7 de junho de 2010

O Livro dos Cinco Anéis (Miyamoto Musashi)

O Livro dos Cinco Anéis
Go Rin No Sho









Miyamoto Musashi


Apresentação
O Japão à época de Musashi



Miyamoto Musashi nasceu em 1584, enquanto o Japão ainda lutava para se recuperar de mais de quatro séculos de comoções internas. O governo tradicional dos imperadores havia sido derrubado no século doze, e, embora os novos imperadores continuassem como símbolos do próprio Japão, seu poder era quase nenhum. Desde aquela época, o Japão vinha sendo palco de uma guerra civil ininterrupta entre os senhores provinciais, monges guerreiros e salteadores, uns combatendo os outros em busca de mais terra e poder. Nos séculos quinze e dezesseis, os senhores provinciais, chamados de daimyo, fizeram construir imensos castelos para se protegerem e às suas terras, e logo começaram a surgir em sua volta as primeiras cidades. Naturalmente, essas guerras restringiram o crescimento do comércio e empobreceram todo o país. Entretanto, em 1573 um homem chamado Oda Nobunaga assumiu a dianteira e tomou as rédeas do país. Ele se tornou o Shogun, ou ditador militar, e por nove anos conseguiu trazer para seu domínio quase todo o Japão. Quando Nobunaga foi assassinado, em 1582, um plebeu ascendeu ao governo. Toyotomi Hideyoshi prosseguiu o trabalho de unificação do país iniciado por Nobunaga, reprimindo impiedosamente todas as ameaças de insurreição. Ele fez reviver a velha separação entre os guerreiros – ou samurais – e os plebeus, impondo barreiras ao uso de espadas. A “caça às espadas de Hideyoshi”, como passou a ser conhecida, implicou que apenas os samurais tinham permissão para usar duas espadas: a espada curta, que todos poderiam usar, e a espada longa, que distinguia os samurais do restante da população. Embora Hideyoshi tenha feito muito para unificar o Japão e aumentar o comércio com outros países, quando de sua morte, em 1598, as lutas internas ainda não tinham sido eliminadas de todo. O verdadeiro isolamento e a unificação do Japão começaram com o grande Tokugawa Ieyasu, antigo companheiro tanto de Hideyoshi quanto de Nobunaga. Em 1603, Tokugawa tornou-se formalmente Shogun do Japão, depois de derrotar Hideyori, filho de Hideyoshi, na batalha de Seki ga Hara. Tokugawa estabeleceu seu governo em Edo, onde hoje é Tóquio, local onde era dono de um imenso castelo. Seu período de governo foi estável e pacífico, dando início a uma era da História japonesa que se prolongou até a restauração imperial de 1868, pois embora Ieyasu tivesse falecido em 1616, os membros de sua família se sucederam no comando da nação e o título de Shogun se tornou praticamente hereditário para os Tokugawa.

