25 de junho de 2010

A Casa Mundial (Martin Luther King, Jr.)

Há alguns anos um famoso escritor faleceu. Entre seus escritos foi encontrada uma lista de temas para futuros livros. Dentre eles o mais destacado era: “Uma família muito desunida herda uma casa na qual devem viver juntos”. Este é o novo grande problema da humanidade. Herdamos uma casa grande, uma “casa mundial” na qual temos que viver juntos: preto e branco, ocidental e oriental, gentio e judeu, católico e protestante, muçulmano e hindu – uma família com membros separados desde sempre em idéias, culturas e interesses e que, impossibilitados agora de viver isoladamente, precisam de alguma forma conviver em paz uns com os outros.

Embora os negros americanos estejam profundamente envolvidos na luta para fazer dos Estados Unidos seu lar, não podemos ignorar esta casa mundial maior, a qual também habitamos. A igualdade com os brancos não resolverá os problemas nem de brancos nem de negros se for um exemplo de igualdade em meio a uma sociedade mundial assolada pela pobreza, num universo fadado à extinção pela guerra.

Todos os habitantes do planeta são agora vizinhos. Esta vizinhança de proporções mundiais surgiu como resultado das revoluções científicas e tecnológicas da modernidade. O mundo de hoje é radicalmente diferente do mundo de apenas cem anos atrás. Há um século Thomas Edison não havia ainda inventado a lâmpada incandescente trazendo luz a tantos lugares escuros da terra. Os irmãos Wright não haviam ainda inventado o fascinante pássaro mecânico que espalharia suas asas pelos céus encolhendo distâncias e colocando o tempo a serviço do homem. Einstein ainda não havia questionado um axioma e a teoria da relatividade não havia sido aventada.

Os seres humanos de então, como os de agora, estavam em busca de conhecimento, mas não tinham televisão, rádio, telefone nem cinema através dos quais comunicarem-se. A medicina não havia ainda descoberto as drogas para curar muitas doenças e epidemias. Há cem anos os militares não haviam ainda desenvolvido as armas terríveis que conhecemos hoje – os bombardeiros, fortalezas aéreas que fazem chover a morte; o napalm que queima tudo e também a carne em seu caminho. Há um século não havia arranha-céus nem as pontes que atravessam grandes rios. A ciência não havia ainda perscrutado o espaço inter-estelar, nem sondado as profundezas oceânicas. Todas as novas invenções, novas idéias, esses desenvolvimentos às vezes fascinantes, às vezes amedrontadores, a maioria deles chegou-nos apenas dos últimos 60 anos, em alguns casos com lentidão terrível, na maioria das vezes com velocidade estonteante, mas sempre com enorme significado para o nosso futuro.

Os próximos anos verão a continuação desses dramáticos desenvolvimentos. A física abrirá novas avenidas pela estratosfera. Em poucos anos os astronautas caminharão confortavelmente pelos caminhos desconhecidos da lua. Será possível voar de Nova York a Londres em duas horas nos jatos supersônicos. A medicina prolongará a vida dos homens encontrando a cura do câncer e das doenças cardíacas. A automação e cibernética permitirão que os trabalhadores tenham um tempo de lazer antes impensável. Essa estonteante cena contém o mobiliário, a oficina, as salas espaçosas, a nova decoração e o padrão arquitetônico da grande casa mundial na qual vivemos.

Correndo ao lado da revolução científica, temos presenciado também nas últimas décadas uma revolução mundial pela liberdade. O atual movimento do povo negro dos Estados Unidos cresceu a partir de uma profunda e pujante determinação de fazer de liberdade e igualdade uma realidade “aqui” e “agora”. Num certo sentido o movimento dos direitos civis nos Estados é um fenômeno especialmente Americano que dever ser visto à luz da história dos Estados Unidos e trabalhado em termos da situação desse país. Mas, num outro nível, o que ocorre nos Estados Unidos é uma parte significativa do desenvolvimento mundial.

Vivemos num tempo, disse o filósofo Alfred North Whitehead, “em que a civilização reformula sua visão fundamental; um momento de virada em que os pressupostos sobre os quais a sociedade está estruturada estão sendo analisados, questionados e profundamente modificados”. O que vemos agora é uma explosão de liberdade, a percepção de “uma idéia cujo tempo é chegado”, usando a frase de Vitor Hugo.

O ribombar de descontentamento que ouvimos hoje é o trovão das massas deserdadas, ribombando das masmorras da opressão em direção às montanhas da liberdade. Por todo o mundo, como uma febre, a liberdade se espalha no movimento mais amplo da história. As massas estão determinadas a por um fim à exploração de suas raças e suas terras. Estão acordadas e movem-se em direção a seu objetivo como uma grande onda. Pode-se ouvir seu descontentamento nas pequenas vilas, portos, casas, entre os estudantes, nas igrejas e em reuniões políticas. Durante séculos a direção da história corria das nações da Europa Ocidental para o resto do mundo sob a forma de vários tipos de “conquista”. Esse período, a era do colonialismo, acabou. Hoje o oriente se move para o ocidente; sim, estamos mudando nossos pressupostos básicos.

