exemplo quando inventou este slogan neurótico e infeliz: «ou com o Estado, ou com as BVs», o que eqüivale a dizer «ou comigo, ou então comigo».
Muito antes da ascensão do espetáculo, já a religião, que sempre foi um protótipo de ideologia funcional para todos os antigos poderes, havia inventado o diabo, primeiro e supremo bufo provocador, que deveria assegurar o triunfo mais completo do reino de Deus: a religião limitava-se a projetar no mundo metafísico a simples necessidade de qualquer poder concreto e real. Assim, Cícero tinha necessidade de amplificar o risco constituído por Catilina para engrandecer a sua própria glória de salvador da pátria, de forma a multiplicar os seus próprios abusos. O ser varrido da história é a única verdadeira catástrofe para todos os poderes; e cada poder, uma vez enfraquecido e sentindo a iminência dessa verdadeira catástrofe, tentou sempre consolidar-se, simulando estar empenhado numa luta desigual contra um adversário comodozinho: mas uma tal luta também foi sempre a última oração pro domo sua pronunciada por esse poder. A história está repleta de exemplos similares.
«Tal como o escândalo é necessário para a maior glória de Deus,» — dizia Paul-Louis Courier — «também o são as conspirações para a manutenção da alta polícia. Concebê-las, asfixiá-las, fabricar conluios, descobri-los, tal é a grande arte do Ministério; eis o supra-sumo da ciência dos homens de Estado, a política transcendental recentemente aperfeiçoada entre nós e que a invídia inglesa quer imitar, e falsifica grosseiramente... Os ministros, desde que se saiba o que querem fazer, já não o podem ou querem fazer. Política conhecida, política falida: negócios de Estado, segredos de Estado... A decência é de rigor num governo constitucional.» (41)
Courier exprimia-se assim em 1820, em plena Restauração; hoje em dia, temendo-se uma nova e mais temível revolução, utilizam-se as mesmas práticas de outrora, numa escala muito maior, para se obter uma restauração preventiva. A «política transcendental» de outrora é a política imanente do espetáculo, o qual se apresenta sempre, como Dante dizia de Deus, como «o adversário de todos os males» e, portanto, tudo o que se opõe ao espetáculo é o mal, segundo a sua lógica autista. E perante esta impiedosa restauração preventiva, perante esta infame série de provocações, de chacinas, de assassínios e de mentiras que procuram camuflar uma realidade clara como o cristal, perante tudo isto, eis que se multiplicam os «estudos» sociológicos sobre o terrorismo, e eis todos os jornalistas submissos e progressistas que, prezando mais a sua segurança do que a realidade do fatos, rivalizam na expressão de uma «certa simpatia» pela «luta armada» e pela clandestinidade, como alanceava o inqualificável Giorgio Bocca, sob o pretexto de isso lhe recordar a sua luta épica na Resistência. Homens como Bocca estão, por assim dizer, «legitimados» quando, sob o império do pavor, declaram sentir simpatia por este terrorismo, visto ganharem quatro ou cinco milhões por mês e sentirem que este terrorismo lhes garante que isso continuará a acontecer. Mas quem nada possui é enganado por estes homens, que mentem sempre, no intuito de realizarem mais facilmente as suas torpezas a cavalo nos outros: as pessoas como tu, Bocca, não se matam pois isso seria prestar-lhes demasiadas honras! Ninguém te quer ver morrer, mas, pela minha parte, podes ter a certeza que, se um dia te encontrar na rua, te ensinarei a viver, meu conas.
E agora é o advogado Giannino Guiso que nos narra as sublimidades ideológicas de Curcio, e o sociólogo Sabino Acquaviva que se desdobra em «explicações» grandiloqüentes sobre o terrorismo, enquanto esse pedante do Scialoja, jornalista do Espresso, disserta pretensiosamente sobre as «estratégias» da luta armada, todos fingindo estar a par dos negócios secretos da revolução social, e todos procurando emprestar credibilidade ao terrorismo artificial como prelúdio da revolução:
Vosso espanto será grande quando entenderdes que de nada em absoluto nos convenceste (42).
Apenas tenho uma coisa a dizer-vos, respeitados mistificadores: ao contrário de vós, conheci bem, durante estes treze últimos anos, uma grande parte dos revolucionários da Europa — também conhecidos de todas as polícias — que mais contribuíram, pela teoria e pela prática, para a redução do capitalismo às suas atuais condições: pois bem, nenhum deles, sem qualquer exceção, alguma vez praticou e ainda menos aplaudiu o terrorismo espetacular moderno — o que aliás me parece evidente. Não existem assuntos secretos da revolução: tudo o que hoje é secreto pertence ao poder, ou à contra-revolução. E isto, todas as polícias o sabem perfeitamente.