Ieyasu estava determinado a assegurar a permanência de sua ditadura pessoal e da ditadura de sua família. Para isso, concedeu ao imperador, residente em Kyoto, o mesmo status de mandatário supremo, de valor apenas honorífico, sem quase nenhuma participação nos assuntos de governo. A única ameaça concreta à posição de Ieyasu só poderia partir dos senhores, e o Shogun limitou eficazmente as oportunidades de revolta senhorial estipulando, através de um esquema de leis, que todos os senhores teriam que viver em Edo ano sim ano não e impondo grandes restrições às viagens. As doações de terra eram feitas em troca de votos de lealdade. Vários castelos provinciais nos arredores de Edo foram entregues a membros de sua própria família. Sob suas ordens, funcionava uma rede secreta de policiais e assassinos. O período Tokugawa marca uma transformação radical na história da sociedade japonesa. A burocracia dos Tokugawa se ramificou por todos os setores. A educação, o direito, o governo e as classes sociais eram controlados por ela, e sua influência chegava até a regulamentação dos costumes e comportamento de cada classe. A consciência de classe, que é uma característica tradicional dos japoneses, se formando uma rígida estrutura. Assim, as pessoas se dividiam, essencialmente, em quatro classes sociais: samurais, agricultores, artesãos e comerciantes. Os samurais eram a classe mais elevada – se não em riqueza pelo menos em prestígio – , e dela faziam parte os senhores, os membros mais graduados do governo, os guerreiros, alguns oficiais do exército e os soldados da infantaria. Um degrau abaixo nessa hierarquia vinham os agricultores, não por qualquer característica especial mas apenas em razão de assegurarem o suprimento de arroz e outras colheitas imprescindíveis à alimentação do povo. Porém seu fardo era pesado, uma vez que eram obrigados a entregar a maior parte de sua produção aos senhores e não tinham permissão de deixar as fazendas. Em seguida vinham os artesãos e artífices, e no final da linha os comerciantes, que, embora desprezados pelos outros, acabaram por se elevar a uma posição de destaque, como conseqüência da grande riqueza que assemelharam aos poucos. Muito pouca gente escapava a essa rígida hierarquia. Musashi pertencia à classe dos samurais. As origens dessa classe estão no sistema do Kondei (“Juventude Leal”), estabelecido em 792 D.C., através do qual o exército japonês – até então formado por uma infantaria armada de lanças – foi revitalizado com o recrutamento de oficiais entre os jovens das famílias de nível mais elevado; esses oficiais passaram a formar um corpo permanente do exército. Eles andavam a cavalo, usavam armaduras, arco e espada. Em 782, o imperador Kammu iniciou a construção de Kyoto, e lá erigiu uma “academia” de treinamento chamada Butokuden, existente ainda hoje (Butokuden significa “Casa das Virtudes da Guerra”). Poucos anos após a reestruturação do exército, os temíveis Ainu, habitantes aborígenes do Japão que até aquela data conseguiam resistir às tentativas do exército de expulsá-los para regiões mais distantes, foram enfim empurrados para a distante ilha setentrional de Hokkaido. Quando os grandes exércitos provinciais foram gradualmente desmantelados por Hideyoshi e Ieyasu, muitos samurais passaram a vagar pelo país, desempregados pela era de paz que se iniciava. Ainda havia alguns samurais junto aos Tokugawa e aos senhores provinciais, porém em pequena quantidade. As hordas de samurais sem ter o que fazer se viram de um momento para o outro, numa sociedade regida inteiramente pelas antigas regras de cavalheirismo e fidalguia que lhes eram tão caras, mas onde, ao mesmo tempo, não havia mais lugar para guerreiros. Os samurais tornaram-se, assim, uma classe invertida, mantendo vivos os antigos ideais de conduta pela devoção às artes militares, com um fervor que só os japoneses são capazes. Foi a essa época que floresceu o Kendô. Kendô, ou o Caminho da Espada, sempre fora sinônimo de nobreza no Japão. Desde a fundação da classe samurai, no século oito, as artes militares haviam se tornado a mais alta de todas as formas de estudo, inspiradas pelos ensinamentos do Zen e pelo sentimento xintoísta. As escolas de Kendô, nascidas no início do período Muromachi – aproximadamente de 1390 a 1600 –, passaram incólumes pelos abalos da formação do shogunato Tokugawa, pelo tempo de paz que se seguiu, e por tudo o mais que aconteceu ao Japão, sobrevivendo até hoje. A educação dos filhos dos Shoguns Tokugawa se fazia pelo adestramento nos exercícios chineses clássicos e na esgrima. Enquanto os ocidentais diziam que “a pena é mais forte do que a espada”, os japoneses dizem “a pena e a espada em comum acordo”. Hoje ainda, homens de negócios e políticos do maior destaque na sociedade japonesa praticam as velhas tradições das escolas de Kendô, preservando costumes centenários. Resumindo: Musashi era um ronin numa época em que os samurais eram considerados formalmente a elite do país mas, na realidade, não possuíam meios de sobrevivência, a não ser que fossem proprietários de terras e castelos. Muitos ronins abandonaram a espada e se tornaram artesãos, porém outros, como Musashi, levaram em frente o ideal guerreiro, buscando a iluminação através da via perigosa do Kendô. Duelos de vingança e provas de habilidade eram comuns, e as escolas de esgrima se multiplicaram. Duas dessas escolas, em particular – a escola Itto e a escola Yagyu –, foram protegidas dos Tokugawa. A escola Itto fez surgir uma linha ininterrupta de mestres do Kendô, e a escola Yagyu acabou por se constituir no manancial da polícia secreta da burocracia Tokugawa.

Kendô



Tradicionalmente, as academias de esgrima do Japão, chamadas Dojo, estavam ligadas a santuários e templos, porém, durante o período em que Musashi viveu, várias dessas escolas surgiram nas novas cidades formadas em torno dos castelos. Cada daimyo ou senhor mantinha uma escola de Kendô, onde seus servidores podiam ser treinados e seus filhos educados. A esperança de todo ronin era derrotar os alunos e o mestre de um Dojo em combate, para assim aumentar sua fama e ter seu nome levado aos ouvidos de alguém capaz de empregá-lo também.