Isto não é surpresa para aqueles que estudam história. Os oprimidos não se deixam oprimir para sempre. O desejo de liberdade se manifesta mais cedo ou mais tarde. A Bíblia conta a emocionante história de Moisés que gritou há muitos séculos na corte do faraó: “Deixe que meu povo se vá”. Este foi o primeiro capítulo de uma estória que continua. A luta hoje nos Estados Unidos é um outro capítulo da mesma história. Uma voz interior fez lembrar ao Negro seu direito de nascimento, e uma voz externa lembrou a ele que esse direito poderia ser atualizado. Consciente ou inconscientemente ele foi tomado pelo espírito dos tempos, e junto a seus irmãos negros da África e seus irmãos mulatos e amarelos da Ásia, América do Sul e Caribe, o Negro Americano se move com um grande sentido de urgência em direção à terra prometida da justiça racial.

Nada mais trágico que viver esses tempos revolucionários e deixar de adquirir as novas atitudes e os novos pressupostos que a situação exige.

[…]



Uma das grandes ironias da história é que muitas pessoas não permanecem alertas durante importantes períodos de mudança social. Toda sociedade tem seus protetores do status quo e suas fraternidades de indiferentes, notórias por dormitar durante as revoluções. Mas hoje nossa sobrevivência depende da habilidade de ficarmos despertos, adaptarmo-nos a novas idéias, estarmos vigilantes e encararmos o desafio da mudança. A grande casa onde vivemos requer que transformemos essa vizinhança global numa fraternidade global. Juntos, devemos aprender a viver como irmãos, caso contrário, pereceremos forçosamente como tolos.

Devemos trabalhar apaixonada e infatigavelmente para construir uma ponte entre nosso progresso científico e nosso progresso ético. Um dos maiores problemas da humanidade é que sofremos de uma pobreza espiritual que contrasta de forma chocante com a abundância científica e tecnológica. Quanto mais ricos nos tornamos materialmente, mais pobres ficamos ética e espiritualmente.

Todo homem vive em duas esferas, a interna e externa. A interna é a esfera dos fins espirituais expressos na arte, na literatura, ética e religião. A externa é um complexo de equipamentos, técnicas, mecanismos e instrumentos através dos quais vivemos. Hoje nosso problema é termos deixado o interno perder-se no externo. Permitimos que os meios pelos quais vivemos se sobreponham os fins pelos quais vivemos. Boa parte da vida moderna resume-se na sugestiva frase de Thoreau: “Meios aprimorados para um fim não aprimorado”. Esta é uma situação grave, um problema profundo e constante com o qual o homem moderno se vê confrontado. Maior poder material se traduz em maior perigo se não houver um crescimento proporcional da alma. Quando a natureza externa do homem subjuga sua natureza interna, nuvens de tempestade começam a se formar.

A civilização ocidental está particularmente vulnerável nesse momento, pois a abundância material não nos trouxe paz mental nem serenidade espiritual. Um escritor asiático retratou nosso dilema em termos bastante diretos:

“Vocês chamam seus equipamentos materiais de “máquinas para poupar trabalho”, mas estão sempre “ocupados”. Com a multiplicação das máquinas vocês estão cada vez mais fatigados, ansiosos, nervosos, insatisfeitos. O que quer que tenham, sempre querem mais; onde quer que estejam, sempre querem ir para outro lugar... seus equipamentos não economizam tempo nem poupam a alma. São apenas esporas afiadas que os obrigam a inventar mais máquinas e fazer mais negócios.”1

Isto diz algo sobre nossa civilização que não pode ser ignorado como preconceito de um pensador oriental enciumado pela prosperidade ocidental. Não se pode escapar a esta denúncia.

Isto não significa que devamos voltar o relógio do progresso científico. Ninguém pode ignorar as maravilhas que a ciência trouxe para nossas vidas. O automóvel não cederá lugar ao cavalo ou carroça, nem o trem em favor da diligência, nem o trator em favor do arado manual, nem o método científico à ignorância e à superstição. Mas nossa lacuna ética e espiritual deve ser preenchida. Quando o poder científico se sobrepõe ao poder moral, acabamos com mísseis teleguiados e homens desorientados. Quando minimizamos tolamente a face interior de nossa vida, maximizando a exterior, assinamos nossa sentença de morte.

A esperança de viver criativamente na casa mundial que herdamos repousa em nossa habilidade de reeditar os objetivos éticos de nossa vida pessoal e de justiça social. Sem este despertar espiritual e ético acabaremos por nos destruir pelo mau uso de nossos próprios instrumentos.

II



Dentre os imperativos éticos de nosso tempo, somos desafiados a trabalhar obstinadamente no mundo inteiro para varrer todos os vestígios de racismo. Já em 1906 W. E. B. Du Bois profetizava que “o problema do século XX será o problema da divisão de cor”. Hoje sabemos que o racismo é o cão infernal no encalço de nossa civilização.

O racismo não é um problema somente na América do Norte, seu domínio não conhece barreiras geográficas. De fato, o racismo e seu eterno aliado – a exploração econômica – fornecem a chave para o entendimento da maioria dos entreveros internacionais desta geração.

O exemplo clássico de racismo organizado e institucionalizado é a África do Sul. A política interna e a prática ali são encarnação da doutrina da supremacia do branco em meio a uma população majoritariamente negra. Mas a tragédia da África do Sul não é apenas sua política, é o fato de que ela é viabilizada pela política econômica dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, dois países que se declaram bastiões da moralidade no mundo ocidental.

Portugal com sua prática de trabalho escravo em Angola; o governo de Ian Smith na Rodésia com apoio da indústria Britânica e capital privado, apesar da oposição do governo Britânico. Mesmo no caso do pequeno país da África do Sul Oriental, as nações poderosas do mundo mostram-se incapazes de tomar uma posição ética em relação à África do Sul, embora este pequeno país esteja sob a tutela das Nações Unidas. Suas políticas são controladas pela África do Sul e sua força de trabalho aliciada para as minas, onde trabalha em regime de semi-escravidão.