Mas convém que desde já fiqueis com a consciência tranqüila quanto a um ponto, senhores do governo: enquanto o vosso Estado existir, e eu for vivo, nunca deixarei de denunciar o terrorismo dos vossos serviços paralelos, custe o que custar, pois esse é precisamente o principal interesse do proletariado e da revolução social, neste momento e neste país. E isto justamente porque, como dizia Courier, «política conhecida, política falida». E se este Estado criminoso quiser continuar a mentir, a matar e a provocar toda a população, será de hoje em diante obrigado a renunciar à sua máscara «democrática», agindo em seu próprio nome contra os operários, e abandonando o atual espetáculo cômico em que se exibem os serviços paralelos, que vão acalentando as ilusões de alguns militantes ingênuos sobre a «luta armada» a fim de poderem tornar verosímeis as suas provocações, para em seguida lançarem na prisão centenas de pessoas, enquanto os nossos polícias, aguardando o advento da guerra civil, se vão exercitando no tiro aos pombos.
A partir de 1969, o espetáculo, para que se continuasse a acreditar nele, teve de atribuir aos seus inimigos ações incríveis e, para ainda ser aceite, teve de assacar aos proletários ações inaceitáveis, e assegurar-lhes seguidamente uma publicidade suficiente para que as pessoas que se deixam aterrorizar escolhessem sempre «o menor dos males», ou seja, o presente estado de coisas. Quando os verdadeiros chefes das BVs ordenaram que se atirasse às pernas de pessoas desarmadas, algo mais próprio da covardia policial do que da coragem revolucionária, quando os verdadeiros chefes das BVs ordenaram tais atentados contra dirigentes industriais de segundo plano, sabiam bem o que pretendiam: atemorizar esta fração da burguesia que, por não gozar dos privilégios da grande burguesia, não possui uma consciência de classe suficiente, atraindo-a assim para o seu campo na perspectiva de uma guerra civil. A fragilidade de um tal terrorismo artificial reside porém no seguinte: quando se executa semelhante política esta torna-se também mais conhecida, e portanto melhor avaliada, e tudo o que anteriormente fizera a força dessa política faz agora a sua fraqueza, enquanto as grandes vantagens que a mesma assegurava aos seus estrategos se convertem num inconveniente de monta.
O atual presidente da República, Pertini, um homem ingênuo, teme permanente e exclusivamente o fascismo, pois não teme senão o que conhece, mas, muito pelo contrário, deveria temer doravante o que não conhece e conhecer o mais depressa possível aquilo que hoje deve temer, já não uma ditadura aberta, mas um temível despotismo oculto dos serviços secretos, despotismo tanto mais forte quanto mais utiliza essa força para afirmar peremptoriamente que não existe. Não foi por acaso que Fanfani, de forma quase desapercebida, inventou em Setembro de 1978 um novo posto importante sem precedentes na nossa história institucional: o de «conselheiro de presidente da República para problemas da ordem democrática e da segurança». E também não foi por acaso que, para desempenhar estas funções, Fanfani designou o general de divisão Arnaldo Ferrara que, no plano militar, é considerado o melhor oficial de Carabineiros e um dos melhores da Europa. Escorando o velho Pertini com o jovem general Ferrara, «um homem com olhos de gelo e gostos refinados», como alguém o definiu, Fanfani não só institucionalizou uma situação de fato, sancionando o poder alcançado pelos serviços paralelos, mas também deu o primeiro passo para a concretização do seu velho sonho de uma República presidencial: Arnaldo Ferrara, esse oficial inteligente e sofisticado, que ainda recentemente se tinha escusado a dirigir o SISDE (serviço secreto do ministério do Interior) e não cedera à insistência de Andreotti para não renunciar às suas próprias ambições, esse oficial superior que «penetrou nos mais secretos segredos do Estado e dos homens que o representam» — como no-lo assegura Roberto Fabiani — é na realidade o novo presidente da República. Além disso, Ferrara detém hoje poderes que nenhum presidente da República jamais usufruiu no passado — poderes que a sua função de «conselheiro», só na aparência honorífica, lhe garantem na realidade com muito mais amplitude do que qualquer outro cargo oficial, assegurando-lhe simultaneamente uma liberdade de ação cujos limites são difíceis de determinar, mas fáceis de ultrapassar. Colocado perante um tal estado de coisas, o proletariado apenas pode optar por combatê-lo em campo aberto ou por a ele se habituar, sofrendo-lhe todas as pesadas conseqüências.