Os samurais usavam duas espadas presas à faixa da cintura, com a lâmina para cima. A espada mais longa só era utilizada fora de casa, e a mais curta, em todos os lugares. Nas sessões de treinamento, o mais comum era que se empregassem espadas de madeira e bambu. Duelos e outras provas semelhantes eram comuns, tanto com espadas de treinamento quanto com armas de verdade. Esses combates se realizavam diante de templos ou santuários, nas academias de Kendô, nas ruas e dentro dos muros dos castelos. Os duelos prosseguiam até a morte de um dos combatentes, ou sua invalidez, porém algumas gerações após a época de Musashi surgiu o shinai, ou espada flexível de bambu, e posteriormente a armadura acolchoada para a prática da esgrima, de modo que as possibilidades de ferimentos se reduziram muito. Os samurais estudavam todos os tipos de arma: alabardas, bastões, espadas, corrente, foicinha e muito mais. Várias escolas dedicadas a essas armas sobrevivem ainda hoje no Japão em sua forma tradicional. Para adestrar-se no Kendô, a pessoa tem que subjugar seu ego, sua individualidade, suportar a dor de exercícios extenuantes e cultivar a paz de espírito diante do perigo. Mas o caminho da espada não significa apenas o treinamento no manejo da espada: ele não existiria sem todo um código de honra característico da elite samurai. A guerra era a motivação da vida cotidiana dos samurais, e eles sabiam encarar a morte como se ela fosse parte da rotina doméstica. O significado da vida e da morte pela espada se refletia na conduta habitual da sociedade feudal japonesa, e todo aquele que atingisse a aceitação resoluta da morte a qualquer momento de sua vida seria considerado um mestre da espada. Foi para alcançar a mesma compreensão da vida que muitos homens, em épocas posteriores, adotaram as antigas tradições dos estilos de esgrima com a espada, e muitos outros, ainda hoje, dedicam suas vidas à prática do Kendô.

Kendô e Zen



O caminho da espada resume os ensinamentos morais dos samurais, complementado pela filosofia confucionista que ajudou a dar forma ao sistema Tokugawa, ao lado da religião xintoísta, nativa do Japão. Os tribunais guerreiros do Japão do período Kamakura ao período Muromachi incentivaram o estudo austero do Zen pelos samurais, e o Zen andava de braços dados com as artes da guerra. No Zen não há elaborações nem misticismos: ele vai direto à natureza das coisas. Não há cerimônias nem pregações: a promessa do Zen é de caráter exclusivamente pessoal. A iluminação, no Zen, não implica modificação de comportamento, mas sim a compreensão da natureza da vida comum. Seu objetivo, seu ponto final é o início, e a grande virtude é a simplicidade. Os ensinamentos secretos da escola de Kendô Itto Ryu, o Kiriotoshi, são apenas a primeira de cerca de uma centena de técnicas com esse fim. O princípio básico é o do “Ai Uchi”, significando que se deve cortar o oponente tal como ele nos corta. Isso implica o equilíbrio absoluto... a ausência de raiva. O inimigo deve ser tratado como um convidado de honra. A vida deve ser abandonada, e o medo, descartado.

A primeira técnica é a última, o discípulo e o mestre se comportam da mesma maneira. O conhecimento é um ciclo completo. O título do primeiro capítulo da obra de Musashi é Terra, a base do Kendô e do Zen; o último capítulo se chama Nada, indicando a compreensão que só pode ser expressa pelo vazio. Os ensinamentos do Kendô são semelhantes às violentas agressões que os aprendizes do Zen se sujeitam. Assolados por dúvidas e infelicidade, sua mente e seu espírito se desorientam, e os aprendizes são levados paulatinamente à percepção e à compreensão por seu mestre. O estudante de Kendô pratica furiosamente milhares de golpes da manhã à noite, aprendendo as técnicas ferozes da guerra mais horrível, até que finalmente a espada se torne uma “não-espada”, e a intenção se torne uma “não-intenção”; nasce o conhecimento espontâneo de todas as situações. O primeiro ensinamento elementar se transforma no conhecimento supremo, e o mestre continua praticando o treinamento mais simples: sua prece cotidiana.