Durante a administração Kennedy surgiu alguma consciência dos problemas que germinavam sob a influência de condições racistas e de exploração no mundo de cor, e uma preocupação passageira emergiu livrando os Estados Unidos de sua cumplicidade, muito embora o esforço tenha sido apenas no nível diplomático. Através de nosso embaixador nas Nações Unidas, Adlai Stevenson, esboçou-se o início de uma abordagem inteligente aos povos de cor do mundo. Contudo, verificaram-se poucas tentativas de lidar com os aspectos econômicos da exploração racial. Mantivemos um silêncio absoluto sobre os 700 milhões de dólares que sustentam o regime do Appartheid, sem mencionar os bilhões de dólares gastos em comércio e alianças militares sob o pretexto de combater o comunismo na África.

Nada oferece aos comunistas melhor ambiente para expansão e infiltração do que a permanente aliança dos Estados Unidos com o racismo e a exploração no mundo inteiro. E se não usarmos de determinação para erradicar os últimos vestígios de racismo das negociações de nosso país com o resto do mundo, talvez logo vejamos os pecados de nossos pais recaírem sobre a nossa geração e as gerações futuras. Pois as condições que estão classicamente representadas na África estão presentes também na Ásia e na América Latina.

Em todos os cantos da América Latina há um tremendo ressentimento contra os Estados Unidos, e o ressentimento é tanto maior quanto mais pobre e negra a população do continente. A vida e destino da América Latina estão nas mãos das corporações Norte-Americanas. As decisões que afetam a vida dos Latino-Americanos são ostensivamente feitas por seus governos, mas praticamente não há democracias legítimas naquele continente. Os outros governos são dominados por cartéis gigantescos e exploradores que roubam da América Latina seus recursos enquanto repassam uma pequena parcela a uma aristocracia corrupta, que por sua vez não investe em seu país para o bem do povo, mas sim nos bancos suíços e nos parques de diversão do mundo.

Aqui vemos o racismo em sua forma mais sofisticada: o neo-colonialismo. A Bíblia e os anais da história estão repletos das estórias trágicas de um irmão que rouba ao outro seu direito de nascimento, assim produzindo gerações de luta e inimizade. Dificilmente escaparemos de tal julgamento pela América Latina, não mais do que pudemos escapar da semeadura de ódio no Vietnam durante um século de exploração francesa.

Há uma tentação conveniente de atribuir a confusão e amargura prevalecente no mundo à presença de uma conspiração comunista que visa subjugar a Europa e a América, mas o potencial explosivo da situação mundial é muito mais explicável pela desilusão com as promessas do cristianismo e da tecnologia.

Os líderes revolucionários da África, Ásia e América Latina praticamente todos receberam educação superior em capitais ocidentais. Sua educação primária foi freqüentemente em escolas católicas missionárias. Ali seu sentido de dignidade foi moldado e aprenderam que todos os homens são filhos de Deus. Nos anos recentes seus países foram invadidos por automóveis, coca-cola e Hollywood, de modo que mesmo os vilarejos mais remotos ficaram cientes das maravilhas e bênçãos disponíveis aos filhos brancos de Deus.

Depois de atiçadas as aspirações e apetites do mundo pelas maravilhas da tecnologia ocidental, e a auto-imagem das pessoas tendo sido acordada pela religião, não se pode esperar que essas mesmas pessoas aceitem ficar trancadas para fora do reino secular da riqueza, saúde e felicidade. Ou bem partilham as bênçãos do mundo, ou organizam-se para quebrar e derrubar aquelas estruturas e governos que se colocam como obstáculo para o atingimento de seus fins.

Gerações anteriores não podiam sequer conceber tal luxo, mas seus filhos agora tiveram este vislumbre e exigem que se torne realidade. E quando olham em volta e vêem que os únicos a não partilhar da abundância da tecnologia ocidental são as pessoas de cor, é praticamente impossível não concluírem que sua condição e exploração estão de alguma forma relacionadas à cor de sua pele e ao racismo do mundo branco ocidental.

Este não é um fundamento seguro para a casa mundial. O racismo pode bem ser o agente corrosivo que fará ruir a civilização ocidental. Arnold Toynbee disse que cerca de vinte e seis civilizações surgiram sobre a face da terra. Quase todas foram destruídas. A ascensão e queda dessas civilizações, segundo Toynbee, não foi causada por invasões estrangeiras, mas por uma decadência interna. Elas não conseguiram reagir criativamente aos desafios que enfrentaram. Se a civilização ocidental não responder construtivamente ao desafio de banir o racismo, algum historiador do futuro terá de escrever que uma grande civilização morreu por não ter tido o desejo e o comprometimento de fazer da justiça uma realidade para todos os homens.

Um outro grave problema que deve ser resolvido se quisermos viver criativamente em nossa casa mundial é o da pobreza em escala global. Como um gigantesco polvo, ela estende seus tentáculos, apertando e sufocando países e vilarejos por todo o mundo. Dois terços da população do mundo adormecem com fome. Estão subnutridos, mal abrigados e mal vestidos. Muitos não têm casa ou cama na qual dormir. Suas camas são as calçadas e estradas poeirentas. Muitas destas crianças pobres nunca viram um médico ou dentista.