Eis pois, caso se esteja realmente interessado em sabê-lo, para que é que serviu ornar a presidência desta República com um homem «acima de qualquer suspeita»: nada mais, nada menos do que para esconder o seu termo, e a sua transformação «indolor» num Estado policial, mantendo-se porém o espetáculo das aparências «democráticas». O honorável Pertini, tendo permanecido sempre à margem do seu próprio partido, e sendo talvez o único homem político que nunca deteve um poder real, sempre foi estranho às práticas dos serviços paralelos, quer dizer, é o homem que menos conhece tais práticas, e também aquele que, conseqüentemente, oferece as condições indispensáveis para que esse poder oculto o manipule sem que ele disso se aperceba. Os corpos destacados do Estado, tendo alcançado o seu presente poderio, não podem senão continuar a servir-se da mesma tática de infiltração utilizada com sucesso no caso das BVs, alargando-a hoje a todas as instituições do Estado. Nestas condições, não só o terrorismo não cessará, como ainda se incrementará tanto quantitativa como qualitativamente: e já se pode prever que se uma revolução social não vier pôr termo a esta farsa trágica, a presidência de Pertini assinalará o período mais funesto da República. E não me venham dizer que o que afirmo «é muito grave», pois sei isso perfeitamente, mas também sei que calar-se, como fazem os outros, é ainda mais grave, e que o fenômeno de maior gravidade é esse a que todos assistem sem nunca o denunciar. Já nada há de secreto neste fenômeno que no entanto permanece inconfessado à consciência geral; e, como notava Bernard Shaw, «não há segredos mais bem guardados do que os que todos conhecem». E a consciência desperta sempre demasiado tarde.
Em tais condições, o primeiro dever de qualquer subversivo consciente é afastar impiedosamente das mentes chamadas à ação todas as ilusões sobre o terrorismo. Como já o disse alhures, historicamente o terrorismo nunca teve qualquer eficácia revolucionária, com exceção dos casos em que qualquer outra forma de manifestação subversiva era tornada impossível por uma repressão completa e onde uma parte importante da população proletária era levada assim a tomar silenciosamente partido pelos terroristas (43). Mas tal já não é, ou ainda não é, o caso da atual Itália. Além disso, convém observar que a eficácia revolucionária do terrorismo foi sempre muito limitada, como o demonstra toda a história do fim do século XIX.
A burguesia, que em 1793 estabeleceu a sua dominação sobre a França graças ao terrorismo, deve pelo contrário voltar a recorrer a esta arma, num contexto estratégico defensivo, na época histórica em que o seu poder é universalmente posto em causa pelas forças proletárias que o seu próprio desenvolvimento criou. Concomitantemente, os serviços secretos do Estado burguês mascaram o seu terrorismo utilizando no momento azado os militantes mais ingênuos de um leninismo completamente desbaratado pela história — leninismo que aliás também utilizou, entre 1918 e 1921, o mesmo método terrorista anti-operário para destruir os sovietes e apossar-se do Estado e da economia capitalista na Rússia.
Todos os Estados foram sempre terroristas, mas foram-no mais violentamente quando do nascimento ou na iminência da morte. E os que hoje, quer por desespero, quer por serem vítimas da propaganda que o regime faz em favor do terrorismo apresentando-o como o nec plus ultra da subversão, contemplam com uma admiração acrítica o terrorismo artificial, tentando mesmo por vezes praticá-lo, esses não sabem que não fazem outra coisa senão competir com o Estado no seu próprio campo; e também não sabem que, no seu próprio campo, não só o Estado é o mais forte, como será sempre ele a dizer a última palavra. E tudo o que não destrói o espetáculo reforça-o: o reforço inaudito de todos os poderes estatais de controle, que teve lugar nestes últimos anos sob pretexto do terrorismo espetacular, já é utilizado contra o conjunto do movimento proletário italiano, que hoje em dia é o mais avançado e o mais radical da Europa.