Um Pouco da Vida de Miyamoto Musashi



Shinmen Musashi No Kami Fujiwara No Genshin ou, como é comumente conhecido, Miyamoto Musashi, nasceu no lugarejo chamado Miyamoto, na província de Mimasaka, em 1584. Musashi é o nome de uma região a sudoeste de Tóquio, e as palavras No Kami indicam pessoa nobre da região, enquanto Fujiwara é o nome de uma das importantes famílias nobres do Japão de mais de um milênio atrás. Os ancestrais de Musashi formavam um ramo do poderoso clã Harima de Kyushu, a ilha meridional do Japão. Hirada Shokan, seu avô, havia sido servidor de Shinmen Iga No Kami Sudeshige, senhor do castelo de Takeyama. Hirada Shokan desfrutava de grande estima de seu senhor, e chegou mesmo a casar-se com a filha dele.

Quando Musashi tinha sete anos, seu pai, Munisai, morreu ou abandonou o menino. Como sua mãe já morrera antes, Bem No Suke, como Musashi era conhecido durante a infância, foi deixado sob a guarda de um tio materno, um sacerdote. E assim sabemos que Musashi era um órfão durante as campanhas de unificação de Hideyoshi, filho de samurai numa terra violenta e infeliz. Musashi foi um menino exuberante, de porte físico superior aos de sua idade e vontade férrea. Não sabemos se resolveu aderir ao Kendô por decisão própria ou por estímulo do tio, mas está registrado que com treze anos abateu um homem em combate corpo a corpo. Seu adversário fora Arima Kihei, um samurai da escola de artes militares Shinto Ryu, adestrado na lança e na espada. O menino jogou o homem ao chão e golpeou sua cabeça com um bastão sempre que ele tentava se levantar. Kihei morreu vomitando sangue. O combate seguinte de Musashi aconteceu aos dezesseis anos, quando ele derrotou Tadashima Akiyama. Mais ou menos por essa época, ele saiu de casa e se lançou ao que ficou para a História como “A Peregrinação Guerreira”, a qual o levou à vitória em numerosíssimos combates e à guerra em pelo menos seis vezes, até que, por fim, aos cinqüenta anos de idade, retirou-se para uma vida solitária, já tendo atingido o fim de sua busca da razão. É certo que muitos ronin deveriam viajar pelo país em expedições semelhantes, alguns sós, como Musashi, outros com apoio de senhores provinciais, porém nenhum com o aparato do famoso espadachim Tsukahara Bokuden, que percorrera o Japão com um séquito de mais de cem homens no século anterior. Esta parte da existência de Musashi foi vivida longe da sociedade, e nela o guerreiro se dedicou com obstinação feroz à procura da iluminação pelo caminho da espada. Preocupado unicamente com o aperfeiçoamento de sua arte, ele viveu como homem algum precisa viver, vagando pela terra com as roupas do corpo encharcadas pelas chuvas do inverno, sem cuidar dos cabelos, sem procurar esposa, sem se dedicar a nenhuma profissão a não ser o seu estudo. Conta-se que ele nunca entrara numa banheira a não ser nos raros casos em que fora pego desprevenido e desarmado, e que sua aparência era desleixada e miserável. Na batalha que levou Ieyasu a suceder Hideyoshi como Shogun do Japão, Seki ga Hara, Musashi uniu-se ao exército de Ashikaga para lutar contra Ieyasu. Ele conseguiu sobreviver aos três dias terríveis em que setenta mil homens morreram, e também à caça e ao massacre dos membros do exército derrotado. Com vinte e um anos, ele surge em Kyoto, a capital. Kyoto foi o cenário de sua vendeta contra a família Yoshioka. Os Yoshioka haviam sido instrutores de esgrima da casa dos Ashikaga durante várias gerações. Depois de proibidos de ensinar Kendô pelo senhor Tokugawa, os yoshioka se dedicaram à estamparia de tecidos, profissão que exercem ainda hoje. Munisai, o pai de Musashi, fora convidado anos atrás pelo Shogun Ashikaga Yoshiaka para ir a Kyoto. Munisai era um hábil espadachim especialista do jitte, uma espécie de maça de ferro com uma lingüeta para aparar golpes de espada. A história conta que Munisai enfrentou três dos Yoshioka, vencendo dois dos três duelos, e talvez isso tenha alguma relação com o comportamento de Musashi diante daquela família. Yoshioka Seijuro, o chefe da família, foi o primeiro a lutar com Musashi, no campo em torno da cidade, Seijuro estava armado com uma espada de verdade, e Musashi com uma espada de madeira. Musashi derrubou Seijuro com um ataque feroz e atacou-o inclemente assim que o inimigo tombou ao chão. Seus