A pobreza não é novidade. A novidade é que agora temos recursos para acabar com ela. Há poucos anos o Dr. Kirtley Mather, um geólogo de Harvard, escreveu um livro intitulado “Suficiente e Abundante” (Enough and to Spare).2 Ali ele desenvolve a idéia de que a fome é totalmente dispensável no mundo moderno. A questão em pauta hoje deve ser: Por que há fome e privação em qualquer terra, cidade, mesa, quando o homem tem os recursos e o conhecimento científico para prover toda a humanidade com o básico necessário à vida? Até desertos podem ser irrigados e a camada arenosa do solo substituída. Não podemos nos queixar de falta de terras, pois existem 25 milhões de milhas de terras aráveis no mundo, dos quais usamos apenas sete milhões. Temos conhecimentos espantosos sobre vitaminas, nutrição, a química do alimento e a versatilidade dos elementos. Não há falta de recursos humanos; a falta é de vontade.

Isso não significa que podemos desconsiderar a taxa de crescimento da população mundial. A explosão populacional é um dado real, e deve ser enfrentada se quisermos evitar a situação de superlotação daqui a alguns séculos. Muitas das grandes nações subdesenvolvidas de hoje estão confrontadas com o problema do excesso populacional em relação a seus recursos. Mas mesmo este problema pode ser grandemente mitigado pondo-se um fim à pobreza. Quando as pessoas vêm mais oportunidades de ter uma boa educação e maior segurança econômica, começam a pensar se talvez uma família menor não seria melhor, tanto para pais como para filhos. Em outras palavras, não acredito que se possa estabilizar a população sem primeiro estabilizar os recursos econômicos.

Chegou a hora de travar uma batalha total e sem tréguas contra a pobreza. As nações abastadas devem usar seus vastos recursos para desenvolver as subdesenvolvidas, ensinar os que não receberam educação e alimentar os famintos. Os ricos e seguros freqüentemente tornam-se indiferentes e cegos à pobreza e privação à sua volta. Os pobres de nossos países têm sido trancados para fora de nossas mentes e afugentados do centro das sociedades, e temos permitido que se tornem invisíveis. Fundamentalmente uma grande nação é uma nação compassiva. Nenhum indivíduo ou nação pode ser grande se não se preocupa com "os irmãos mais pequeninos”.

O primeiro passo na guerra mundial contra a pobreza é um comprometimento apaixonado. Todas as nações abastadas – América do Norte, Grã-Bretanha, Rússia, Canadá, Austrália e as da Europa Ocidental – devem assumir como obrigação moral o fornecimento de capital e assistência técnica às áreas subdesenvolvidas. Até aqui o empenho destas ricas nações somente arranhou a superfície do problema. Faz-se necessária agora uma estratégia abrangente de apoio. Uma pequena ajuda aqui e ali não é suficiente, nem sustentará o crescimento econômico. É preciso produzir um esforço continuado de muitos anos. As nações abastadas devem dar início imediatamente a um “plano Marshall” para a Ásia, África e América do Sul. Se dedicassem apenas 2% de seu PIB anual por um período de dez ou vinte anos para o desenvolvimento das nações subdesenvolvidas, a humanidade faria grande progresso em direção à derrota de seu antigo inimigo: a pobreza.

O programa de ajuda que sugiro não deve ser usado pelas nações abastadas como forma sub-reptícia de controlar as nações mais pobres. Tal abordagem levaria a um novo tipo de paternalismo e a um neocolonialismo que nenhuma nação que se preze poderia aceitar. Programas de ajuda estrangeira devem estar fundamentalmente motivados por um esforço compassivo e sério de eliminar a pobreza, a ignorância e a doença. Dinheiro desacompanhado de verdadeira empatia é como sal privado de sabor; não serve para nada - a não ser para inspirar o desprezo dos homens.

O Ocidente deve entrar neste programa com humildade e penitência, e com a percepção sóbria de que nem tudo estará sempre “do nosso lado”. Não se deve esquecer que as potências Ocidentais são nada mais que os senhores coloniais do passado. A casa do Oeste está longe de estar em ordem, e suas mãos não estão limpas.

Devemos ter paciência. Estar dispostos a compreender porque muitas das nações jovens terão de passar pelo mesmo extremismo, revoluções e agressão que formaram a nossa própria história. Todo novo governo é confrontado por enormes problemas. Nos dias em que lutávamos para nos livrar do jugo do colonialismo, havia uma espécie de unidade de propósito pré-existente que manteve as coisas na direção certa. Mas quando chega a independência, todos os amargos problemas da vida surgem com duro realismo: a falta de capital, a pobreza que sufoca, as incontroláveis taxas de natalidade e, acima de tudo, as grandes aspirações do povo. O período pós-colonial é mais difícil e precário que a própria luta colonial.

O Ocidente deve entender também que seu crescimento econômico deu-se sob circunstâncias bastante propícias. A maioria das nações era relativamente pouco populosa quando ascendeu economicamente, e tinha grandes reservas de ferro e carvão, necessários para a indústria. Hoje, a maioria dos governos jovens chega sem estas vantagens e, acima de tudo, deve lidar com a superpopulação. Não há forma de fazer isto sem ajuda.

Um programa genuíno por parte das nações mais ricas para fazer prosperar as nações mais pobres irá, em última análise, aumentar a prosperidade de todos. Uma das melhores provas de que a realidade tem seus fundamentos na ética é o fato de que quando homens e governos trabalham devotadamente pelo bem dos outros, conquistam seu próprio enriquecimento ao longo do processo.

