Ora, se gente safada, se pessoas bandidas, se indivíduos assassinos, se mentes corruptas, mesmo tendo contra si todas as estruturas físicas, todo o aparato logístico possível, todos as normas legais, todos os princípios éticos, todos os preceitos morais, todos os fundamentos religiosos e todas as práticas comunitárias, se, com tudo isso contra eles, os criminosos se “organizam”, fazem e acontecem, deitam e rolam, pintam e bordam, por que não se organiza, faz e acontece melhormente, maiormente, permanentemente, a grande maioria da comunidade, constituída de cidadãos pacíficos, organizações respeitáveis e autoridades responsáveis? Por quê?
Por que falam alto os bandidos e a comunidade emudece ou, quando muito, balbucia, gagueja, tartamudeia ou até caga nas calças de tanto medo? Por que arrotam arrogância e onipotência os facínoras e celerados e se acachapa e se humilha o povo? Por que parecem tão cheios de si os corruptos e tão vazios de tudo os carentes? Por que são tão seguros os que vivem à margem da lei e por que são tão inseguros os que a respeitamos? Enfim, por que reina o crime e a sociedade se avassala?
O problema, repetimos aqui, não é que o crime seja organizado: a sociedade é que se foi desorganizando ao correr dos tempos e ao cometer dos crimes. Somos nós, os que não matamos, não roubamos, não (nos) corrompemos, somos nós os “bonzinhos” e “honestos” que, de alguma forma, colaboramos para que o mal se instale, a impunidade se instaure. Não há nada de ruim que aconteça a uma sociedade que não seja com permissão dela (muitas das vezes pela omissão dela e, até, com o aval, o voto dela).
Como nós, os “certinhos”, frouxos, bundas-moles, não ocupamos a maior parte das fatias de poder, o bolo político, o butim financeiro, essa verdadeira pilhagem social que advém do banditismo político (ou do politiquismo bandido) é repartida entre os “cargas-tortas” — que, auxiliados por uma rede de pessoas bem-postas e por um tremendo cinismo, uma imensurável hipocrisia e uma baita cara-de-pau, vão atropelando tudo e todos que estão no caminho que leva ao dinheiro do Poder e ao poder do dinheiro.
Enquanto isso, ficamos aqui embaixo, rezando o catecismo do “bom senso” que é, em verdade, omissão; da esperança que é, verdadeiramente, passividade; da fé que, ao final, é comodismo, é covardia disfarçada de virtude. Ficamos confiando em Deus e nos confinando egoística e covardemente quando, aqui na Terra, no mínimo a responsabilidade deveria com Ele ser dividida.
Não “entramos” na “tal de política” porque “lá é tudo sacanagem”, e não devemos associar nosso sacrossanto nome a ela e ao que a ela se ligue. “Administração Pública (o puleiro) — disse um político menor, na presença de testemunhas — é para ladrões”. (A premissa, claro, é mais do que falsa, embora, infelizmente, ateste o nível de percepção a que chegou a gestão pública como corolário da Política).
A instituição “Política” não foi criada por Deus, como os Dez Mandamentos. A Política é coisa do homem e, em termos políticos, o que o ser humano faz, pode desfazer. Portanto, política ruim só pode vir de gente ruim, ou da parte ruim dessa gente — gente que quer ganhar Poder esquecendo-se do Dever, aumentar o patrimônio diminuindo a personalidade (a sua e a dos outros). Por conta disso, cultivam-se intrigas, comerciam-se cargos, industriam-se mentiras, trocam-se favores, geram-se leis, favorecem-se trocas, acomodam-se situações, aceitam-se imposições, engolem-se frustrações, vende-se a alma, enfim, tudo o que, em termos éticos, causa repulsa, asco, nojo — embora, ao final, o sodomizado continue sendo o povo.
Com um “clima” desse na Política, com a extrema percepção negativa que tem o povo dos políticos e da Política — onde, reforce-se, aprioristicamente “todos são ladrões” e “tudo não presta”—, em um ambiente assim bandidos só podem é se sentir em casa e se sentarem à mesa posta, que a comida é farta.
Podem até os marginais da Política ser minoria (e de fato o são), mas o poder de sedução do mal é tão grande no imaginário coletivo (e as últimas pesquisas científicas reconfirmam isso) que não tem adiantado muito mostrar a parede branca de virtudes da Política (e as há), pois que só será visto o ponto negro, pequeno, do vício que a enodoa e contamina, macula e fere, fere e fede.
É nesse lodaçal de vícios, é nessa lama amoral e imoral, é nesse charco pútrido e fétido (que ocupa pouca área do terreno político mas que o compromete), é aí o espaço onde crescem os descarados, o pântano onde vicejam os sem-escrúpulos, que se organizam em “societas sceleris” (sociedade de bandidos), desenhando uma árvore “criminológica” cujos galhos e ramos vão-se estendendo rumo a outras instituições públicas e privadas (Poder Judiciário, empresas, organizações classistas e comunitárias). E acontecem os desvios de influência, o tráfico de posições, os roubos, as mortes, a receptação, o acobertamento. Daí para a instauração, como regra, da estreiteza ética, da precariedade moral, da devassidão política, da obscenidade administrativa, pode ser um passo.
Portanto, contra o crime organizado, só uma sociedade mais do que organizada. E esta se faz com pessoas conscientes de seus vários e cada vez mais múltiplos papéis (no trabalho, na igreja, na organização comunitária, no sindicato da categoria, na associação de classe, no clube de serviço, nos momentos de ócio etc.). Faz-se, cumulativamente, com a participação político-social e político-partidária, com a ocupação de certos espaços de Poder hoje desgraçadamente apropriados por quem, como ser sociopolítico, não vale o que o gato enterra.
Contra o crime organizado, só uma sociedade mais do que organizada, quase perfeita — e esta não existe só na cabeça de idealistas: reside também na simples vontade da maioria simples do povo, a ser reforçada e tangida por seres indutores que, além de conhecimento de causa e honestidade de propósitos, tenham verdade na voz, alma nos olhos, sensibilidade no coração... e vergonha na cara.
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