12 de agosto de 2011

A Realização e a Supressão da Religião - Uma Crítica à Crítica Radical

Se é verdade que os escritos sobre o tema Religião são insuperáveis na quantidade de "tonterías", essa verdade se aplica tanto a teístas quanto a ateístas radicais, os enganos e os exageros se multiplicam por ambos os lados. É comum ver cada uma dessas partes se agredindo mutuamente, mas quase nunca olhando-se no espelho para ver o que está errado consigo mesma. Quem se apressa em julgar, fixar sua atenção num pormenor e imediatamente tirar deduções, geralmente incide em erro. O atalho rápido não leva a lugar algum, principalmente quando procura estar de bem com o pensamento dominante de seu grupo ou facção. Aqueles que dizem saber tudo sobre temas tão complexos como religião ou espírito revolucionário, na maioria das vezes ainda não saíram da estaca zero. A propensão para ofensas, insultos, e recusa ao diálogo, significa um trancamento interno devido a dogmas e doutrinas jamais questionados. E o que dizer daqueles radicais que vivem querendo impor suas doutrinas a outros radicais, eles não se assemelham a religiosos? Gente fugidia das responsabilidades, grandemente atormentada e ansiosa. Gente demasiado ocupada para perceber que seu combustível mor é desejo de obter posição e importância sobre os demais.
Felizmente, este não é absolutamente o caso de Ken Knabb, autor de "A realização e a supressão da religião", aliás, é sempre bom ler uma crítica séria à religião escrita por um revolucionário, independente de sua visão. Na pior das hipóteses é um excelente ponto de partida para o debate construtivo.
Knab, autor radical de tradição situacionista, externa alguns conceitos: "a religião é a expressão alienada do qualitativo, a 'realização fantasiosa da humanidade'"; conselhos: "o movimento revolucionário deve opor-se à religião, mas sem preferi-la a um amoralismo vulgar ou um sentido comum filisteu. Deve tomar posição do outro lado da religião. Não ser menos que ela, mas mais"; e ponderações: "ultrapassa indubitavelmente qualquer outra atividade humana em quantidade e variedade de tolices". Mas é nessa expressão: "quando os situacionistas tratam a religião, a consideram normalmente em seus aspectos mais superficiais e espetaculares. . ." que quero me ater.

É inegável que a maior parte daquilo que os radicais escrevem sobre religião é um amontoado de noções esparsas sobre o assunto, desatinos e bobagens dignas da sexta de lixo mais próxima. O erro fatal dos radicais em suas críticas à religião é misturar essência religiosa (liberdade e justiça, generosidade e integridade, amor ao bem e à verdade, o ódio ao mal e o impulso por reprimir o opressor) com a forma e o comportamento "religioso" (sacerdote, templo, ritual, culto, sacrifício, intercessões em favor da comunidade para influenciar a divindade a favor do homem, ou o envolver esforços e despesas para assegurar vitalidade, poder e proteção físicos). Se essas duas coisas distintas - essência e forma/comportamento - não são devidamente separadas, a abordagem é prejudicada, torna-se rasteira e é virtualmente impossível avançar no debate. Qualquer um que observe sem preconceitos as narrativas dos evangelhos perceberá que quem melhor delineou esse contraste foi Jesus, que dirigia suas palavras mais doces aos desprezados pela sociedade, pobres, doentes, paralíticos, loucos, crianças, ladrões, prostitutas, ao mesmo tempo em que proferia suas palavras mais ácidas aos escribas e fariseus (os "religiosos" de seu tempo) chamando-os de "hipócritas", "raça de víboras", e "túmulos caiados de branco", que "coam mosquitos e engolem camelos". Se alguém atacou essa "casca" que recobre tanto religiões quanto religiosos ninguém fez isso melhor do que os Profetas de Israel e o próprio Jesus Cristo. É necessário primeiro quebrar a casca da noz para ver se o conteúdo em seu interior presta ou não. Há um gigantesco potencial revolucionário contido na essência religiosa.

Tanto o credo constantiniano (católico) como o agostiniano (Lutero, Calvino, Zuwinglio, Melanchton) base do reformismo protestante que se arrasta desde a decadência do feudalismo até nossos dias, ambos tem funcionado como uma luva em favor dos interesses capitalistas. É por isso que quase toda a literatura, imensa por sinal, dessas duas tradições são intragáveis a qualquer radical que pretenda se debruçar seriamente sobre o tema da religião. 