Desde tempos imemoriais os homens têm vivido pelo princípio de que “a auto-preservação é a primeira lei da vida” mas isto é um falso pressuposto. Diria que a preservação do outro é a primeira lei da vida. E é a primeira justamente porque não podemos preservar o ser sem o cuidado de preservar outros seres. O universo está estruturado de tal forma que as coisas tomam o caminho errado quando os homens não são diligentes no cultivo da dimensão do “cuidado com o outro”. Não posso me realizar sem “você”. O ser não pode ser sem outros seres. Cuidado de si sem cuidado do outro é como um afluente que não tem saída para o mar, a água parada, estagnada. Falta vida e frescor. Nada seria mais desastroso e desarmônico para nossos interesses do que permitir que as nações desenvolvidas entrassem na rua sem saída do egoísmo desordenado. Estamos na situação afortunada de poder fundir nosso mais profundo sentido ético com nossos próprios interesses.

Mas o verdadeiro motivo pelo qual devemos usar nossos recursos para erradicar a pobreza vai além das preocupações materiais em direção à qualidade de nossa mente e espírito. Profundamente enraizada na fé de nossa tradição religiosa está a convicção de que os homens foram feitos à imagem de Deus, e que são almas de infinito valor metafísico. Se aceitarmos isto como uma realidade ética profunda, não podemos ficar em paz ao vermos homens com fome e vitimados pela doença, tendo meios para ajudá-los. No final, os ricos não devem ignorar os pobres porque ricos e pobres estão amarrados uns aos outros. Vieram pelo mesmo portal misterioso do nascimento humano para a mesma aventura de uma vida mortal.

Todos os homens são interdependentes. Cada nação é herdeira de um vasto tesouro de idéias e trabalho para o qual contribuíram os vivos e os mortos de todas as nações. Quer percebamos ou não, cada um de nós vive eternamente “no vermelho”. Somos devedores permanentes de homens e mulheres desconhecidos. Quando levantamos de manhã caminhamos até o banheiro e pegamos uma esponja que foi colhida por um ilhéu do Pacífico. Pegamos o sabão que foi inventado por um Europeu. À mesa bebemos café fornecido por um habitante da América do Sul, ou chá plantado pelos chineses, ou chocolate cultivado por um africano oriental. Antes de sairmos para o trabalho já devemos para mais de meio mundo. Verdadeiramente, toda a vida está inter-relacionada. A agonia do pobre empobrece o rico; a melhoria do pobre enriquece o rico. Somos inevitavelmente os guardiões de nosso irmão porque somos o irmão de nosso irmão. O que afeta diretamente a um, afeta a todos indiretamente.

Um último problema que a humanidade deve resolver para sobreviver na casa mundial que herdamos é encontrar uma alternativa para a guerra e a destruição dos homens. Acontecimentos recentes demonstram nitidamente que as nações não estão diminuindo, mas sim aumentando seus arsenais de armas de destruição em massa. As melhores cabeças nas nações mais desenvolvidas do mundo dedicam-se à tecnologia militar. A proliferação de armas atômicas não parou apesar do tratado de limitação dos testes.

Nesta época de conquistas tecnológicas avançadas, de descobertas estonteantes, de novas oportunidades, grande dignidade e plena liberdade para todos, não há desculpas para aquela fome insana de poder e recursos que provocou guerras nas gerações anteriores. Não há necessidade de lutar por alimento ou terras. A ciência nos ofereceu meios adequados de sobrevivência e transporte que nos permitem desfrutar a plenitude deste grande planeta. A questão agora é: teremos a ética e a coragem exigidas para viver juntos, como irmãos, sem medo?

Uma das ambigüidades mais persistentes que enfrentamos é que todos falam da paz como uma meta, mas entre os detentores do poder a paz não é da conta de ninguém. Muitos clamam por “Paz! Paz!”, porém recusam-se a fazer coisas que conduzem à paz.

Os grandes blocos de poder falam acaloradamente de paz enquanto engordam os já gordos orçamentos de defesa, aumentam exércitos já enormes e inventam armas ainda mais devastadoras. Chame aqueles que pedem por paz e ouviremos um surpreendente coro. Os chefes das nações declaram em altas vozes que a paz é necessária, mas chegam à mesa de negociação acompanhados de guerreiros com espadas desembainhadas.

A história está repleta de conquistadores do passado que vieram matando em busca da paz. Alexandre o Grande, Gengis Kham, Julius César, Carlos Magno e Napoleão tinham em comum a busca de uma ordem mundial pacífica, um mundo moldado a partir de suas concepções egocêntricas da existência ideal. Cada um deles buscou um mundo em paz que personificasse seus sonhos egoicos. Mesmo durante o nosso tempo sobre a terra, outro megalomaníaco passou pelo cenário mundial. Ele enviou suas legiões por toda a Europa, semeando desastre e holocausto por onde passava. Há uma triste ironia no fato de que Hitler conseguiu ascender, seguindo teorias expansionistas francamente agressivas, e fazer tudo isto em nome da paz.

Hoje quando vejo os líderes das nações novamente falando de paz, mas preparando-se para a guerra, fico temeroso. Quando vejo nosso país intervindo no que era basicamente uma guerra civil, mutilando centenas de milhares de crianças Vietnamitas com napalm, queimando vilas e campos de arroz aleatoriamente, pintando os vales daquele pequeno país asiático com sangue humano, deixando esqueletos quebrados em valas abertas, e mandando para casa semi-homens, mutilados física e emocionalmente; quando vejo a má vontade de nosso governo em criar a atmosfera para um acordo negociado que ponha fim a esse medonho conflito, negando-se a parar os bombardeios no Norte e concordando em falar com os Vietcong, temo pelo nosso mundo. Não só pela lembrança dos pesadelos das guerras do passado, mas também pela consciência da possibilidade moderna de destruição nuclear, e pelas perspectivas ainda mais calamitosas para o futuro.