Não se trata, é claro, de «estar em desacordo» com o terrorismo de uma forma estúpida a abstrata, como fazem os militantes da Lotta Continua, e ainda menos de admirar «os camaradas que se enganam», como fazem os pretensos Autônomos que dão assim aos infames estalinistas um pretexto para preconizarem a delação sistemática — , mas sim de o julgar pelos seus resultados, de ver a quem é que ele aproveita, de dizer claramente quem pratica o terrorismo e qual o uso que dele faz o espetáculo — trata-se enfim de, uma vez por todas, se tirarem conclusões.
Obrigar todos e cada um a tomar incessantemente posição pró ou contra acontecimentos misteriosos e obscuros, na realidade pré-fabricados com essa finalidade precisa, eis o verdadeiro terrorismo; constranger toda a classe operária a pronunciar-se contra tal ou tal atentado, ao qual toda a gente, com exceção dos serviços paralelos, é alheia, eis o que permite que o poder mantenha a passividade geral e a contemplação deste espetáculo indecente, eis o que permite aos burocratas sindicais congregar sob as suas diretivas anti-operárias os trabalhadores de qualquer fábrica em luta, onde regularmente um dirigente é ferido nas pernas.
Quando Lenine, em 1921, por altura da repressão do soviete de Kronstadt, pronunciou o famoso «aqui, ou ali com uma espingarda, mas não com a oposição operária, já estamos fartos da oposição operária», mostrou-se muito menos desonesto do que um Berlinguer que diz «ou com o Estado, ou com as BVs», pois não temia declarar que o seu único propósito era liquidar a oposição operária. Ora bem, a partir deste instante preciso, quem afirmar estar «com o Estado» sabe que também está com o terrorismo, a com o mais pútrido terrorismo de Estado alguma vez organizado contra o proletariado; sabe também que está com os responsáveis das mortes da Piazza Fontana, do Italicus, de Brescia, e com os assassinos de Pinelli e de cem outros, e que não nos venha mais foder o juízo, pois já estamos fartos de lágrimas de crocodilo sobre «os mártires da Via Fani», de provocações, de intimidações grosseiras, de assassínios, de prisões, da hipocrisia desavergonhada da defesa das «instituições democráticas», e de tudo o resto.
E quanto a nós, os subversivos, que justamente nos encontramos ao lado da oposição operária, e não com o Estado, demonstremo-lo antes de tudo e em todas as ocasiões desmascarando sempre todos os atos de terrorismo dos serviços do Estado, ao qual abandonamos de boa vontade o monopólio do terror, tornando assim a infâmia ainda mais infame entregando-a à publicidade — à publicidade que ela merece.
Quando a nossa vez chegar não nos faltarão armas nem combates valorosos; não somos escravos do feiticismo mercantil das armas, mas obtê-las-emos logo que tal venha a ser necessário, e da forma mais simples: arrebatando-vos as vossas, generais, polícias e burgueses, pois vós possuis armas suficientes para todos os operários de Itália. «Não temos contemplações e não as esperamos da vossa parte. Quando chegar a nossa vez, não adoçaremos a violência» (Marx).
Mil Vias Fani e mil Piazzas Fontana não aproveitam ao capitalismo tanto quanto lhe é nociva uma única greve selvagem anti-burguesa e anti-estalinista, ou uma simples sabotagem da produção violenta e bem sucedida. Milhões de consciências oprimidas despertam e revoltam-se todos os dias contra a exploração, e os operários não enquadrados sabem perfeitamente que a revolução social não abre caminho acumulando um rasto de cadáveres — o que é uma prerrogativa da contra-revolução estalino-burguesa, prerrogativa que revolucionário algum jamais lhe disputou.
E quanto aos que se alistaram no militantismo alienado e hierárquico na época da sua bancarrota, esses não poderão tornar-se subversivos a menos que o abandonem, e unicamente se conseguirem negar na prática as condições, que o próprio espetáculo impôs, daquilo que hoje em dia é designado pelo termo vago mas justo de «dissidência» — por natureza sempre impotente.
Em Itália, quem a partir de agora não utilizar a inteligência de que dispõe para compreender rapidamente a verdade que se oculta por detrás de cada mentira do Estado, será um aliado dos inimigos do proletariado. E quem ainda pretender combater a alienação por formas alienadas, pelo militantismo e pela ideologia, depressa se aperceberá que renunciou a qualquer combate real. Não serão decerto militantes quem fará a revolução social, nem os serviços secretos e a polícia estalinista quem a impedirá!