serviçais o levaram para casa, onde, envergonhado, ele cortou o nó dos cabelos que caracteriza todo samurai. Musashi permaneceu na capital, e sua presença acintosa irritou ainda mais os Yoshioka. O segundo irmão, Denshichiro, desafiou Musashi para um duelo. Como que cumprindo uma estratégia militar, Musashi chegou atrasado no dia marcado para o duelo, e segundos depois do início do combate, partiu o crânio do adversário com sua espada de madeira. Denshichiro estava morto. A casa dos Yoshioka lançou então mais um desafio, com Hanshichiro, o filho mais novo de Seijuro, como seu representante. Hanshichiro era um menino que nem completara os treze anos. O combate seria realizado junto a um pinheiro, ao lado de um arrozal. Musashi chegou ao local combinado bem antes da hora do duelo e aguardou escondido pela chegada de seu inimigo. O garoto chegou vestido formalmente, com trajes de guerra, acompanhado de um grupo de serviçais fortemente armados, com ordens de eliminar Musashi a qualquer preço. Musashi aguardou algum tempo escondido nas sombras e, tão logo o grupo começou a acreditar que ele pensara melhor e resolvera deixar Kyoto, ele arremeteu veloz e abateu o menino. Em seguida, sacando de ambas as espadas, Musashi abriu caminho a golpes certeiros, conseguindo fugir incólume. Depois desse episódio espantoso, o nome de Musashi correu por todo o Japão, e ele se tornou uma lenda viva. Encontramos seu nome mencionado em diários, papéis oficiais, monumentos e contos populares de Tóquio a Kyushu, sempre relacionado a proezas memoráveis. Antes dos vinte e nove anos ele já participara de mais de sessenta combates, e vencera todos eles. O primeiro relato desses combates aparece em Niten Ki, ou “Crônica dos Dois Céus”, compilado por seus discípulos uma geração após sua morte. No ano da disputa com os Yoshioka, 1605, ele visitou o templo Hozoin, na parte sul da capital, e ali lutou com Oku Hozoin, chefe da seita Nichiren, pupilo do sacerdote Zen Hoin Hinei. O sacerdote usava a lança, mas não era par para Musashi, que o derrotou duas vezes com sua espada curta de madeira. Musashi permaneceu no templo durante alguns meses estudando técnicas de luta e palestrando com os sacerdotes. Ainda hoje, os monges de Hozoin praticam uma forma tradicional de luta de lanças. É interessante assinalar que “Osho”, que significa sacerdote, tinha o sentido de “mestre da lança”. Hoin Hinei era discípulo de Isumi Musashi No Kami, um mestre de Shinto Kendô. O sacerdote usava espadas com lâminas em forma de cruz, guardadas fora do templo, sob as calhas, e utilizadas no combate ao fogo. Quando Musashi esteve na província de Iga, defrontou-se com um hábil lutador de corrente e foicinha chamado Shishido Baiken. Enquanto Shishido fazia girar sua corrente, Musashi sacou de um punhal e furou-lhe o peito, acabando com ele em segundos. Os pupilos do lutador abatido atacaram Musashi, porém ele os afugentou aos quatro ventos. Em Edo, um lutador chamado Musô Gonosuke foi visitar Musashi e desafiá-lo para um duelo. Musashi estava cortando madeira para fazer um arco e, aceitando o desafio de Gonosuke, levantou-se pretendendo fazer da ripa fina que usava uma espada. Gonosuke atacou logo, e com violência, mas Musashi conseguiu se equilibrar e golpeá-lo na cabeça. Gonosuke foi embora. Passando pela província de Izumo, Musashi foi visitar o senhor Matsudaira e solicitou permissão para enfrentar o maior especialista de Kendô da região. E eles eram muitos. O escolhido acabou sendo um homem que tinha como arma uma vara de madeira hexagonal de mais de 2 metros de comprimento. O combate se realizou nos jardins da biblioteca do senhor. Musashi usou duas espadas de madeira. Ele encurralou o samurai de encontro aos degraus de madeira da varanda da biblioteca, golpeou seu rosto assim que ele chegou ao segundo degrau e atingiu-lhe os dois braços quando ele se encolheu, fugindo da luta. Para surpresa dos servidores ali reunidos, o próprio senhor Matsudaira convidou Musashi para um duelo. Musashi encurralou o senhor como já fizera com o samurai e, quando ele tentou revidar partindo para um ataque resoluto com a espada, Musashi atingiu-a com o “Golpe de Fogo e Pedras”, partindo-a em duas. O senhor se curvou, admitindo a derrota, e Musashi permaneceu ali durante algum tempo como seu professor.