Antes que seja tarde demais, devemos diminuir a distância entre nossas declarações de paz e nossas ações vis, que precipitam e perpetuam a guerra. É nosso dever levantar os olhos do pântano de programas militares e investimentos em defesa e ler os avisos nas placas da história.

Um dia veremos que a paz não é apenas um objetivo distante que buscamos, mas um meio pelo qual chegaremos a esta meta. Devemos procurar metas de paz através de meios pacíficos. Quanto tempo ainda precisaremos praticar jogos de guerra mortais antes de ouvir as súplicas dos incontáveis mortos e mutilados das guerras passadas?

O presidente John. F. Kennedy disse em certa ocasião “A humanidade precisa por um fim à guerra, ou a guerra porá um fim à humanidade”. A sabedoria nascida da experiência deveria nos dizer que a guerra é obsoleta. Talvez tenha havido um tempo em que a guerra serviu como um bem negativo, prevenindo o alastramento das forças do mal, mas o poder destrutivo das armas modernas elimina inclusive a possibilidade de que a guerra traga qualquer coisa de bom. Se entendemos que a vida vale a pena ser vivida, e que o homem tem direito à sobrevivência, temos que encontrar uma alternativa para a guerra. No dia em que mísseis teleguiados cortarem sulcos de morte pela estratosfera, nenhuma nação poderá declarar-se vencedora na guerra. Uma guerra chamada “limitada” deixará um legado calamitoso de sofrimento humano, caos político e desilusão espiritual. Uma guerra mundial deixará apenas cinzas, mudo testemunho de uma raça cuja loucura a levou inexoravelmente à morte. E se o homem moderno continuar flertando livremente com a morte, transformará sua habitação terrena num tal inferno que nem a mente de Dante poderia imaginar.

Portanto, sugiro que a filosofia e a estratégia da não-violência sejam imediatamente estudadas e seriamente aplicadas em todos os campos do conflito humano, sem excluir as relações entre os Estados. Afinal, são as nações-estado que fazem a guerra, que produzem as armas que ameaçam a sobrevivência da humanidade, e que mostram um caráter suicida e genocida.

Será preciso lidar com hábitos antiqüíssimos, vastas estruturas de poder, problemas indescritivelmente complicados. No entanto, a menos que abdiquemos de nossa humanidade e sucumbamos ao medo e impotência na presença das armas que nós mesmos criamos, é possível e urgente por um fim à guerra e à violência entre nações – como é possível por um fim à pobreza e à injustiça racial.

A Organização das Nações Unidas é um gesto na direção da não-violência mundial. Ao menos ali os estados que se opõem um ao outro têm procurado fazê-lo através de palavras em vez de armas. Mas a verdadeira não-violência é mais que a ausência de violência. É a aplicação persistente e determinada de um poder de pacificação das ofensas à comunidade – neste caso à comunidade mundial. Enquanto as Nações Unidas avançam na gigantesca tarefa em suas mãos, gostaria que examinasse atentamente as aplicações da ação não-violenta direta.

Não quero minimizar a complexidade dos problemas a serem encarados para conseguir o desarmamento e a paz. No entanto, estou convencido de que não teremos a vontade, coragem e visão para lidar com tais questões a não ser que estejamos preparados para sofrer uma reformulação mental e espiritual, uma mudança de foco que nos permitirá ver que aquilo que nos parece mais real e poderoso é hoje na verdade irreal e uma sentença de morte. Precisamos fazer um esforço supremo para gerar a prontidão, realmente uma urgência em entrar no novo mundo que agora é possível “a cidade que tem uma fundação, cuja Construção e Construtor são Deus”.

Não basta dizer “Não devemos fazer guerra”. É preciso amar a paz e fazer sacrifícios por ela. Precisamos nos concentrar não somente em erradicar a guerra, mas em afirmar a paz. Chegou-nos da literatura grega uma fascinante história sobre Ulisses e as Sereias: Era tão doce o seu canto que os marinheiros não resistiam e rumavam para sua ilha. Muitos navios eram levados até as pedras, os homens se esqueciam de casa, do dever e da honra e atiravam-se ao mar para abraçar as criaturas que os levavam ao fundo e à sua morte. Ulisses, decidido a não sucumbir às Sereias, primeiro amarrou-se firmemente ao mastro do navio e pediu à tripulação que tampasse seus ouvidos com cera. Por fim Ulisses e sua tripulação aprenderam um método melhor de salvamento: Trouxeram a bordo um ótimo cantor, Orpheu, cujas melodias eram mais doces que aquelas das Sereias. Quando Orpheu cantava, quem quereria ouvir as Sereias?

Da mesma forma devemos ver que a paz representa uma música mais doce, uma melodia cósmica muito superior aos desentendimentos da guerra. De alguma forma devemos transformar a dinâmica mundial da corrida pelo poder e armas nucleares, que ninguém pode ganhar, num concurso criativo capaz de dirigir o gênio do homem para a realização da paz e prosperidade como realidade para todas as nações da terra. Em suma, devemos mudar da corrida armamentista para a corrida da paz. Se tivermos a vontade e determinação para montar tal ofensiva de paz, estaremos abrindo as portas, até então lacradas, da esperança e deixando entrar a luz nos espaços escuros do pessimismo.