Notas

( 1 ) – Designação de cortesia dos parlamentares Italianos (N. do T.).

( 2 ) – Em francês no original.

( 3 )L'estro dell'armonia e dell'Invenzione, título de um conjunto de concertos de Vivaldi.

( 4 ) – Dirigente estalinista encarregado dos «problemas de Estado», e portanto do terrorismo (N. do T.).

( 5 ) – “Ali ai folia volo, sempre acquistando dai fato mancino” (Dante).

( 6 ) – Paráfrase de um título de capítulo dos Discursos, de Maquiavel: «Nunca se deverá arriscar toda a nossa fortuna sem se arriscar todas as nossas forças...» (N. do T.).

( 7 ) – A posse de documentos subversivos é passível de ser punida com 4 anos de prisão (N. do T.).

( 8 ) – Para um italiano esta frase evoca o primeiro artigo da constituição: «A Itália é uma república democrática alicerçada no trabalho» (N. do T.).

( 9 ) – «E destarte se atraem agora por recompensas os delatores, a criada pela ruína pública, e a que nem ao castigos conseguem pôr cobro». (N. do T.).

(10) – Dirigente e deputado socialista assassinado pelos fascistas.

(11) – Siglas de alguns serviços secretos oficiais Italianos (N. do T.).

(12) – Paráfrase do título da obra de Ante Ciliga: Dez Anos no País da Mentira Desconcertante (N. do T.).

(13) – «Juro que nunca deixarei governar em Roma nem estes nem quaisquer outros» (LIVIO).