O mais famoso de todos os duelos de Musashi aconteceu no décimo sétimo ano de Keicho, 1612, quando ele passava por Ogura, na província de Bunzen. Seu adversário foi Sasaki Kojiro, um jovem que desenvolvera uma técnica nova e agressiva de esgrima conhecida como Tsubame-gaeshi, ou “Batida da Andorinha”, inspirada pelo movimento da cauda das andorinhas em vôo. Kojiro era contratado do senhor da província, Hosokawa Tadaoki. Musashi solicitou permissão para enfrentar Kojiro por meio dos ofícios de um dos servidores de Hosokawa, que havia sido aluno do pai de Musashi, um homem chamado Nagaoka Sato Okinaga. A permissão foi concedida e o combate marcado para as oito horas da manhã seguinte; o local escolhido foi uma ilha a alguns quilômetros de Ogura. Naquela noite, Musashi deixou seus alojamentos e mudou-se para a casa de Kobayashi Taro Zaemon. Isso deu ocasião ao aparecimento de boatos de que o temor à técnica sutil de Sasaki fizera Musashi desaparecer para sempre. No dia seguinte, às oito horas, Musashi ainda dormia, e foi preciso que um emissário do senhor da região fosse buscá-lo. Ele se levantou, bebeu a água que lhe fora levada para banhar-se, e foi diretamente para a praia. Enquanto Sato remava até a ilha, Musashi preparou uma tira de papel para prender as mangas de seu quimono para trás e fez uma espada de madeira aproveitando o remo de reserva. Depois disso, recostou-se para descansar. O bote se aproximou do local do combate e Kojiro, junto a todos que aguardavam a chegada de Musashi, se espantou com sua estranha figura: o cabelo amarrado para cima, saltando do bote e ao mesmo tempo brandindo um remo comprido ainda em meio às ondas, correndo para a praia em direção ao inimigo. Kojiro desembainhou sua espada longa, de lâmina fina, preparada por Nagamitsu de Bizen, e jogou longe a bainha. “Você não vai mais precisar dela”, disse Musashi arremetendo para a frente com a espada ao lado do corpo. Musashi provocou Kojiro a fazer o primeiro corte (o primeiro golpe) e com um movimento agilíssimo ergueu a espada do adversário descendo em seguida o remo sobre a cabeça de Kojiro. Quando Kojiro caiu, sua espada, que cortara parte do cabelo da cabeça de Musashi, furou a bainha da saia do seu quimono. Musashi comprovou o fim de Kojiro e, curvando-se às autoridades presentes, voltou correndo a seu bote. Alguns relatos dizem que depois de matar Kojiro, Musashi jogou o remo ao chão, deu alguns saltos rápidos para trás, sacou ambas as espadas e agitou-as no ar, ao mesmo tempo em que soltava um grito em direção ao inimigo morto. Foi mais ou menos por essa época que Musashi desistiu de usar espadas de verdade em duelos. Ele era invencível, e dali por diante dedicou-se à procura do conhecimento perfeito através do Kendô. Em 1614 e outra vez em 1615, ele teve a oportunidade de se envolver em guerras. Ieyasu cercara o castelo de Osaka, onde os defensores da família Ashikaga haviam iniciado uma insurreição, Musashi juntou-se às forças de Tokugawa durante as campanhas de verão e de inverno, agora lutando contra aqueles que defendera quando jovem em Seki ga Hara. Segundo seus próprios escritos, só com cinqüenta ou cinqüenta e um anos, em 1634, ele compreendeu a estratégia. Musashi e seu filho adotivo Iori, uma criança abandonada que encontrara na província de Dewa durante suas andanças, se radicaram em Ogura no mesmo ano. Musashi nunca mais sairia da ilha de Kyushu. A casa de Hosokawa recebera o comando da província de Higo, do castelo de Kumamoto, e o novo senhor de Bunzen era um Ogasawara. Iori conseguiu empregar-se com Ogasawara Tadazane, e como capitão do exército de Tadazane enfrentou os cristãos na revolta de Shimawara em 1638, quando Musashi tinha em torno de cinqüenta e cinco anos. Os senhores das províncias meridionais sempre se opuseram aos Tokugawa e instigaram a inimizade entre os governantes e cristãos japoneses, juntamente com seus aliados estrangeiros. Musashi era membro do comando das tropas do exército japonês de Shimawara, onde os cristãos foram massacrados. Depois disso, Ieyasu fechou os portos do Japão a todos os estrangeiros; os portos japoneses só viriam a ser abertos outra vez mais de dois séculos depois.