III



A estabilidade de nossa grande casa mundial envolverá uma revolução de valores para acompanhar as revoluções científica e de liberdades que varrem o planeta. Rapidamente devemos mudar de uma sociedade orientada para as “coisas” para uma sociedade orientada para as “pessoas”. Quando máquinas e computadores, lucro e propriedade são considerados mais importantes que as pessoas, o tripé gigante do racismo, materialismo e militarismo não pode ser derrubado. Uma civilização pode afundar tão prontamente pela falência ética e espiritual como pela falência financeira.

Tal revolução de valores deve ir além dos tradicionais capitalismo e comunismo. Devemos admitir que o capitalismo tem deixado uma lacuna entre riqueza supérflua e pobreza abjeta; tem criado condições que permitem que as necessidades básicas sejam subtraídas a muitos para dar luxos a uns poucos; e tem incentivado homens mesquinhos a se tornarem frios e inconscientes, de forma que, como David diante de Lázaro, deixam de se comover diante da humanidade sofrida e empobrecida. A avidez pelo lucro, quando se torna a única base do sistema econômico, encoraja a competição desenfreada e as ambições egoístas levando os homens a serem mais centrados em si que nos outros. Da mesma forma, o comunismo reduz os homens a uma engrenagem na máquina do estado. Os comunistas talvez discordem, dizendo que na teoria marxista o estado é uma “realidade interina” que “se desmanchará” quando surgir a sociedade sem classes. Em teoria isto é verdade, mas também é verdade que enquanto durar o estado, ele é um fim em si mesmo. O homem é o meio para um fim. Ele não tem direitos inalienáveis. Seus únicos direitos vêm do estado e são conferidos por este. Sob tal regime a fonte da liberdade se esgota, posto que restritos os direitos de imprensa e reunião, de votar, ouvir e ler.

A verdade não se encontra nem no capitalismo tradicional, nem no comunismo clássico. Os dois representam uma verdade parcial. O capitalismo deixou de ver a verdade do coletivismo. O comunismo deixou de ver a verdade do individualismo. O capitalismo não percebe que a vida é social. O comunismo não percebe que a vida é pessoal. A sociedade boa e justa não é a tese do capitalismo nem a antítese do socialismo, mas uma democracia socialmente consciente que concilia as verdades do individualismo e do coletivismo.

Temos visto alguns movimentos nessa direção. A União Soviética gradualmente distanciou-se de seu rígido comunismo e começou a preocupar-se com os bens de consumo, a arte e um aumento nos benefícios concedidos ao cidadão comum. Ao mesmo tempo, através de constantes reformas sociais, temos visto muitas modificações ao liberalismo econômico. Os problemas que enfrentamos agora exigem que se vá além das palavras de ordem. Em última análise, os slogans de direita sobre “controle estatal” e “socialismo emergente” são tão desprovidos de sentido quanto os slogans da Guarda Vermelha chinesa sobre “revisionismo burguês”. Uma abordagem inteligente dos problemas da pobreza e do racismo nos levará a ver que as palavras do salmista - “A terra é do Senhor, e Dele sua abundância”. – são um julgamento sobre nosso uso e abuso da riqueza e recursos que nos foram oferecidos.

Uma verdadeira revolução de valores em breve nos levará a questionar a justiça de muitas de nossas políticas presentes e passadas. Somos chamados a fazer o papel do Bom Samaritano na estrada da vida; mas isto será apenas o começo. Um dia toda a estrada de Jericó deverá se transformar para que homens e mulheres não sejam roubados e espancados ao viajar pela vida. A verdadeira compaixão é mais que jogar uma moeda ao pedinte; é perceber que um edifício que produz pedintes precisa ser remodelado.

Uma verdadeira revolução de valores logo verá com maus olhos o flagrante contraste entre pobreza e riqueza. Zelosamente indignada, verá milhares de trabalhadores sem emprego e com salários reduzidos como resultado da automação, enquanto o lucro dos empregadores se mantém intacto; e então dirá: “Isto não é justo”. Lançará um olhar para o outro lado do oceano e verá capitalistas ocidentais investindo fortunas na Ásia, África e América do Sul apenas para levar o lucro e sem nenhuma preocupação com a melhoria social destas nações; e dirá: “isto não é justo”. Contemplará a nossa aliança com os senhores de terra da América do Sul e dirá: “isto não é justo”. A arrogância ocidental que pensa que tem tudo a ensinar e nada a aprender com os outros não é justa. Uma verdadeira revolução de valores lançará mão sobre a ordem mundial e dirá da guerra: “Esta forma de acertar desentendimentos não é justa”. O negócio de queimar corpos humanos com napalm e encher as casas de órfãos e viúvas, de injetar ódio nas veias de pessoas normalmente humanas, tirar os homens de campos de batalha sangrentos e devolvê-los paraplégicos e insanos; nada disso pode estar associado à sabedoria, à justiça ou ao amor. Uma nação que prossegue, ano após ano, gastando mais dinheiro em defesa militar do que em reforço social se aproxima de sua morte espiritual.

Os Estados Unidos, a nação mais poderosa do mundo, bem poderia liderar esta revolução de valores. Nada nos impede de pagar salários adequados aos professores, assistentes sociais e outros servidores da sociedade a fim de garantir que tenhamos nesses cargos os melhores profissionais, responsáveis por orientar as futuras gerações. Nada a não ser uma falta de visão nos impede de pagar salários adequados a cada norte-americano, seja ele alguém que trabalha no hospital, na lavanderia, numa casa de família ou na indústria. Nada além de miopia nos impede de garantir um valor anual mínimo para garantir a sobrevivência de cada família norte-americana. Nada a não ser um desejo trágico de morte nos impede de reordenar nossas prioridades para que a busca da paz tome precedência sobre a busca da guerra. Nada nos impede de remodelar o recalcitrante status quo com nossas mãos doloridas até que assuma a forma de uma irmandade.