(14) – Vide Censor (Gianfranco Sanguinetti), Rapporto veridico sulle ultime opportunità di salvare il capitalismo in Italia, Milão, Julho de 1975; segunda, terceira e quarta edições, Mursia, Outubro de 1975; vide também, Prove dell'Inesistenza di Censor, enunciate dal suo autore, Milão, Janeiro de 1976. — Estes dois textos foram publicados em francês: Véridique Rapport sur les Dernières Chances de Sauver le Capitalisme en Italie, seguido de Preuves de l'Inexistence de Censor par son auteur, Paris, Éditions Champ Libre, 1976 (N. do T.).

(15) – No original, «a bischero sciolto», traduzindo literalmente, «de cauda atada», velha expressão fiorentina que evoca a irreflexão (N. do T.).

(16) – Economista estúpido apreciado pelos americanos estúpidos (N. do T.).

(17) – Chefe da extrema direita estalinista, (N. do T.)

(18) – Velho economista teórico (N. do T.)

(19) – «Negare l'esperienza di retro al sol, del mondo sanza gente» (Dante)

(20) – Jornalista burguês de direita, diretor do Giornale Nuovo (N. do T.)

(21) – Alusão à defesa dos serviços secretos efetuada por Moro no Parlamento quando estes foram acusados do golpe de Estado falhado do general De Lorenzo em 1964. (N. do T.)

(22) – O poderosíssimo chefe da empresa petrolífera do Estado (ENI) morto antes de 1968, ou seja, antes do espetáculo do terrorismo. (N. do T.)

(23) – Muito recentemente, o banqueiro em bancarrota Sindona, mafioso notório, não montou o seu próprio rapto nos Estados Unidos — para onde havia fugido — para se subtrair ao processo em que deveria responder pela falência do Franklin Bank? Um autoproclamado grupo «proletário» reivindicou este seqüestro, mas ninguém acreditou nisso, pois na América a imprensa ainda não se encontra tão domesticada neste domínio como em Itália. (N. do T.)

(24) – Que pouco depois foi obrigado a demitir-se por se ter tornado pública a sua venalidade. (N. do T.)

(25) – Divisa do PCI. (N. do T.)

(26) – Posteriormente, e após a publicação deste livro, Negri pagou caro o fato de tudo ter engolido a respeito do caso Moro. (N. do T.)

(27) – Guerchuni, naturalmente detido por obra de Azev, recomendou calorosamente aos seus camaradas que colocassem à frente da Organização de Combate precisamente o próprio Azev, e isso devido à coragem por este demonstrada, transportando da Suíça para a Rússia explosivos e publicações do partido, cujo Comitê Central nessa altura se encontrava no exílio em Genebra.

(28) – O que também se veio a verificar após a publicação deste livro, com as vagas de prisões de 7 de abril de 1979 e, mais recentemente, as de 21 de dezembro do mesmo ano. (N. do T.)

(29) – Divisa do PCI. (N. do T.)