Mas esse que não é absolutamente o caso das tradições cristãs libertárias, como as renanas, anabatistas, huteritas, menonitas, quacres, ephratanas. O problema é encontrar traduções e obras dos autores dessas tradições, os capitalistas há séculos vem boicotando a difusão dessas obras.
Mas Knabb prossegue referindo-se à religião, "Se se considera além disso seu papel como cúmplice da dominação de classe através da história, não surpreendente que haja atraído sobre si o desprezo e o ódio de cada vez mais pessoas, em particular dos revolucionários". Mas olhando essa questão sob outro ângulo, veremos que as religiões, não raras vezes, também exerceram um papel oposto, ou seja, de confronto radical à classe dominante. Três exemplos marcantes disso foram os escritos proféticos hebraicos do século VIII A.C., o advento de Jesus Cristo, e o papel dos anabatistas nas Revoltas Camponesas do século XVI e XVII. Cada um desses personagens históricos se opõem radicalmente às autoridades religiosas e seculares de seu tempo, cada um de seu jeito e em épocas bem distintas, mas com uma coisa em comum, a utilização dos aspectos essenciais da religião, a verdade e a urgente relevância do valor moral, a psicologia e a racionalidade, a liberdade e a justiça, contrastando com aquela "casca" religiosa sempre ao lado do poder político e econômico exercido pelas classes dominantes. 

O problema da religião é que tudo aquilo que não é cerne é lixo. O que for além da essência religiosa é contaminação, é falsa religião do começo ao fim.
Assim surgem as miríades de religiões, tão inúteis quanto nocivas, principalmente pela frivolidade de seus aspectos formais e exteriores, repletos de mandamentos, submissão, sistemas de dogmas, dependência, observâncias, que sempre conspiram para nebular, quando não apagar a justiça e a liberdade, os escrúpulos e a moral. Qual seria a definição dessa essência religiosa? R. B. Y. Scoot em Os Profetas de Israel Nossos Contemporâneos, Págs. 194 a 199, Editora Aste, nos ajuda nesse sentido:
"A essência e o significado da religião real são definidos (...) na rejeição (...) da forma e qualidade da religião praticada (...). Religião não é uma espécie de comportamento 'religioso', independente da vida moral. Não deve ser equacionada com um culto com ritual e sacrifício, operado por um sacerdócio, em favor da comunidade, e que se esperava influenciasse a divindade a favor do homem, na proporção do esforço e despesa exigidos. Seu objetivo não é assegurar vitalidade, poder e proteção físicos (...) O primeiro elemento da verdadeira religião (...) é Percepção Espiritual (...) O segundo (...) é a Consciência Moral, nitidamente social em seu ponto de referência (...) Buscar a Deus e buscar o bem são uma e a mesma coisa, embora isso não signifique que religião seja um sistema ético e nada mais. Significa, antes, que a dedicação da vida ao bem é a maneira como a devoção a Deus, que é religião, deve ser expressa. O que é o bem? É justiça, generosidade e integridade que são o reflexo da justiça. É 'atender à justiça, repreender ao opressor, defender somente o que é bom' (...) O amor ao bem significa ódio ao mal e o estabelecimento da justiça na sede de justiça. É 'atender à justiça, repreender ao opressor, defender o direito do órfão, pleitear a causa das viúvas'. O bem é a resposta total da natureza moral do homem, no contexto humano e social de sua vida consciente (...) Em terceiro lugar, a religião profética é Conhecimento de Deus em Conseqüência de Relação Pessoal com Ele (...) O quarto (...) é Obediência Moral (...) Não é obediência de alguém de deve fazer aquilo que nem liga nem compreende, mas a pronta resposta do coração e da vontade à 'palavra', que expressa o imperativo divino (...) a justiça, a verdade e a bondade, mais do que o sacerdote, o templo e o ritual, pertencem à categoria do sagrado (...)"
Inúmeras passagens nos evangelhos mostram Jesus encontrando forte resistência ao ensinar essa essência da religião. Veja, por exemplo, o que aconteceu numa sinagoga em Nazaré: "E todos na sinagoga se encheram de ira (...) E levantando-se (...) o levaram até ao cume do monte em que a cidade deles estava edificada, para dali o precipitarem".