Após passar seis anos em Ogura, Musashi foi convidado a morar junto a Churi, o senhor Hosokawa do castelo de Kumamoto, como convidado de honra. Musashi passou alguns anos com o senhor Churi, dedicando seu tempo ao ensino e à pintura. Em 1643, afastou-se para levar uma vida retirada na caverna chamada Reigendo. Ali ele escreveu Go Rin No Sho, dirigido a seu pupilo Teruo Nobuyuki, poucas semanas antes de sua morte, no dia 19 de maio de 1645. Musashi é conhecido pelos japoneses como “Kensei” ou “Santo da Espada”. Go Rin No Sho encabeça toda e qualquer biografia sobre Kendô, sendo o único livro sobre artes marciais que trata dos métodos do combate corpo a corpo e da estratégia com o mesmo destaque. O livro não é um manual de estratégia e sim, nas palavras do próprio Musashi, “uma orientação para os que querem aprender a estratégia”. Como orientação, como guia, ele está sempre um passo adiante da compreensão do estudante. Quanto mais se lê o livro, mais se consegue extrair de suas páginas. Foi a última obra de Musashi, a chave do caminho que ele percorreu. Quando, aos vinte e oito ou vinte e nove anos, já lutador consagrado, ele não se contentou com lançar raízes e abrir uma escola, foi para se dedicar duplamente a seus estudos. Até seus últimos dias ele criticava os confortos da vida com o senhor Hosokawa: Musashi passou dois anos sozinho numa caverna nas montanhas imerso em contemplações. O comportamento desse homem cruel e obstinado era, evidentemente, humilde e honesto. Musashi escreveu: “Quando se atinge o Caminho da Estratégia, não haverá mais nada que não se possa compreender”, e “se verá o Caminho em tudo”. E, de fato, ele tornou-se mestre das artes e ofícios. Musashi produziu obras-primas de pintura que talvez, ainda no Japão de hoje, gozem de mais renome que as de qualquer outro artista do mesmo meio. Suas obras incluem corvos-marinhos, garças, Hotei, o Deus Xintoísta, dragões, pássaros com flores , um pássaro numa árvore morta, Daruma (Bodhidharma) e outros. Era um excelente calígrafo, o que fica evidenciado por sua peça Senki (Espírito da Guerra). Conhece-se dele, ainda, uma pequena escultura em madeira da divindade budista Fudo Myoo, pertencente a particulares. Uma escultura de Kwannon foi perdida recentemente. Trabalhou também com metal e fundou uma escola de fabricantes de guarda de espada que se assinavam “Niten”. Diz-se que escreveu poemas e canções, mas nenhuma dessas obras sobreviveu. Diz-se, ainda, que teria sido contratado pelo Shogun Iemitsu para pintar o sol nascente sobre o castelo de Edo. Suas pinturas trazem, às vezes, o timbre “Musashi” ou seu nome artístico “Niten”. Niten significa “Dois Céus”, que alguns consideram uma alusão à sua postura de luta, com uma espada em cada mão segura acima da cabeça. Em certas localidades ele estabeleceu escolas conhecidas como “Niten ryu”, e em outras como “Enmei ryu” (Claro Círculo). Escreveu o Estudo dos Caminhos de Todas as Profissões. E é evidente para nós que foi esta a sua opção de vida. Procurou não só os grandes espadachins mas também sacerdotes, estrategistas, artistas e artesãos, ansioso por expandir seus conhecimentos. Musashi escreve sobre os diversos aspectos do Kendô de uma maneira que torna possível ao iniciante começar pelo nível mais baixo e aos mestres em Kendô estudar aquelas mesmas palavras em um plano mais elevado. E isso não se aplica apenas à estratégia militar: seu método é válido para qualquer situação onde o planejamento e a tática sejam empregados. Homens de negócios do Japão de hoje usam o Go Rin No Sho como orientação para a prática comercial, executando campanhas de vendas como se fossem operações militares, usando os mesmos princípios de grande energia física e mental. Da mesma forma que Musashi parece ter sido um homem terrivelmente cruel, sua vida nos mostra que ele perseguia um ideal honesto; também muitos homens de negócios parecem a nós pessoas sem consciência. O estudo da vida de Musashi tem, assim, tanta importância no século vinte e vinte e um como sob a ética medieval de sua época, e se aplica não só à raça japonesa, mas a todas as nações. Tenho a impressão de que sua força poderia ser resumida como “humildade e trabalho”.