(30) – É chegada a ocasião de aqui reproduzir, como exemplo de lucidez revolucionária, algumas passagens desse manifesto que, no período em que a repressão estava no auge se podia obter na própria Piazza Fontana e junto às principais fábricas milanesas: « ... Perante a escalada do movimento revolucionário, e apesar da ação metódica de recuperação dos sindicatos e dos burocratas da velha e da nova esquerda, o poder vê-se obrigado... a jogar desta vez a carta viciada do terrorismo... A burguesia Italiana de 1969... já não precisa dos erros dos velhos anarquistas para encontrar um pretexto para a concretizarão política da sua realidade totalitária, mas procura fabricar ela própria um tal pretexto, enterrando os novos anarquistas numa maquinação policial... A bomba de Milão explodiu contra o proletariado. Destinada a atingir as categorias menos radicalizadas para as aliar ao poder e a chamar a burguesia ao combate: não é por acaso que houve carnificina entre os agricultores (Banco Nacional da Agricultura) e apenas medo entre os burgueses (a bomba que não explodiu no Banco Comercial). Os resultados, diretos e indiretos, dos atentados, são a sua finalidade... Mas a burguesia italiana é a mais miserável da Europa. Incapaz hoje por hoje de impor o seu terror ativo ao proletariado, não lhe resta mais do que tentar comunicar à maioria da população o seu próprio terror passivo, o medo do proletariado. Impotente e desajeitada na tentativa de por esta forma travar o desenvolvimento do movimento revolucionário e de criar em si própria uma força que não possui, arrisca-se a perder de uma só vez essas duas possibilidades. É pois provável que as facções mais avançadas do poder (interior ou paralelas) se tenham enganado. O excesso de fraqueza conduz a burguesia italiana ao campo dos excessos policiais, porque compreende que a única possibilidade de escapar a uma agonia sem fim passa pelo risco do fim imediato da sua agonia. Assim, o poder viu-se obrigado desde o início a queimar a sua última carta política antes da guerra civil ou de um golpe de Estado de que é incapaz, a dupla carta do falso perigo anarquista (para a direita) e do falso perigo fascista (para a esquerda), com a finalidade de mascarar e de tornar possível a sua ofensiva contra o verdadeiro perigo: o proletariado. Para além disso, o solo pelo qual a burguesia tenta hoje esconjurar a guerra civil é na realidade o seu primeiro ato de guerra civil... Portanto já não se trata para o proletariado de a evitar ou iniciar, mas de a vencer. Este começou agora a compreender que não é pela violência parcial que a pode vencer, e sim pela autogestão total da violência revolucionária e conseqüente armamento geral dos trabalhadores organizados em Concelhos Operários. (O proletariado) sabe pois que doravante deve, com a revolução, rejeitar definitiva e simultaneamente a ideologia da violência e a violência da ideologia... Camaradas, não vos deixes ficar pelo caminho... Viva o poder absoluto dos Conselhos Operários!»

(31) – Em Janeiro de 1970 publicou-se Bombas, Sangue, Capital, panfleto do Ludd, que acusava abertamente os serviços secretos de serem os autores do massacre, sendo este panfleto a única exceção à debandada geral.

(32) – Democrata cristã e ministro. (N. do T.)

(33) – Este espetáculo sanguinário foi oferecido a conta-gotas, mas repetidas vezes quando a polícia esperou Abatangelo defronte do Banco de Florença e matou dois dos seus camaradas; quando a irmã de Mantini foi abatida a sangue frio no seu refúgio secreto em Roma, e numa dezena de outros casos. E ainda se pretende que se acredite ser por acaso e não graças à infiltração que «la Benemerita» (Os Carabineiros — N. do T.) obteve os êxitos?

(34) – Siglas de três serviços secretos oficiais, aos quais é preciso ainda acrescentar a UCIGOS e a DIGOS, polícia política, e ainda outros tão secretos que nem sequer o seu nome é conhecido. (N. do T.)

(35) – Como se tratasse de um feliz acaso, enquanto este livro estava no prelo, Craxi inventou um atentado contra si próprio. (N. do T.)

(36) – «Apresento-me imaculado perante o trono.» Frase bíblica citada por Bossuet nas suas Oraisons Funèbres. (N. do T.)

(37) – Vide A. Ronchey, Accadde in Italia, 1968-1977.

(38) – Vide Aviso ao proletariado sobre os acontecimentos das últimas horas, Roma, 7 de Abril de 1977.

(39) – Um outro magistrado. (N. do T.)

(40) – «Cose che'l tecere è bello» (Dante)

(41) – Paul-Louis Courier. Pamphlets politiques.

(42) – Citação de Paul-Louis Courier em que este parafraseia uma passagem de L'École des femmes, de Molière: «Vous serez ébahi, quand vous serez ou bout,
que vous ne m'aurez rien persuadé du tout
.» (N. do T.)

(43) – Vide o manifesto distribuído em 23/9/77 em Bolonha, Roma e Milão, Benvenuti nella città più libera del mondo (Bem-víndos à Cidade Mais Livre do Mundo).

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