Sobre a importância dessa essência religiosa atuando na história, o radical Kennet Rexroth escreve em seu livro Comunalismo Das Origens ao Século XX sobre o digger Gerrard Winstanley, "o primeiro a descobrir o axioma que Randolph Bourne tornou famoso — 'guerra é saúde do Estado'":
(...) sua política é notavelmente semelhante a dos taboritas, dos irmãos moravianos, dos huteritas, e dos assentamentos comunalistas na América do século XIX. Seus planos fizeram parte no conjunto das idéias dos comunistas ingleses posteriores e direta ou indiretamente influenciaram John Bellers, Robert Owen, Josiah Warren, William Morris, Belford Bax, Édouard Bernstein, David Petegorsky. Outros socialistas, comunistas, e anarquistas escreveram extensivamente sobre ele na primeira metade do século XX e depois da Segunda Guerra Mundial ele ficou extremamente popular. Grupos comunalistas revolucionários na Inglaterra, América, Alemanha, e França deram a si mesmos o nome de diggers (...).
Não estamos falando aqui de um ateu, mas de um religioso, mas naquele sentido da essência religiosa descrita acima por Scott.
Alguns anos atrás, um jovem perguntou-me qual a utilidade da religião dentro do movimento revolucionário, transferi a resposta para uma senhora, por sinal religiosa, que acompanhava o debate e que prontamente respondeu: "nenhuma!". Essa resposta estava correta e ao mesmo tempo errada dependendo do conceito que cada um tinha sobre o significado daquela "religião" embutida na pergunta do rapaz. A maioria dos revolucionários reivindicaram o ateísmo por não acreditarem na existência de um Deus. Mas alguns desses revolucionários, contudo, não hesitaram em sacrificar suas próprias vidas em prol da justiça e do bem. Mas se a assertiva de Scott, baseada no pensamento dos Profetas de Israel de que "Buscar a Deus e buscar o bem são uma e a mesma coisa", está correta, então como é que se explica esse apelo interno pelo bem e pela justiça? Será que é tão difícil assim compreender a natureza desse grito por liberdade e justiça que sai do fundo da alma de um revolucionário sincero?
Railton Guedes

Bibliografia:
Nossa Fé, Emil Brunner, Sinodal.
Os Profetas de Israel -- Nossos Contemporâneos, R.B.Y.Scott, Aste
Introdução ao Antigo Testamento, A.Bentzen, Aste
Pseudodiscipulado, George Verwer, Casa Publicadora Batista
Mosaico de Deus, Helmuth Thielicke, Sinodal
Tentação, Dietrich Bonhoeffer, Sinodal
O Tesouro Oculto, Lindolfo Weingärtner, Sinodal
Razão do Cristianismo, C.S.Lewis
A Formação do Antigo Testamento, Rolf Redtorff
A Formação do Novo Testamento, Oscar Cullmann
Comentário à 1a. Epístola de Pedro, Gerhart Barth

Nota: Embora os autores acima sejam todos de tradição cristã Luterana, há alguns aspectos importantes e aproveitáveis em seus escritos. Mas seria muito interessante consultar também obras de outras tradições cristãs, como as renanas, anabatistas, huteritas, menonitas, quacres, ephratanas, e autores e personagens como
Willian Blake, Jacob Hutter, Menno Simons, Jacob Wiedemann, Gerrard Winstanley, John Dalton, John Bellers, Filipe Yaeger, Meister Eckhart, Arnold de Villanova, Jakob Boehme, Melchior Hoffmann, Sebastian Franck, Sebastian Franck, Caspar Schwenkfeld, Hans Denk, Valentin Weigel, Peter Riedemann, Peter Waldpot, Faustus Socinus, Leo Tolstoy, Jan Ruysbroeck, Henry Suso, Nicholas de Cusa, Thomas Kempis, e Angelus Silesius, Hermes Trismegistus, Johannus Kelpius, Conrad Beisel, George Rapp, John Humphrey Noyes, Josiah Warren, Michael Waldner, Darius Walther, Jacob Wipf, Jacob Widemann, Hans Hut, John Ball, Andreas Ehrenpreis, Dorothy Day.
Mais bibliografia:
Practical Christian Socialism, Adam Ballou, 1854
Comunalismo Das Origens ao Século XX, Kenneth Rexroth
The Realization and Suppression of Religion, Ken Knabb

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