O Autor

Nascido em 1584, Miyamoto Musashi estava destinado a se tornar um dos mais famosos guerreiros do Japão. Musashi foi um samurai e, com 30 anos de idade, já participara de mais de 60 combates, vencendo a todos e matando seus adversários um a um. Certo de sua invencibilidade, Musashi resolveu deixar registrada a sua filosofia, “o Caminho da Espada”. Para isso, escreveu o livro ao qual denominou O Livro de Cinco Anéis (Go Rin No Sho) enquanto residiu numa caverna das montanhas de Kyushu, poucas semanas antes de sua morte, em 1645.

O Livro de Cinco Anéis é imprescindível em toda bibliografia de artes marciais; porém a filosofia que o rege, influenciada pelo Zen, pelo Xintoísmo e pelo Confucionismo, pode ser aplicada a diversos outros setores da vida além das artes marciais. Por exemplo: muitos industriais e homens de negócios do Japão moderno a utilizam em sua vida profissional, inclusive dirigindo campanhas de vendas como se fossem operações militares, com a mesma energia que motivava Musashi. Musashi é conhecido pelos japoneses como Kensei, ou “santo da espada”. Embora sua vida possa dar aos ocidentais a impressão de um homem cruel e impiedoso, Musashi esforçou-se inabalavelmente por atingir um ideal honesto, cuja verdade é transparente em O Livro dos Cinco Anéis. Seu livro não apresenta uma tese sobre estratégias de luta e sim, nas suas próprias palavras, “uma orientação para os homens que desejam aprender estratégia”; e como orientação, como guia, seu conteúdo está sempre um pouco adiante da nossa compreensão imediata.

Introdução



Há muitos anos venho me adestrando no Caminho(1) da Estratégia(2), chamado Ni Tem Ichi Ryu, e acho que agora posso, pela primeira vez, explicá-lo por escrito. Estamos nos primeiros dez dias do décimo mês do vigésimo ano de Kanei (1645). Subi as montanhas de Iwato de Higo, em Kyushu, para render meu preito ao céu(3), orar a Kwannon(4) e ajoelhar-me aos pés de Buda. Sou um guerreiro da província de Harima, Shinmen Musashi No Kami Fujiwara No Genshin, idade sessenta anos. Desde a juventude meu coração se inclinou para o Caminho da Estratégia. Meu primeiro duelo aconteceu quando eu tinha 13 anos, e abati um estrategista da escola Xinto chamado Arima Kihei(5). Com dezesseis anos, derrotei um hábil estrategista, Tadashima Akiyama. Com vinte e um anos, fui à capital (Kyoto) e encontrei toda sorte de estrategistas, jamais deixando de vencer uma única vez em todos os meus combates. Depois disso corri de província em província duelando com estrategistas de várias escolas, e nunca deixei de vencer, embora contasse mais de sessenta encontros. Isso ocorreu entre as idades de treze e vinte e oito ou vinte e nove anos. Quando cheguei aos trinta anos, observei o meu passado. As vitórias anteriores não eram devidas ao fato de eu ter dominado a estratégia. Talvez fosse minha capacidade natural, ou a ordem do céu, ou o fato de a estratégia das outras escolas ser inferior. Depois disso, dediquei dias e noites à busca do princípio, e acabei por entender o Caminho da Estratégia com cinqüenta anos de idade. Desde então tenho vivido sem seguir nenhum Caminho em particular. Assim com a virtude da estratégia, dei meu esforço a muitas artes e habilidades, todas elas sem nenhum mestre(6). Para escrever este livro, não utilizei a lei de Buda, nem os ensinamentos de Confúcio, nem velhas crônicas de guerra ou livros sobre artes marciais. Tomo de minha pena para explicar o verdadeiro espírito(7) dessa escola Ichi, refletida no Caminho do céu e Kwannon. Já é noite alta, é do décimo mês(8), a hora do tigre (3 a 5 horas da manhã).

O LIVRO DA TERRA

 

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