Esse tipo de revolução positiva de valores é nossa melhor defesa contra o comunismo. A guerra não é a resposta. O comunismo nunca será derrotado pelo uso de bombas atômicas ou armas nucleares. Não sejamos arrebatados por aqueles que pedem guerra e que, em virtude de paixões irrefreadas, incitam os Estados Unidos a diminuir sua participação nas Nações Unidas. Estes são tempos que exigem sábio controle e calma ponderação. Não devemos chamar a todos de comunistas ou pacifistas por advogar a entrada da China nas Nações Unidas, ou por reconhecer que o ódio e a histeria não são as respostas definitivas aos problemas destes tempos turbulentos. Não devemos nos envolver num anti-comunismo negativo, mas num esforço positivo em prol da democracia, percebendo que nossa maior defesa contra o comunismo é agir ofensivamente em favor da justiça. Com ação afirmativa devemos tentar eliminar a pobreza, a insegurança e a injustiça que constituem o solo fértil no qual o comunismo cresce e se desenvolve.

Estes são tempos revolucionários. Por toda a terra os homens se levantam contra velhos sistemas de exploração e opressão, e do ventre de um mundo frágil novos sistemas de justiça e igualdade estão nascendo. Os descamisados e descalços desta terra estão se levantando como nunca antes. “Os povos que estavam na escuridão viram uma grande luz”. Nós no Ocidente devemos apoiar estas revoluções. É triste que por comodismo, complacência, um mórbido temor do comunismo, e nossa tendência a nos adaptarmos à injustiça, as nações ocidentais, que iniciaram muito do espírito revolucionário do mundo moderno, tenham se transformado agora em arqui-anti-revolucionários. Isto levou muitos à percepção de que apenas o marxismo detém o espírito revolucionário. O comunismo é um julgamento de nossa inabilidade de construir uma real democracia e levar adiante as revoluções que iniciamos. Nossa única esperança hoje repousa na capacidade de recapturar o espírito revolucionário e sair pelo mundo, por vezes hostil, declarando oposição à pobreza, ao racismo e ao militarismo. Com este poderoso compromisso modificaremos o status quo e os costumes injustos, assim apressando a chegada do dia em que “todo vale será exaltado, toda montanha rebaixada: o torto será endireitado e feitos planos os lugares escarpados”.

Uma genuína revolução de valores significa, em última análise, que nossa lealdade deve tornar-se ecumênica em vez de setorial. Todas as nações devem agora desenvolver uma lealdade prioritária à humanidade como um todo para preservar o que há de melhor em suas sociedades individuais.

Este chamamento por uma parceria mundial que estende o zelo de vizinhos para além de nossa tribo, raça, classe ou nação é na realidade um chamamento pelo amor incondicional e todo-abrangente por todos os homens. Este conceito freqüentemente mal compreendido e mal interpretado tornou-se agora uma necessidade absoluta da sobrevivência. Quando falo de amor falo daquela força que todas as grandes religiões viram como o supremo princípio unificador da vida. O amor é a chave que abre a porta que conduz à realidade última. Esta crença hindu-islâmica-Cristã-Judaica-Budista sobre a realidade última está belamente condensada na primeira Epístola de São João:

Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque a caridade vem de Deus:
E todo o que assim ama, nasceu de Deus, e
Conhece a Deus. Quem não ama não conhece a Deus
Porque Deus é caridade….Se nos amarmos mutuamente,
Deus permanece em nós e a sua caridade é em nós perfeita.
4:7

Esperemos que este espírito torne-se a ordem do dia. Não podemos mais nos dar ao luxo de adorar o Deus do ódio ou ajoelhar no altar da retaliação. Os oceanos da história encapelam-se nas marés do ódio. Ali jazem os destroços de nações e indivíduos que perseguiram este caminho. Como disse Arnold Toynbee em um discurso: “O amor é a força última que faz a escolha salvadora da vida e do bem contra a escolha demoníaca da morte e do mal. Portanto, a primeira esperança em nosso inventário deve ser a esperança de que o amor terá a última palavra”.

Agora nos defrontamos com o fato de que o ontem se tornou hoje. Somos confrontados com a urgência feroz do agora. Neste desenrolar de vida e história há algo que se denomina chegar tarde demais. A procrastinação é o ladrão do tempo. A vida freqüentemente nos deixa nus e miseráveis diante de uma oportunidade perdida. A maré dos negócios humanos não fica permanentemente na enchente. Ainda que peçamos desesperados por uma pausa na passagem do tempo, ele se mostra indiferente e segue correndo. Por sobre os ossos calcinados e destroços amontoados de inúmeras civilizações lê-se as palavras “tarde demais”. No livro invisível da vida, que fielmente relata nossos zelos e negligências, “a mão escreve, e tendo escrito, move-se adiante...” Ainda temos uma escolha: coexistência não-violenta ou co-aniquilação violenta. Esta pode bem ser a última chance de escolhermos entre caos e comunidade.

1 Abraham Mitrie Rihbany, Wise Men from the East and from the West (Houghton Mifflin, 1922) 137.
2 Harper, 1944.
Reprinted for educational purposes only from the Beacon Press edition, 1968. It is a violation of US copyright laws to sell or profit from this material.
Em: Where do we go from here: Chaos or Community, Martin Luther King Jr., 1967

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